O catarinense Erik Amazonas sempre insistiu que seus alunos não saíssem da faculdade de veterinária sem conhecer o sistema endocanabinóide. Para o pesquisador e professor da Universidade Federal de Santa Catarina, os animais podem se beneficiar tanto quanto os humanos com os tratamentos com Cannabis, e não entende o receio que veterinários ainda têm em receitar.
Erik entrou na faculdade de veterinária porque queria trabalhar com genética, que o encantou desde o ensino médio. Da faculdade fez um mestrado acadêmico na USP e o doutorado na Universidade Federal de Pernambuco, sempre na área da genética. Logo que defendeu a tese, foi convidado para lecionar. Ficou mais um ano em Pernambuco, e depois foi a Santa Catarina, onde leciona na Federal até hoje.
Do genoma à Cannabis
Como tinha preconceito, Amazonas demorou a experimentar a Cannabis recreativa. Assim que fumou, descobriu que o que achava que sabia sobre a planta não fazia sentido, ele não ficava mais agressivo ou ansioso, pelo contrário. Mas fumava esporadicamente, só quando alguém tinha, nunca comprava.
Em 2014, conheceu pessoas que plantavam em casa, e foi apresentado à flor da planta. Então veio a mudança radical em termos de percepção, tanto da planta, quanto pessoal. Amazonas sentiu uma melhoria de comportamento nos relacionamentos profissionais, “eu escolhia quais brigas comprar”. Com esses resultados, usando apenas as flores, ele foi pesquisar a ciência da planta. Viu estudos da medicina canabinoide humana e descobriu estudos a que nunca tinha foi apresentado na academia. Seu interesse nos estudos humanos foram estimulados pelos ensaios pré-clínicos, que tinham sido feitos em porcos, cães, gatos, cabras, além dos ratos. Eram todos os animais que ele já estudava e tratava no seu dia a dia.
Testes em animais
Amazonas procurou estudos veterinários, mas o que tinha vinha de fora, principalmente dos EUA, Canadá e Europa. E descobriu que o sistema endocanabinóide dos animais é o mesmo dos humanos, com algumas peculiaridades de cada espécie. Que os benefícios são os mesmos já reportados nos humanos.
Por isso mesmo Amazonas não entende o preconceito de veterinários em prescrever. O argumento de médicos humanos é a falta de testes clínicos em humanos. E esse problema os veterinários não têm, pois todos os estudos já publicados sobre Cannabis foram antes testados em animais.
Caso reclamem que só tem Cannabis testada para uso humano, não deveriam prescrever off label (quando um medicamento é usado para um fim diferente da sua indicação), que é o caso em 50% do arsenal medicamentoso da classe veterinária. Amazonas exemplifica com o Tramal, muito frequentemente receitado por veterinários: “se você olhar na bula, está escrito que não há estudos clínicos em cães”, desabafa. “O mesmo veterinário que prescreve medicamento pesado como opióides, Gardenal, trava para usar Cannabis”. Parece que a classe veterinária ainda prefere a segurança de usar fármacos já estudados, mesmo que sejam mais fortes e com muito mais efeitos colaterais.
Com o interesse na medicina canábica foi grande, Amazonas deixou os estudos genéticos, e hoje só usa seu vasto conhecimento na área se ele tiver alguma relação com Cannabis. Ele argumenta que as pesquisas de genoma são muito caras, difíceis, com cada vez menos recursos e exigem várias etapas. Na pesquisa com a Cannabis, ele enxerga a possibilidade de um impacto real na vida das pessoas.
A disciplina canabinoide na veterinária
Foi assim que em 2017 Amazona propôs à Universidade Federal de Santa Catarina, onde já era coordenador de curso, que fosse criada uma disciplina na graduação para ensinar sobre o sistema endocanabinóide. Para ele, o ideal era que o sistema fosse ensinado como qualquer outro sistema (nervoso, imunológico, circulatório), permeando todas as disciplinas do curso. Mas sabia que seria uma utopia exigir que vários professores estudassem um sistema relativamente novo. Mesmo assim, não havia motivo para que o sistema endocanabinóide não estivesse na grade. Então, ele abriu a disciplina Endocanabinologia, que sempre tem turmas cheias, alguma espera e até alunos que já fizeram o mesmo curso duas vezes.
No curso, Amazonas explica a fisiologia, todas as funções e interações do sistema, e a anatomia funcional da planta. No final, ele entra com os fármacos, fala da Cannabis, dos óleos, como é feita a extração, os processos artesanais e industriais, enfim, explica a parte terapêutica.
Amazonas dá especial atenção ao efeito entourage, que é a característica dos centenas de fitoquímicos da planta de Cannabis trabalharem juntos para produzir seus efeitos. Ainda em 2019, numa reunião com parceiros da Veterinary Cannabis, instituição que promove educação e estudos de Cannabis para uso veterinário, ele notou que os participantes relataram que o uso do óleo isolado (somente CBD), tinham efeitos colaterais parecidos na primeira semana. Os animais ficavam prostrados, deprimidos ou imóveis. Eles descobriram que esses efeitos foram motivados pela falta do THC no óleo fornecido aos animais. Amazonas então propôs um full spectrum, com proporção 1:1, igual de THC e CBD. Os animais não tiveram mais esse problema e eles comprovaram a importância do efeito entourage também nos animais.
