“Liberação de drogas pelo STF atrapalha mercado medicinal de maconha”, diz a manchete da coluna Painel SA, da Folha de São Paulo, seguida do subtítulo “Associação da indústria medicinal da maconha diz que possível aprovação do porte de drogas desviará foco da Anvisa para o negócio voltado à saúde”(1). Segundo a advogada e presidente executiva da BRCann, Bruna Rocha, “Existem diversas manifestações contrárias à legalização do lado de cá, justamente por conta da implicação que isso pode ter na credibilidade do mercado medicinal. A indústria aguarda esse julgamento com cautela e uma certa apreensão. Para falarmos sobre a descriminalização do porte de drogas, nós teríamos que primeiro passar por uma questão de segurança pública”.
De início, é importante observar que não compete ao STF a “liberação de drogas”
Na realidade, a Corte dará continuidade ao julgamento do Recurso Extraordinário 635659, iniciado em 2015 e interrompido por um pedido de vista. O recurso diz respeito à constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, que incrimina a posse de drogas destinada ao uso pessoal. Cortes constitucionais – como o STF – possuem como função típica o controle da constitucionalidade de normas jurídicas. A discussão centra-se na proibição de punição de condutas autolesivas e na controvérsia a respeito do bem jurídico protegido pelo crime tipificado no art. 28 da Lei de Drogas. Em outras palavras, significa dizer que, para justificar a criminalização de uma conduta em que autor e vítima são a mesma pessoa, utiliza-se a responsabilização penal objetiva, atribuindo a quem porta drogas com finalidade de consumo pessoal a culpa pelo potencial efeito multiplicador do consumo, algo a rigor inaferível.
Acaso declare inconstitucional o art. 28 da Lei de Drogas, o STF tornará descriminalizada a conduta de portar drogas para uso pessoal, ou seja, o que outrora era crime, não mais o será. Há muitas dúvidas sobre qual será exatamente o alcance da decisão da Suprema Corte sobre esse tema, cuja repercussão geral foi reconhecida e que vinculará não apenas todos os órgãos do Judiciário, mas do Poder Público em geral, em especial as polícias. Não se sabe se a norma será de fato declarada inconstitucional. Se de fato isso ocorrer, será apenas em relação à maconha ou em relação a todas as drogas proscritas? A conduta de portar drogas para uso pessoal deixará de ser criminosa, mas continuará ilegal, como um ilícito administrativo? Ou deixará de ser criminosa e haverá a fixação de critérios objetivos para diferenciar uso e tráfico, baseados no peso correspondente a certo número de doses diárias, como na lei portuguesa?
O tribunal vai editar uma súmula vinculante para definir o standard probatório necessário para a caraterização do tráfico com respeito à regra do ônus da prova e ao postulado da presunção de inocência, como medida para reduzir os danos causados pela cegueira hermenêutica deliberada que torna possível a condenação em massa de meros usuários como se traficantes fossem (2)?
Como se vê, afirmar que o STF irá liberar as drogas é uma impropriedade(3). Creio ser possível afirmar que liberadas as drogas estão hoje, sob a égide da proibição, proporcionando lucros estratosféricos a facções criminosas que exploram um mercado monopolista não regulado voltado exclusivamente à busca incessante do lucro. E que não vê problema em permitir o acesso de crianças a substâncias psicoativas. Liberar as drogas significa o que existe hoje: não há regras. Apesar de proibidas, na prática as drogas estão liberadas. Essa liberação produz um círculo vicioso, que se retroalimenta: violência, corrupção, encarceramento em massa, fortalecimento das facções criminosas, mais violência, etc. Hoje a Lei de Drogas é o principal vetor encarcerador no Brasil e dos cerca de um milhão de presos que habitam o estado de coisas inconstitucional que são as nossas prisões, cerca de um terço vincula-se a crimes da Lei de Drogas no caso dos homens, duas em cada três no caso das mulheres presas.
E o que isso tem a ver com a luta para garantir a saúde de quem se trata com remédios à base de Cannabis?
Tem tudo a ver. Tem a ver com interesses corporativos também. E com receio, apreensão e credibilidade.
Para entender o que quero dizer, é preciso voltar no tempo. Sim, a luta antiproibicionista não começou ontem, se é que me faço compreender.
Há dez anos, quando não havia remédio de Cannabis à venda nas farmácias, as famílias de pacientes eram socorridas por cultivadores que faziam uso adulto e que se arriscavam a ir presos para garantir a saúde de dezenas, centenas de pessoas. Eram movidos por compaixão, sem ânimo de lucro. E por saber que é possível produzir remédio a base de cannabis de forma artesanal, por meio do autocultivo. Hoje, as principais Marchas da Maconha no Brasil possuem o bloco dos pacientes e familiares, a revelar o antigo apoio que o movimento social antiproibicionista vem emprestando à causa do uso terapêutico.
