Projetos de Lei avançam nos estados, enquanto uma possível lei federal continua estagnada no Congresso Nacional
O debate acerca da regulamentação do cultivo da Cannabis no Brasil para produção medicinal e industrial – de um lado – e pela criminalização do porte da maconha – de outro – foi intenso em 2023 no Congresso Nacional.
Pelo menos oito audiências públicas mobilizaram os congressistas e ativistas no Parlamento brasileiro, seja para cobrar uma lei que estabeleça regras para o plantio controlado ou para mudar a atual Lei de Drogas (11.343/2006) que despenalizou o porte de maconha no Brasil.
No Senado
A maratona de audiências públicas teve início em abril quando o senador Paulo Paim (PT/RS), presidente da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado Federal, convocou o debate sobre o uso terapêutico e medicinal da Cannabis.
O senador é autor do Projeto de Lei (PL 89/2023) que cria a Política Nacional de Fornecimento Gratuito de Medicamentos Formulados de Derivados Vegetais à Base de Cannabis nas unidades de saúde públicas e privadas conveniadas ao Sistema Único de Saúde (SUS).
O projeto de Lei de Paim sofre críticas porque não enfrenta o atual modelo de importação a qual a atuação regulamentação vigente impõe.
Regulação atual impõe importação
Apesar de o uso terapêutico e medicinal da Cannabis já ser regulado no Brasil por meio de duas Resoluções da Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), RDC 327/2019 e RDC 660/2022, o insumo para a produção do medicamento é importado em dólar com adição de frete internacional.
Não democratiza o acesso
Para os parlamentares que são contra o cultivo em solo brasileiro, por acreditarem que o país não reúne condições de controle para a produção medicinal, o atual modelo atende aos pacientes no país, mas reconhecem que não democratiza o acesso.
Esses mesmos parlamentares são os que defendem a criminalização do porte de maconha com penas mais duras, num enfrentamento direto ao Supremo Tribunal Federal que já tem 5 votos a 1 pela descriminalização do porte da erva no país.
Conservadores querem criminalizar o usuário
Esse assunto motivou o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, a propor duas audiências públicas e uma mudança na Constituição para que o usuário ou paciente seja punido como criminoso pelo porte da planta em qualquer quantidade.
No Senado esse foi o tema que tomou conta dos palanques com relação à Cannabis.
Já na Câmara dos Deputados
Já na Câmara dos Deputados, as audiências caminharam no sentido de debater e pressionar pela regulamentação do cultivo da Cannabis em solo brasileiro para produzir medicamentos e insumos industriais a partir da fibra da planta.
Em junho, o jurista fundador da Plataforma Justa, lançou um guia prático na Câmara dos Deputados sobre como regular a Cannabis, com base em experiências internacionais que podem ajudar a subsidiar a construção de uma lei brasileira.
Acesso e Cannabis no SUS
Na mesma semana, o uso medicinal da Cannabis também foi tema de audiência pública na Comissão de Direito Humanos, Minorias e Igualdade Racial da Câmara dos Deputados, a pedido da deputada federal, Sâmia Bomfim (PSOL/SP).
Em setembro, a Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados abriu o espaço para receber associações de pacientes, médicos e ativistas que clamam pela liberdade da planta medicinal e exigem que o medicamento seja fornecido pelo SUS gratuitamente.
O Brasil na contramão do mundo
A deputada federal, Talíria Petrone (PSOL/RJ), autora do requerimento, conduziu o debate que lotou o plenário.
“Tenho cada vez mais me aproximado de mães atípicas. A Cannabis tem trazido qualidade de vida para inúmeras famílias. E esse parlamento está na contramão do mundo inteiro”, lamentou a deputada.
Pautar o PL 399/2015
Nessa mesma ocasião, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, cobrou do presidente da Câmara, Arthur Lira, pautar o Projeto de Lei 399/2015 que está engavetado há dois anos e meio na Casa.
Quando era deputado, Paulo Teixeira presidiu a Comissão Especial da Cannabis na Câmara dos Deputados, que aprovou o PL 399 em junho de 2021. O texto cria regras para o cultivo da Cannabis em solo brasileiro para fins medicinais e industriais.
Produção controlada
“O que é o PL 399? Ele permite a produção da Cannabis no Brasil num ambiente altamente controlado para fins medicinais. Não faz sentido o país continuar importando o princípio ativo em dólar. Precisamos levar em consideração o frágil orçamento da saúde, o arcabouço fiscal e o teto de gasto”, alertou o ministro.