Dificuldades de legislação
Amazonas lembra que a Anvisa não permite que ele faça o plantio, razão que a qual ele já teve duas negativas para uma pesquisa que queria fazer sobre linhagens de plantas para uso veterinário, do plantio até o óleo.
Ele só pode usar óleos importados ou das associações. Por isso ele faz parcerias com a Abrace, a Ama+Me, a APEPI. “Eu posso fazer qualquer parceria, só não posso plantar e produzir o óleo”, conta.
Preconceito, desconhecimento e medo
“O veterinário, além do preconceito, não vai atrás da medicina canabinoide por não saber se é legal que prescrevam”. Amazonas diz que, para humanos tem alguma coisa que endossa o uso como a Anvisa, o CFM. Na veterinária não tem nada. Nem o Ministério da agricultura, nem os conselhos regionais e federais de medicina dizem nada e os veterinários não sabem se podem ou não prescrever. “Eu digo que, na falta de proibição, o veterinário não tem previsão legal para ser penalizado pela prescrição”.
Mas há ainda um problema maior para a prescrição. “Se eu pegar o óleo que tá na minha mão e der para para o tutor, a lei considera que é tráfico”. “Tem que deixar na mão do tutor para ir atrás, o que pode ser um risco enorme”.
Amazonas alerta que os óleos clandestinos podem ser de prensados, vir com fungo, crack ou cocaína. Ou até serem feitos com óleo de semente de uva, que não faz mal a humanos, mas é tóxico para cães e gatos, podendo levar até à morte.
Aos os veterinários que têm dúvida sobre a eficácia da Cannabis nos animais, Amazonas argumenta que todos os vertebrados têm sistema endocanabinóide, dos répteis para cima. As abelhas têm alguma coisa, mas ainda não foi categorizado. Também já encontraram anandamida em alguns insetos. Até a hidra, animal invertebrado pequeno e muito simples, tem um sistema endocanabinóide.
Conselhos para veterinários
Amazonas sugere que o sigam no Instagram: saudecanabica, seu canal no youtube: saude.canabica, e que busquem estudos científicos. “O principal é perder o medo da planta e perder o medo da lei. Ter a consciência de que quando se começa o tratamento, está usando um medicamento com muito mais segurança que qualquer outro medicamento. Se você sabe como dosar Gardenal, Diazepam, Tramadol, corticóides e anti inflamatórios, vai saber como agir com a Cannabis. É menos tóxico, menos agressivo, tem menos colaterais”
Amazonas diz que, mesmo se houver intoxicação acidental, o risco de óbito é baixíssimo. Ele conta que um cachorro comeu um frasco cheio de óleo 50:1 (THC e CBD respectivamente). Ele dormiu por 12 horas, mas depois de 18 horas estava normal. Mas tem que ter cuidado nesses casos. Um veterinário que não entendesse de medicina canabinoide poderia injetar diazepam no animal, o que poderia matá-lo. Os diazepínicos são especialmente potencializados pelos canabinoides, e uma dose que poderia ser normal, se transformaria numa dose de eutanásia.
Apesar desses cuidados, Amazonas resume os benefícios da Cannabis nos animais da mesma forma que para humanos. “Ela funciona para quase todas as indicações que não dependam de cirurgia”. A Cannabis então, trata dos quatro grupos principais: quadros inflamatórios, de dor, cânceres e neurológicos.
Militância
Além atuação nas redes sociais, Amazonas dá palestras e cursos além da disciplina na Universidade, tudo na busca de quebrar o estigma da planta. Entretanto, ele não está sozinho. O veterinário estima que sabe de pelo menos 200 veterinários prescritores no Brasil, e quase 500 com formação.
Apesar da expectativa do PL 339 em discussão no Congresso ajudar na sua pesquisa, Amazonas se preocupa. Ele acha que pouco mudará no aspecto social da Cannabis. Os negros pobres continuarão sendo traficantes, os brancos ricos continuarão sendo usuários, pois o PL continua não definindo claramente a diferença. A lei vai viabilizar plantio e comércio pelas empresas e a exploração comercial. No caso das associações, só sobreviverão as que tiverem dinheiro para se enquadrar às regras. Universidades poderão plantar para fins de pesquisa, o que será importante para ele, pois tudo isso nacionaliza e barateia os produtos e facilita sua pesquisa.
Mesmo com essa perspectiva positiva, ele aponta um item que ainda não está sendo discutido: a liberação do cânhamo para plantio pessoal. Sem isso, uma comunidade pobre ou favela jamais vai conseguir ter uma associação de Cannabis.