Superior Tribunal de Justiça suspende a tramitação de todos os processos sobre plantio de Cannabis no Brasil até o julgamento final de mérito pela corte
A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, admitiu o chamado Incidente de Assunção de Competência. De forma bem simplificada, isso significa dizer que a palavra final sobre Autorização Sanitária para importação e cultivo de Cannabis com baixos índices de Tetrahidrocanabinol ou THC – a principal molécula psicoativa da planta – será do STJ, a segunda maior corte do país. Esse instrumento é utilizado para evitar que a justiça profira decisões diferentes sobre o mesmo assunto em diferentes instâncias.
No voto, a ministra Regina Helena Costa, sustentou que o julgamento do STJ não trata sobre a descriminalização da maconha. Uma vez que o processo em questão, diz respeito ao do cultivo do chamado cânhamo, uma variedade da Cannabis incapaz de proporcionar o uso adulto ou recreativo da maconha.
“Não é possível impedir a Recorrente de exercer atividade econômica relativa à industrialização de subprodutos de variedade de Cannabis cujo cultivo não permite a produção de entorpecentes, sendo viável a exploração de outras substâncias extraídas do plantio de Hemp, especialmente o Canabidiol (CBD), para usos preponderantemente medicinais”, argumentou a ministra em seu voto.
O voto da magistrada para que a decisão do STJ tenha repercussão geral, isto é, seja admitida por todos os tribunais do país, foi acompanhada pelos ministros Gurgel de Faria, Paulo Sérgio Domingues, Humberto Martins, Herman Benjamin, Mauro Campbell Marques, Benedito Gonçalves e Ausente Magalhães. Apenas o ministro Francisco Falcão estava ausente. Ao assumir para si a responsabilidade de autorizar ou não o cultivo do cânhamo no país, a Primeira Seção definiu alguns procedimentos até o julgamento do mérito da questão.
Entre eles, a suspenção da tramitação de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre cultivo de Cannabis com baixos teores de THC em solo brasileiro. A corte também determinou que todos os Presidentes dos Tribunais de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e da Turma Nacional de Uniformização sejam notificados. Ainda mandou oficiar a Secretaria Nacional Antidrogas do Ministério da Justiça e Segurança Pública (SENAD), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), o Conselho Federal de Medicina (CFM), a Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis Sativa (SBEC) e as principais Universidades Federais do país para que se manifestem, havendo interesse, num no prazo comum de 15 dias.
Entenda o caso
A ação foi movida por uma empresa de biotecnologia, em 2019, em busca autorização para importar sementes de hemp ou cânhamo industrial para o cultivo de plantas que produzam concentração de THC inferior a 0,3%, sem propriedades psicoativas e sem efeitos miméticos que alteram a percepção de espaço e tempo, por exemplo. No recurso, a empresa alegou que já há normatização para a entrada e comercialização da Cannabis no Brasil por meio de Resoluções da Diretoria Colegiada (RDC 660 e 327) da Anvisa. Argumentou ainda que a importação da matéria-prima onera a produção de medicamentos, a exemplo de fármacos para o tratamento de doenças como epilepsia e esquizofrenia, para citar alguns exemplos.
Lei de Drogas diz que União pode regulamentar
A defesa da empresa sustentou ainda que o art. 2º, parágrafo único, da Lei de Drogas (11.343/2006) dá prerrogativas à União, por meio do Ministério da Saúde, de autorizar, para fins medicinais ou científicos, o plantio, a cultura e a colheita de vegetais dos quais seja possível extrair substâncias psicoativas – dentre elas o THC – “dispositivo ainda não regulamentado pelo Poder Executivo, cuja omissão vem obstando o cultivo de cânhamo industrial e o desenvolvimento de mercados voltados à comercialização de subprodutos da Cannabis”, argumenta a empresa na ação.
O advogado da causa, Arthur Ferrari Arsuffi, afirma que esse é um passo importante para a formação de precedente.
“Como esse é um tema de repercussão social e econômica, a corte decidiu chamar toda a sociedade civil para participar. Essa é uma decisão que valerá para o país inteiro, terá um efeito vinculante. Estamos muito animados. Essa é a primeira vez que o poder judiciário se posiciona sobre o plantio do cânhamo de forma definitiva”, comemora o jurista.
De acordo com Arsuffi, agora será aberto um procedimento para ouvir todas as partes. “É possível que haja uma audiência pública para debater o assunto. Depois de ouvir o contraditório e a participação popular, o STJ deve marcar o julgamento de mérito. A lei diz que preferencialmente esse julgamento deve acontecer em até um ano”, explica o advogado.
Revolução verde no país
Caso a decisão do STJ seja favorável ao cultivo do cânhamo no pais, especialistas afirmam que o novo entendimento pode revolucionar a economia verde brasileira gerando emprego, renda e conhecimento. “Somos uma liderança global no agronegócio. Podemos nos tornar um dos principais players do mundo. Isso sem falar na redução de custos para quem precisa do medicamento. Com preços mais competitivos até o Sistema Único de Saúde pode se beneficiar, já que a taxa cambial, o frete, e o imposto de importação oneram muito a produção de remédios aqui”, alerta Arthur Arsuffi.
O advogado, cofundador da Rede Reforma, Emília Figueiredo pensa da mesma forma, e diz que se o cultivo do cânhamo no Brasil for regulamentado, a economia ganha foça com geração de trabalho, renda, tecnologia e ciência – já que a fibra da planta pode produzir mais de 25 mil produtos industriais – como bioplástico, tecido, painéis de carros, cosméticos e alimentos ricos em ácidos graxos.
“Assim como aconteceu com a questão dos Habeas Corpus para cultivo de Cannabis, o STJ mostra que o Judiciário é o poder que se mostra mais sensível e efetivo para a questão da Cannabis. Dessa vez o foco é o cânhamo que certamente servirá para inaugurar novas atividades com a Cannabis no Brasil”, destaca Figueiredo.
Uma decisão final de mérito, que pode ser anunciada pelo STJ dentro de um ano, pode movimentar os políticos no Congresso Nacional. Atualmente, há mais de 20 Projetos de Lei tramitando no Legislativo Federal. A proposta que mais avançou é o PL 399/2015, que regulamenta o cultivo da Cannabis para fins medicinais e industriais. Aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados em junho de 2021, o texto está parado desde então.
Para o advogado Leonardo Navarro, uma eventual decisão favorável do STJ poderá repercutir favoravelmente nos processos em andamento e deve pressionar os demais órgãos para uma efetiva regulação. Mas segundo o especialista, o julgamento do STJ, por si só, não significa uma regulação automática. “O cânhamo é uma realidade em diversos países, mas todos se deparam com questões regulatórias importantes. É essencial que o Congresso, a Anvisa e o Mapa trabalhem em conjunto para que haja uma regulamentação efetiva desse mercado no país”, conclui Navarro.