O médico deve ter como princípio fundamental buscar sempre o melhor tratamento possível para o paciente. Isso envolve a definição da conduta médica adequada, a escolha correta da medicação e, não menos importante, que seu custo seja viável para o paciente. No caso da cannabis medicinal, essa escolha é complexa devido à grande variedade de produtos disponíveis, embora existam apenas três formas de obtenção. A primeira, e atualmente a mais utilizada, é a importação via RDC 660, com dois grandes motivos para isso: maior variedade e menor custo (para produtos ricos em canabidiol). A segunda opção é a aquisição nas farmácias, regulamentada pela RDC 327, e a terceira é a obtenção via associações de pacientes.
Recentemente, o SINDUSFARMA (Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos) solicitou a revogação pela ANVISA da RDC 660, argumentando que os 37 produtos aprovados pela agência, segundo a RDC 327, seriam suficientes para atender os pacientes, tornando desnecessária a regulamentação para importação direta de cannabis por pessoa física. Essa lógica é falha, pois a existência de produtos nacionais não elimina a necessidade de opções importadas por si só – assim como a presença de frutas nacionais não elimina as importadas dos mercados. Essa comparação esdrúxula serve para ilustrar a fragilidade do argumento do sindicato, que parece enviesado desde o início.
Outra questão levantada pelo SINDUSFARMA é o controle de qualidade dos produtos importados via RDC 660, alegando que “grande parte deles não cumpre requisitos mínimos de qualidade lote a lote”. Essa afirmação carece de base concreta, e seria prudente que a fonte dessa informação fosse apresentada. Embora existam produtos sem comprovação de qualidade, a solução está na revisão dos critérios de controle de qualidade e não na extinção da importação. Grande parte dos produtos da RDC 660 atendem aos requisitos de qualidade, podendo ser avaliados por meio de certificações de análise de lote a lote. Além disso, muitos produtos da RDC 327 são fabricados pelas mesmas empresas que exportam via RDC 660.
O sindicato também menciona a toxicidade do canabidiol (CBD), sugerindo riscos sem embasamento científico, inclusive citando uma suposta preocupação com o uso por crianças. No entanto, o CBD é amplamente documentado como seguro, especialmente em comparação com medicamentos vendidos livremente em farmácias brasileiras. Em muitos países, o CBD é comercializado sem receita médica devido ao seu excelente perfil de segurança. Existem, de fato, riscos, mas eles são extremamente baixos, e até hoje não há relatos de mortes causadas diretamente pelo uso do CBD ou qualquer outro canabinoide. Também aproveito para lembrar – pois o sindicato aparenta ter esquecido – que é necessário uma consulta e prescrição médica para obtenção dos produtos, trazendo ainda maior segurança para suas utilizações.
É evidente que esse ofício negligencia a perspectiva do paciente. A RDC 660, junto com as associações, foi fundamental para o crescimento da cannabis medicinal no Brasil, oferecendo produtos acessíveis. A acessibilidade é essencial para qualquer tratamento, e a questão do controle de qualidade deve ser tratada como uma questão regulatória, não como uma justificativa para eliminação de opções. Dependendo exclusivamente da RDC 327, dificilmente um tratamento custaria menos de R$ 500 por mês, o que o torna inviável para a maioria dos brasileiros. Comparando preços por miligrama de CBD, encontram-se produtos da RDC 660 custando R$ 0,03 por mg (com certificação de análise completa), enquanto o produto mais barato da RDC 327 custa R$ 0,25 por mg – uma diferença de custo que não pode ser ignorada.
A prioridade de qualquer médico e de qualquer órgão que promova a saúde deve ser o paciente, pois é este que necessita do tratamento. A proposta do SINDUSFARMA desconsidera essa realidade. O desenvolvimento da cannabis medicinal no Brasil ainda está acontecendo, e há espaço para todas as vias – RDC 327, RDC 660 e associações de pacientes. O foco deve estar no aprimoramento do controle de qualidade e acesso para todas essas vias, sem a necessidade de eliminar nenhuma. Por fim, aproveito para trazer a atenção para a quarta via, ainda inexistente, que tem o potencial de trazer acessibilidade com controle integral da qualidade: a produção nacional de produtos de cannabis, desde o cultivo até a formulação final.
Por Pietro Vanni, médico psiquiatra (IPUB – UFRJ) e diretor médico da Gravital (clínica canábica)