Uma equipe de pesquisadores brasileiros realizou um estudo que mostrou os benefícios de um extrato de Cannabis com alta concentração de canabidiol (CBD) no tratamento de pacientes com o transtorno do espectro autista.
Este estudo, conduzido por pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB), dá continuidade a pesquisas anteriores, que sugerem que a ativação do sistema endocanabinoide pelos compostos da planta pode contribuir para aliviar diversos sintomas dessa condição, como dificuldades na comunicação, irritabilidade e a falta de apetite.
Além de apresentar os resultados do estudo, publicado na revista Pharmaceuticals com o título Clinical and Family Implications of Cannabidiol (CBD)-Dominant Full-Spectrum Phytocannabinoid Extract in Children and Adolescents with Moderate to Severe Non-Syndromic Autism Spectrum Disorder (ASD): An Observational Study on Neurobehavioral Management, vamos trazer a perspectiva de alguém que acompanhou o desenvolvimento dos estudos sobre o autismo e a Cannabis.
Conversamos com um dos pesquisadores envolvidos no estudo mais recente e também nos anteriores, Renato Malcher-Lopes. Como coautor do livro Maconha, Cérebro e Saúde, junto com Sidarta Ribeiro, deu uma visibilidade sem precedentes à planta no Brasil.
Mais do que comentar os resultados, ele compartilhou conosco os caminhos que o levaram a ser um dos pesquisadores mais respeitados do país e um “militante científico do uso medicinal da Cannabis”.
Quando o sistema endocanabinoide entra em ação
Completando a graduação em Biologia e o mestrado na UnB, Renato Malcher-Lopes rumou para os EUA para concluir o doutorado em Neurociências pela Universidade Tulane, em Nova Orleans. Durante essa temporada norte-americana, ele fez observou interações inéditas até então sobre o sistema endocanabinoide, especialmente com o hormônio cortisol.
Renato nos explicou brevemente essa relação, observada no início dos anos 2000.
“Na minha tese, eu observei que os processos que o cortisol usa para estimular o apetite e para trazer o organismo de volta à normalidade depois de um estresse são mediadas por endocanabinoides. Essa descoberta foi muito importante porque conectou o sistema endocanabinoide com processos integrativos de gestão do organismo.”
Esses estudos foram essenciais para entendermos as funções que o sistema endocanabinoide exerce no organismo e para colocá-lo como alvo terapêutico em diversas condições de saúde. Renato Malcher-Lopes nos explicou também as situações em que o sistema endocanabinoide entra em atividade, segundo as suas análises.
“O sistema endocanabinoide é central para duas situações: uma é para você funcionar da melhor maneira possível, quando tudo está bem. A outra é para quando você está num processo de estresse, de doença, de luta ou qualquer tipo de coisa que prejudique a sua saúde física e mental.
Você precisa ter um determinado conjunto de ajustes para lidar com isso, mas esse ajuste não pode durar para sempre. Existe um conjunto de mecanismos que vão detectando quando a fonte do estresse acabou, o hormônio cortisol faz isso junto com os endocanabinoides.”
Descobrindo-se pai de uma criança no espectro do autismo
A qualidade do trabalho do Renato Malcher-Lopes ficaria reconhecida internacionalmente, o que o levou a cruzar o oceano para continuar sua carreira acadêmica. Ele saiu do estado da Louisiana, no sul dos EUA, rumo à Suíça.
Ele nos contou que essa mudança de ares foi difícil, porém crucial para sua trajetória. Foi na Europa que Renato percebeu os primeiros sinais de que seu filho estava no espectro do autismo.
“Eu era casado na época, meu filho tinha quatro meses quando eu mudei de Nova Orleans, onde eu fiz doutorado, para Lausanne, na Suíça, para fazer meu pós-doutorado. Um dos projetos que tinha lá era para estudar o que acontece no cérebro de ratinhos que tinham características correlatas ao autismo humano.
Enquanto o meu filho crescia, comecei a fazer o processo para o pós-doutorado e fiquei sabendo que o chefe do laboratório tinha um filho autista. Eu fui falar que tinha certeza que os resultados revelavam que os animais tinham defeito no sistema endocanabinoide.