Há sete anos, quando foi criada a tese do habeas corpus preventivo para garantir o cultivo de cannabis com a finalidade de viabilizar a vida e a saúde de pacientes, ativistas antiproibicionistas defensores da legalização do uso adulto de todas as drogas estavam na linha de frente. Hoje, graças a esse trabalho pioneiro, consolidou-se na jurisprudência a tese de que o cultivo de cannabis para fins terapêuticos é um fato atípico, ou seja, não é crime, porque, justamente, é legal, lícito, de acordo com o direito. O exercício regular de um direito não é crime – e de fato não pode ser. É uma conduta penalmente irrelevante, atípica, lícita e não culpável. E isso independe de a pessoa ter ou não ter um salvo conduto. O direito precede à declaração de sua existência.
Cultivar cannabis para fins terapêuticos é uma conduta dentro da lei e não pode ensejar repressão estatal.
O Judiciário reconheceu e chancelou a legalidade da produção artesanal de remédios à base de cannabis por intermédio do autocultivo e do cultivo cooperativado sem fins lucrativos. A decisão do STF a respeito da descriminalização não vai alterar esse entendimento, porque não se discute uso terapêutico no RE 635659. O uso terapêutico é discutido na ADI 5708, que não teve iniciado o seu julgamento.
Voltando ao RE 635659, se o STF declarar inconstitucional o art. 28 da Lei de Drogas (e também o seu § 1º, que trata da semeadura, cultivo e colheita), e se forem definidos critérios mínimos – como no caso do voto do Ministro Barroso, que sugere 25 gramas de maconha in natura e seis plantas fêmeas, como critério definidor de pequena quantidade para uso pessoal – um sem número de pessoas ou mesmo associações que cultivam cannabis para fins terapêuticos e que não estão protegidas por salvo conduto, poderão ser beneficiadas e deixarão de correr o risco de serem criminalizadas, encarceradas e punidas. Esse é apenas um exemplo de como a descriminalização – e não a liberação ou a legalização – da posse de drogas para uso não terapêutico pode beneficiar quem faz uso terapêutico de cannabis, ajudando, com isso, a garantir a saúde pública.
O papel das associações
Leandro Ramirez refere que “surgiu no país um movimento associativo movido pela dor, que busca superar esses obstáculos. Em dezembro de 2014, nasceu a pioneira Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal (AMA ME). Com o amadurecimento, em situação de desobediência civil, houve uma regionalização e multiplicação dessas associações de pacientes pelo país. Muitas delas oferecem atendimento jurídico, social e terapêutico complementar, com psicologia, fisioterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia e nutrição, como um retorno para a sociedade. Em pesquisa feita com as associações, recolhemos dados de 17 delas, que revelam a robustez do suporte prestado no país. São 68.345 pacientes associados, com idades variando de poucos meses a 101 anos, com uma mediana superior a 45 anos. Cerca de 60% desses pacientes são mulheres, portadoras de várias doenças, seguindo uma tendência mundial. Os diagnósticos atendidos se enquadram em grupos como transtornos mentais e comportamentais (18,1%), epilepsia e autismo (14,2%), dor crônica (11,4%), Alzheimer e outras demências (6,6%), câncer (6,0%), Parkinson e outros distúrbios do movimento (5,5%), fibromialgia (5,32%), artrites e artroses (2,7%), e outras doenças (30,2%). Para esses pacientes, uma média de 12 mil frascos de óleo de cannabis medicinal e integral é disponibilizada mensalmente.
Até o fim do primeiro trimestre deste ano, a Anvisa concedeu 181.753 autorizações individuais para importação de produtos de cannabis. No entanto, os valores mensais médios de cada tratamento ultrapassam R$ 1.500, o que torna o custo proibitivo para a maioria da população. Como alternativa, os pacientes recorrem às associações, que já atendem um número de quase 40% dos que importam, oferecendo acesso mais barato, ágil e, muitas vezes, com resultados superiores devido à maior concentração de THC”(4).
Pessoalmente, acredito que o modelo regulatório ideal deve contemplar, de um lado, o autocultivo e o cultivo cooperativado sem fins lucrativos, e, de outro, a indústria farmacêutica. Há espaço para todos nesse mercado, desde que justiça social e reparação histórica ocupem o centro dos objetivos políticos do modelo regulatório, e não apenas a obtenção do lucro e a criminalização da concorrência
E desde que não haja “apagões” regulatórios, como o havido nos EUA, na crise dos opioides e que pode nos orientar para que aqui não estejamos sujeitos ao mesmo risco de abuso do poder econômico:
“Justiça dos EUA encerra litígio contra Purdue Pharma pela crise dos opioides. Família proprietária pagará 4,5 bilhões de dólares em troca de imunidade em eventuais ações judiciais”
Com a aprovação do processo de falência e a dissolução da empresa, a justiça norte-americana encerrou nesta quarta-feira a longa disputa contra a Purdue Pharma, farmacêutica grande, responsável pela grave epidemia de dependência química nos Estados Unidos devido ao consumo de seu principal produto, o analgésico opioide OxyContin. A decisão garante imunidade em futuros processos à família Sackler, dona da empresa, que em troca se compromete a pagar 4,5 bilhões de dólares aos mais de 3.000 demandantes pelos danos causados pela droga, que contribuíram para agravar a pior crise de saúde pública nos Estados Unidos, entre a epidemia de AIDS e a pandemia de coronavírus.