Cannabis para impulsionar a economia
No mês seguinte, a Comissão de Integração Nacional e Desenvolvimento Regional da Câmara dos Deputados promoveu nova audiência pública para discutir como a produção medicinal da Cannabis pode impulsionar a economia local do país.
Desta vez, o requerimento foi apresentado pelo deputado federal, Padre João (PT/MG). “A política não pode ser contaminada pela hipocrisia religiosa. A Cannabis traz cura para milhares de pacientes. Uma árvore boa não pode dar maus frutos, já dizia Jesus”, relembrou o padre.
Exposição de cânhamo
Para completar, na semana em que se comemora o dia de luta pela Cannabis Medicinal (27/11), a Câmara dos Deputados recebeu – de forma inédita – uma exposição sobre o cânhamo, uma cepa da Cannabis que é incapaz de produzir entorpecentes.
Durante cinco dias os parlamentares tiveram a oportunidade de conhecer de perto produtos industrializados feitos a partir da fibra da Cannabis, como por exemplo, roupas, papéis e madeira.
Apoio de 5 parlamentares
A iniciativa do Instituto InformaCann contou com o apoio de cinco parlamentares: a deputada Carol Dartora (PT/PR), Túlio Gadelha (Rede/PE), Luciano Ducci (PSB/PR), Bacelar (PV/BA) e Sâmia Bomfim (PSOL/ SP).
Paralelamente, o deputado Chico Alencar (PSOL/RJ) promoveu mais uma audiência pública para colocar em evidência o assunto na data emblemática. “Estamos vivendo uma epidemia da ignorância. Uma planta medicinal não pode ser motivo de crime”, defendeu Alencar.
Ministério da Saúde pode regular o cultivo
Nesse encontro, pela primeira vez, Dr. Rodrigo Cariri Chalegre de Almeida, Médico de Família e Comunidade, Mestre e Doutor em Saúde Pública, e atual Coordenador-Geral de Atenção Especializada, Rodrigo Cariri, reconheceu que a pasta tem a prerrogativa de regular o cultivo da Cannabis para produção de remédio.
A priori, a regulamentação do plantio não precisa passar pelo Congresso, já que o Decreto n. 5.912/06 – que regulamenta a Lei de Drogas (11.343/2006) – diz que cabe ao Ministério da Saúde autorizar o cultivo de plantas proscritas para fins médicos e pesquisas científicas.
Entretanto, o Executivo até então, ignorava o cumprimento da lei, e dizia que o assunto precisava ser regulamentado pelo Congresso Nacional.
28 PLs sobre Cannabis tramitam no Congresso
Atualmente, 28 projetos de lei tramitam no Congresso Nacional sobre o tema “Cannabis” seja para regulamentar o cultivo ou para endurecer as penas para os usuários e traficantes.
Nesse ano, além do PL apresentado pelo senador Paim, o deputado Kim Kataguiri (União/SP) e a senadora Mara Gabrilli (PSD/SP) também propuseram outras duas propostas prevendo o cultivo pelo paciente com receita médica. Por enquanto, nenhum deles avançou.
Em paralelo, os deputados Padre João (PT/MG) e Talíria Petrone (PSOL/RJ) trabalham para levantar 198 assinaturas para a criação de uma Frente Parlamentar em Defesa da Cannabis na Câmara dos Deputados.
Na avaliação do cientista político, doutorando na Universidade de Brasília, Gabriel Elias, a pauta deixou de avançar no Congresso porque perdeu um dos principais articuladores do PL 399, do Deputado Paulo Teixeira da Câmara, que assumiu o Ministério de Desenvolvimento Agrário no governo federal.
“A pauta ficou, portanto, sem o que chamamos nas políticas públicas de um “empreendedor”, aquela figura que fica atenta a janela de oportunidade para efetivar a mudança desejada. Em 2023 tiveram muitas audiências públicas para debater a regulamentação da Cannabis no Congresso, mas o PL 399 continua estagnado”, observa o estudioso.
Segundo Elias, apesar de o Brasil debater de forma constante a necessidade de reformas na política de drogas, mudanças efetivas não acontecem na prática. “As mudanças que temos, como é o caso da Cannabis medicinal, são infralegais ou jurisprudenciais e, por isso, pouco sustentáveis”, alerta o cientista político.
Leis estaduais avançam
Paralelamente aos projetos de leis federais, as Câmara Legislativas Estaduais e Municipais se movimentaram no sentido de aprovar leis para que o SUS forneça produtos à base de Cannabis de forma gratuita e universal.