E ele meio que me desprezava, ele falava: ‘Não, você não serve para essas coisas. Faça suas malas, volta lá para sua cidade natal’.
Ele me enxergava como uma peça. Ele não estava escutando o que eu estou falando, sendo que pode ser valioso para o filho dele.
Nessa mesma época — por uma coincidência um pouco bizarra ou cinematográfica — comecei a ter sinais e a acreditar que o meu filho pudesse ser autista.”
Após essa passagem pela Suíça, Renato e seu colega de graduação, Sidarta Ribeiro, trabalharam no livro Maconha, Cérebro e Saúde. Essa obra, lançada em 2007, inspirou muitas pessoas e foi importante para reduzir o preconceito sobre o tema no Brasil.
Militante científico do uso medicinal da Cannabis
Vendo-se como pai de uma criança dentro do espectro do autismo e de volta ao Brasil, Renato se deparou com a limitação de profissionais da saúde e a proibição do uso de produtos derivados da Cannabis. Isso o levou a se debruçar sobre o tema do uso medicinal da Cannabis para ajudar pessoas no transtorno do espectro autista e hoje em dia é uma pessoa comprometida com a causa.
“Depois que escrevi o livro, comecei a me engajar e buscar pesquisa na área médica. Comecei a ser um defensor político dessa questão científica. Eu passei a ser uma militante científico do uso medicinal da Cannabis.
Você imagina no meu caso, o que eu passei no início do processo todo lá na Suíça com a minha própria vivência de pesquisador e pai de autista. Imagina o que passei a viver quando comecei a entender que algo que poderia ser muito bom para a vida do meu filho já existia, mas eu era proibido de usar.”
Esse foi o ponto de virada. Depois disso, Renato Malcher-Lopes iria identificar que uma grande parte das pessoas no espectro do autismo têm epilepsia. Além disso, que os que não são epilépticos possuem uma atividade neuronal muito mais intensa do que as pessoas neurotípicas. Essa super excitação é responsável por vários sintomas típicos do autismo.
Posteriormente ele colaborou com mais pesquisas sobre o potencial terapêutico da Cannabis em pacientes com o transtorno do espectro do autismo, incluindo a mais recente realizada na UnB e publicada no Pharmaceuticals.
Estudo mais recente
Agora, após transitar pela trajetória acadêmica e pessoal de Renato Malcher-Lopes, podemos falar dos resultados animadores do estudo realizado na UnB.
Trinta voluntários receberam uma dose diária de um extrato com uma proporção de 33:1 de CBD:THC por um período de 6 meses e foram submetidos a alguns exames de avaliação clínica. Os pais ou cuidadores desses participantes também participaram relatando como foi a reação dos pacientes na vida cotidiana.
Os pesquisadores observaram melhoras consideráveis em sintomas como irritabilidade, interação social, concentração, contato visual, irritabilidade e na qualidade de vida de uma forma geral. Efeitos adversos como enjoos, sonolência e dores no estômago foram registrados, porém superados com o ajuste da dose.
Renato exaltou as características que diferenciam esse estudo de outros envolvendo CBD e autismo, além da colaboração de outros pesquisadores.
“A gente está em uma fase onde podemos explorar bastante essas possibilidades todas. Esse artigo traz um pouco da bagagem conquistada com o que foi feito de exploração em artigos anteriores, mas já com um pouco mais de polimento. Inclusive, com grande mérito para o trabalho da Jeane e da Lisiane nesse polimento.”
O polimento mencionado por ele diz respeito ao ajuste da dosagem do produto realizado por essas profissionais. Fica cada vez mais evidente como é necessário observar cada paciente como um indivíduo único e com características próprias, que exigem um olhar individualizado.
A contribuição do Renato Malcher-Lopes é enorme e impacta desde cientistas no laboratório até familiares de pessoas que se tratam com produtos derivados da Cannabis. Quem compreende o potencial do uso dos compostos da planta está caminhando ao lado dele.
“O ponto fundamental é que existem cientistas e médicos que não sobem no pedestal para olhar a sociedade de cima para baixo. São esses médicos que eu tenho a honra de lutar junto nessa batalha pelo uso medicinal da Cannabis.
E é graças a eles que a sociedade está virando nossa parceira nessa divulgação da beleza da relação humana com essa planta.”
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