Reestruturação
A decisão aprova o plano de reestruturação da empresa, que implica a transferência do seu patrimônio para um fundo destinado ao combate à crise da saúde, flagelo ainda muito palpável no país, como testemunham as campanhas periódicas de informação e prevenção de municípios e estados.
Durante uma audiência que durou mais de seis horas, o juiz federal Robert Drain preparou o terreno para a dissolução da Purdue Pharma, bem como para a futura isenção de responsabilidade criminal dos Sackler. “Eu gostaria que o plano [de reestruturação] tivesse fornecido mais [dinheiro], mas não vou prejudicar o que ele oferece”, disse Drain, após ler a decisão. O dinheiro da reestruturação irá diretamente, através do fundo de gestão, para entidades governamentais, que o utilizarão em programas de desintoxicação e prevenção, juntamente com os sobreviventes e seus familiares. O número de mortes causadas nos Estados Unidos pela crise dos opioides (derivados sintéticos do ópio) é estimado em mais de 500.000 nas últimas duas décadas. O OxyContin foi lançado em 1995.
Falência e isenção
A Purdue Pharma pediu falência em 2019, em uma tentativa de resolver as mais de 3.000 queixas criminais apresentadas por estados, condados, tribos e outras entidades locais. O alvo das queixas era a campanha de marketing agressiva da empresa, incluindo pagamentos a médicos para prescrever o altamente viciante OxyContin, um fato que os fabricantes ocultaram.
A resolução do tribunal não apenas isenta os Sacklers de responsabilidades futuras, mas também centenas de sócios. Todos eles ficarão com grande parte da fortuna que fizeram com a firma, em troca do pagamento dos 4,5 bilhões de dólares em dinheiro e doações.
Os críticos do acordo, incluindo procuradores-gerais de nove estados e o Departamento de Justiça, argumentam que ele viola os direitos constitucionais de potenciais demandantes, porque nega indevidamente a oportunidade de processar diretamente a família proprietária. Os defensores do acordo, incluindo dezenas de governos estaduais e locais, constatam que o importante foi conseguir um acordo financeiro rápido.
A novela OxyContin e a ascensão e queda da família Sackler foram o assunto de um documentário arrepiante na plataforma da HBO, detalhando suas campanhas de marketing selvagens, bem como um livro do jornalista Patrick Radden Keefe(5).
Bem a propósito, em “Como regular a cannabis: um guia prático”, publicação referência no debate a respeito do modelo regulatório da cannabis para uso adulto, produzida pela organização britânica Transform e que terá a sua versão em português lançada pelo Justa em Brasília no próximo dia 27 de junho, há um capítulo a respeito da interação de sistemas regulatórios para o uso terapêutico e não terapêutico da cannabis, que transcrevo a seguir, na esperança de contribuir para desfazer a má compreensão a respeito do tema:
“Desafios
- Distinguir claramente entre os desafios políticos e regulatórios associados aos produtos terapêuticos e não terapêuticos da cannabis.
- Garantir que os processos paralelos e sobrepostos de pesquisa e desenvolvimento de políticas se apoiem, em vez de entrar em conflito. (…)
A evidência emergente e o apoio aos medicamentos à base de cannabis tornaram a cannabis menos ameaçadora do ponto de vista político em muitas jurisdições o que, combinados com a regulação da cannabis terapêutica, que agiu como uma ‘validação do conceito’, ajudaram a promover a reforma política da cannabis não terapêutica”.
Referências
- https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painelsa/2023/06/liberacao-de-drogas-pelo-stf-atrapalha-mercado-medicinal-da-maconha-diz-setor.shtml
- https://www.conjur.com.br/2022-jul-26/cristiano-maronna-cegueira-hermeneutica-deliberada
- Ver Quadro Comparativo de modelos regulatórios (proibição, despenalização, descriminalização, legalização) em MARONNA, Cristiano Avila. Lei de Drogas interpretada na perspectiva da liberdade, São Paulo, Contracorrente, 2022, pp. 181/183.
- RAMIRES, Leandro. Uso medicinal da cannabis no país, O Estado de Minas, 12/06/23 https://www.em.com.br/app/noticia/opiniao/2023/06/12/interna_opiniao,1505745/uso-medicinal-da-cannabis-no-pais.shtml?fbclid=PAAabEC6t99T1BYkkSDVlbAHUxZVROIlQFhlhj3Yk0IQtf_B8lC3gN01e1Xp8
- https://brasil.elpais.com/sociedade/2021-09-01/justica-dos-eua-encerra-litigio-contra-purdue-pharma-pela-crise-de-opioides.html