Dos 27 estados, quase metade já aprovou leis para garantir a compra desses medicamentos via licitação pública para distribuir por meio do SUS.
Até agora, foram aprovadas leis no Acre, Alagoas, Amapá, Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Piauí, Rio Grande do Norte, Rondônia, Roraima, São Paulo, Tocantins e Rio de Janeiro.
Nem todas estão em vigor
Isso não quer dizer, entretanto, que todas as leis já estejam vigorando. De acordo com o cientista político Jaime Fagundes, as leis estaduais e municipais funcionam como uma panela de pressão sobre o legislativo federal.
“Depois que São Paulo, maior economia do país, sancionou a lei, demais estados e municípios seguiram o exemplo. Pelo menos 24 unidades da federação, seja estado ou município, ou já aprovaram uma regra sobre o tema ou estão debatendo o assunto no Legislativo”.
Cannabis como capital político
O analista político explica que o tema Cannabis se tornou um capital na política.
“Vemos parlamentares de direita querendo surfar na onda da Cannabis Medicinal e propondo leis nesse sentido. Essa pauta não é mais tão ideológica”, avalia o especialista.
Muito embora o cultivo ainda seja tabu, a maior parte dos políticos não nega o uso medicinal da planta, afirma Fagundes. “Quando eles veem uma criança usando o extrato da Cannabis e parando de convulsionar, o preconceito cai por terra”, afirma Jaime.
Judicialização impacta nos cofres públicos
Outro ponto a ser considerado na visão do analista é o impacto orçamentário da judicialização dos tratamentos à base de Cannabis aos cofres públicos.
De acordo com o Ministério da Saúde os processos judiciais envolvendo remédios à base de Cannabis cresceu mais de 1.000 % em 2022. Não é inteligente manter esse modelo para o próprio governo, explica.
Judicialização cresce 1.000%
Dados da pasta demonstram que enquanto em 2021, o gasto com a judicialização girava em torno de R$ 160 mil reais por ano para fornecer o medicamento importado aos pacientes mediante ordem judicial, no ano seguinte o total ultrapassou R$ 1 milhão e 700 mil.
E os números só tendem a crescer se não for regulamentado o cultivo para fins medicinais no país, acredita Fagundes.
“Nessas compras, sem previsão orçamentária, não se ganha em escala em termos de preço. E o que é pior, não contempla os mais vulneráveis, apenas aqueles que podem entra na justiça para fazer valer o seu direito à saúde”, lamenta o cientista político.
E o que esperar para 2024?
Na avaliação do analista, o cenário deve se manter em ‘banho maria’. Isso porque o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, se permanecerá no comando até o final de 2024 e não há perspectivas de que o PL 399 entre em votação.
“O Lira já demostrou desinteresse sobre a pauta e só um acordo de líderes, muito bem costurado, para conseguir levar o assunto para o plenário. Paralelamente, outros PLs não devem avançar, a não ser a PEC que penaliza como crime o porte de maconha por usuários”, prevê.
Especialmente se a pauta de descriminalização do porte de drogas avançar no Supremo Tribunal Federal, explica.
Mais conservadores eleitos
Segundo Fagundes, o perfil mais conservador da legislatura eleita nas últimas eleições pode dificultar o avanço de pautas mais progressistas.
“Hoje, vemos a Câmara dos Deputados tentando revogar o direito ao casamento homo afetivo garantido pela Suprema Corte. Então, a briga entre direita e esquerda é para que não haja retrocessos”, diz o analista político.
Na visão do Gabriel Elias, há uma certa ilusão no campo de reforma da política de drogas que acredita ser possível sensibilizar os conservadores, apontando a injustiça da política atual, especialmente na pauta da Cannabis Medicinal, que consegue apoio abstrato de amplos setores.
“Fica cada vez mais claro que, alguns políticos poderão ser convencidos sobre a importância de reforma a política de drogas no Brasil, outros só serão vencidos através do enfrentamento, denunciando seu conservadorismo que afeta negativamente a vida de milhões de pessoas no nosso país. O desafio é delimitar a linha que define quem está em cada um desses lados”, diz o cientista político.
Ministério da Saúde como regulador
Para Jaime Fagundes, seria importante que o Ministério da Saúde assumisse a regulamentação para fins medicinais como já está previsto na Lei de Drogas.
“O Ministério da Saúde também se omite. Se o governo Lula estiver bem avaliado e forte politicamente em 2024, quem sabe assume o risco de defender uma pauta tão polêmica que ainda está impregnada de preconceito e ignorância”, conclui Fagundes.