À frente de fundação referência na América Latina, Ana María Gazmuri toca em temas polêmicos e incentiva as organizações brasileiras a se unirem para driblar proibições
Uma famosa atriz de TV tem sido nos últimos anos a cara do ativismo em prol da Cannabis medicinal no Chile: Ana María Gazmuri. Ela fundou e dirige a Fundación Daya, uma referência na América Latina no campo de pesquisa e divulgação da planta para fins terapêuticos.
“Estamos limpando o rosto da Cannabis aqui no Chile”, brinca ela em entrevista exclusiva ao Cannabis e Saúde. Mas a simpática comunicadora muda o tom para denunciar retrocessos e injustiças que a Cannabis enfrenta na América Latina. Abaixo, os principais pontos de discussão atuais em sua gestão à frente da fundação:
Neocolonialismo da Cannabis medicinal
“É um momento de muita incoerência. Os modelos de regulação parciais são os principais desafios para a nossa região. Durante anos fomos estigmatizados como produtores de maconha, quando ela era criminalizada. Agora, nos obrigam a importar, sendo que temos uma história de conhecimento e uso dessa planta tanto aqui no Chile como no Brasil, México… Não faz sentido. Vivemos o neocolonialismo da Cannabis medicinal”, lembra Ana María ao citar o projeto da Fundação Daya de comercializar o primeiro fitofármaco de Cannabis produzido por um laboratório chileno. “Depois de muito trabalho para conseguir a autorização, em 2017 o canabidiol chegou às farmácias, mas depois de pouco mais de um ano o Instituto de Saúde Pública [ISP] não renovou a autorização para sua fabricação. Foi uma tragédia”.
Ela calcula que 2,5 mil pacientes de canabidiol tiveram que interromper o tratamento, inclusive aqueles que o recebiam de forma gratuita em programas municipais. Na cidade de Quilicura, por exemplo, por meio da Fundação Mamá Cultiva foi distribuído Cannabiol entre os pacientes da região. Os relatos deles integram o livro “Valientes, Testimonios de Quilicuranas renaciendo con la Cannabis Medicinal”, pioneiro no estudo clínico na América Latina. Hoje o único fármaco com venda regular no Chile é o importado Sativex, que custa em torno de US$ 800.
Apesar do relativo fracasso recente, o objetivo ainda é levar a opção aos hospitais. “Estão dificultando os meios para chegar a isso, principalmente ao perseguir o autocultivo, e bloqueando os fármacos baratos. O que se pretende no Chile é que a produção e comercialização fiquem concentradas na indústria estrangeira, o que somos totalmente contra”.
Nesse contexto, Ana Maria faz uma advertência ao Brasil em vista do que tem acontecido em seu país. “Nos oferecem CBD importado como sendo o salvador dos problemas. Mas isso é um erro. E o Brasil repete o erro. Somos favoráveis a utilizar toda a planta, com todos os canabinoides, inclusive o THC. Assim há sinergia e equilíbrio entre os componentes. Isso ajudaria até a uma diminuição das doses de canabidiol. O CBD em alta doses, além de ser inviável para a maioria da população por seu valor de mercado, pode acarretar em danos ao sistema hepático, por exemplo”, alerta ela.
Autocultivo e cultivo comunitário
As soluções defendidas por Ana María para a independência dos países latino-americanos são também os pilares da Fundação Daya: fortalecer as indústrias locais de forma sustentável, utilizando mão-de-obra da região; aproveitar o clima e as condições naturais, fomentando o autocultivo, o cultivo comunitário e a produção de fitofármacos de baixo custo.
“Vejo um perigo para o Brasil e outros países em abrir as portas para importar os sintéticos em vez de desenvolver uma indústria regional regulamentada de forma orgânica, impactando positivamente na comunidade e mantendo os preços baixos”, destaca ela. “O negócio ético, levando em conta o bem-estar de todos os envolvidos no processo, desde o plantio até a comercialização e o consumo, deve ser a base desse sistema.”
Marco legal
Juntamente com os vários projetos que lidera, tem se dedicado a defender usuários de Cannabis injustamente criminalizados. E o trabalho não tem sido fácil: até bem pouco tempo, o país seguia o padrão da maioria das regiões do mundo, com a proibição da posse da planta.
Em 2015, o cenário ganhou um novo rumo, quando foi sancionada a Ley 20.000. “É um marco legal, porque antes havia muita confusão com a interpretação da lei anterior sobre o tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas quanto ao uso de Cannabis. Uma pessoa portando ou cultivando Cannabis poderia ser considerada um microtraficante. Ainda que a nova lei também não seja a ideal, decidimos trabalhar com ela, porque contempla como exceção o uso medicinal da planta”, explica Ana Maria. Mediante um forte vínculo de cooperação com a Defensoria Penal Pública do Chile, todos os usuários confrontados ou presos pela policia do país que entram em contato com a Fundação têm conseguido se livrar de condenação.
Entre os muitos grupos que se beneficiam dessa defesa pública do autocultivo ou do cultivo coletivo são as mães de crianças com epilepsia refratária, autismo, câncer e outras patologias que vêm usado terapias com Cannabis. “Temos que garantir as devidas proteções a essas mães, que até bem pouco tempo poderiam, por ignorância da sociedade, perder a guarda de seus filhos ao administrarem Cannabis às crianças”, argumenta Ana María.
Colheita suspensa e pandemia
Um oásis na região de Maule, a plantação de Cannabis da Fundação Daya no campo em Quinamávida chegou a ter 7 mil plantas. Mas, por conta de um atraso na licença emitida pelo governo chileno, abriga somente as 49 variedades originadas das plantas-mães, que serão responsáveis por dar início à próxima produção.
Com a recente pandemia da Covid-19, o trabalho realizado pelos defensores da democratização do acesso à Cannabis passou a ter mais um objetivo. “A planta ganhou”, afirma a fundadora. “São somente 100 anos de proibição frente à ancestralidade da cultura da Cannabis. Estamos recuperando e desvelando novamente os conhecimentos milenares sobre a Cannabis medicinal. E ela tem uma papel importante para desempenhar neste momento específico. Estamos falando de uma sociedade estressada, precária, onde vemos a patologização das experiências humanas. Em tempos obscuros, somos um fonte de luz, uma refúgio para manter esse fogo acesso, tornando o paciente protagonista das decisões”.
União e educação
Como futuro, inclusive para países como o Brasil, Ana Maria prevê um caminho de democratização da informação. Com organizações fortes, independentes e com credibilidade, que levem a questão às comunidades (“às donas de casa”). E o desenvolvimento de plataformas de educação, tanto para os produtores como para os profissionais da saúde.
Falando sobre as proibições legais de plantio no Brasil, ela salienta: “Se as regras são injustas, temos que exercer nosso direito soberano e ir adiante mesmo assim, mediante cooperativas, formando pequenos coletivos”. Com relação ao seu trabalho na Fundação e como ativista: “É minha missão de vida. Trato de ser um bom canal, uma facilitadora. Perante ao sofrimento humano, não fazê-lo seria um crime”.