A carioca Paula Fabrício já nasceu na psiquiatria. Seus avós eram funcionários da Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, onde médicos, enfermeiros e a família dela viviam com os internos. Esse modelo inclusivo era proposto pelo psiquiatra que emprestou seu nome ao local e é considerado o fundador da disciplina psiquiátrica no Brasil. Graduada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a única vontade era participar das aulas de psiquiatria, onde se encontrava.
Inspirada pela psiquiatra Nise da Silveira, fez residência no Instituto Municipal Philippe Pinel, também no Rio de Janeiro. Durante sua formação, a Cannabis só era mencionada na área de dependência química, e não como uso medicinal.
Fabrício descobriu com os colegas de biologia a existência do sistema endocanabinoide e da estrutura do THC. Mas só voltou a estudar o tema, em 2018, quando a mãe de um paciente quis saber sobre os tratamentos com Cannabis para transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDHA). O interesse voltou.
Fabrício conhecia a diretora da Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (APEPI) Margarete Brito, pois seus filhos tinham estudado juntos. Foi visitar a amiga e saiu com um convite para o seminário da Apepi com a Fiocruz no Museu do Amanhã. Lá, conheceu Eduardo Faveret, um dos precursores em prescrição de Cannabis medicinal e pediu para acompanhar suas consultas para aprender sobre o assunto.
Psiquiatria negacionista
Fabrício se impressionou com o volume e qualidade do que já havia sido estudado sobre Cannabis medicinal. Mais do que isso: queria conhecer mais o papel do psiquiatra Pedro Pernambuco Filho na introdução da Cannabis na lista de substâncias controladas no Brasil.
Logo depois do seminário da APEPI, foi a um debate sobre Cannabis no Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (CREMERJ). Lá, dois psiquiatras eram contrários à regulamentação do uso medicinal. O argumento era que o usuário de Cannabis deveria ser internado, e que qualquer tipo de regulamentação ou legalização traria consequências desastrosas: aumento de acidentes, a diminuição da percepção do risco da substância e que simplesmente não existia maconha medicinal.
Do outro lado, estavam Eduardo Faveret e Orlando Zaconne, o primeiro falando da parte medicinal, o segundo em segurança pública.
Cada vez mais atraída pelo papel dos psiquiatras nas discussões sobre Cannabis, surgiram dois caminhos naturais para seguir: a prescrição e a pesquisa. Na Fiocruz, Fabrício mudou seu tema de mestrado para “Os discursos da Psiquiatria sobre a Maconha no Brasil”.
Tratamento pela autonomia
Aprendeu a prescrever com Faveret e outros colegas mais experientes. Ainda citando a influência de Nise da Silveira, Fabrício tenta pautar seus tratamentos no empoderamento e independência dos pacientes. “A dra. Nise foi revolucionária, dando voz a eles. A psiquiatria é um campo que, por muitas vezes, restringe a autonomia da pessoa”, conta.
Faz um paralelo com a própria história dessa especialidade e a forma com que as terapêuticas foram implementadas: com muita violência, onde o paciente não era ouvido. Feliz em ter seguido sua mentora, diz: “Quanto mais autonomia eu tinha, mais autonomia eu dava ao paciente”.
O caso de um paciente ansioso com vários diagnósticos psiquiátricos é exemplo disso. Ele chegou a seu consultório com o próprio esquema terapêutico montado. Depois de passar por quadros psicóticos, alopáticos e efeitos adversos, o paciente encontrou a Cannabis, não se deu bem com um óleo importado prescrito por outro psiquiatra e começou a cultivar. Depois de testar e estudar, encontrou sua cepa, sua dose e conquistou seu equilíbrio.
“Cara, você contraria até o que a gente sabe”, Fabrício disse ao paciente, que só a consulta para acompanhar. A independência dele é até financeira: ganhou o habeas corpus para cultivar seu próprio remédio legalmente. Apesar disso, a psiquiatra conta que ele é assíduo e se comprometeu a procurá-la caso tivesse algum problema. “É um tratamento de autonomia”, ela reforça, pontuando que tem uma lógica inversa ao tratamento tradicional, onde o médico tem um certo poder sobre o paciente.
“Adoro dar alta”
Fabrício também trabalha com alopatia, mas confessa que mesmo antes da Cannabis já preferia desmamar remédios do que prescrever. Seus pacientes também estão na mesma sintonia e cada vez mais pedem para tirar os alopáticos e tentar alternativas. Nesse contexto, a Cannabis ajuda muito. “Às vezes, vejo paciente tomando remédio por 20, 30 anos sem necessidade”, conta. Por isso, quando faz a primeira consulta, se não for um caso de muita complexidade, já conversa sobre o início, o decorrer e o fim do tratamento.
“Adoro dar alta”, diz sorrindo. Com esse plano de trabalho, há pacientes que têm alta antes, outros pedem um pouco mais, e têm a autonomia para isso. No final, Fabrício deixa o paciente à vontade para voltar se precisar.
Sobre essa autonomia, ela aponta a medicação apenas como um dos instrumentos, e não o principal. Terapia, atividade física, organização da própria vida, entender os próprios processos, estabelecer uma melhor qualidade de vida são fundamentais. Por isso, seu plano conta com os períodos de introdução, avaliação e desmame dos remédios. Mesmo a psiquiatria recomendando um mínimo de um ano de tratamento em média para os antidepressivos, ela prefere levar em consideração os efeitos adversos. Se o paciente estiver bem, é uma questão de acompanhamento e eles tentam o desmame.
Ensinar e aprender
Fabrício está trabalhando em duas novas pós-graduações sobre Cannabis medicinal multiprofissional para 2021. O mestrado também será concluído no ano que vem, o que a traz de volta à questão central de seus estudos: “Os Discursos da Psiquiatria sobre a Maconha no Brasil”. Ela quer destacar a discussão sobre o porquê de a psiquiatria ser tão discrepante e negacionista com a Cannabis, mesmo com todo mundo falando a respeito. Levando em consideração que a maconha não seja panaceia e que é necessário considerar riscos e redução de danos, quem fala de uso medicinal já tem isso em mente. “Além do conhecimento, precisamos transcender. A Cannabis é uma medicina muito complexa e a clínica mostra grandes benefícios”, diz, lembrando da importância de se pensar o posicionamento da psiquiatria para avaliar esses discursos.
Resistência
Recentemente, Fabrício soube de um caso em que um filho de paciente pediu para tratar a mãe com Cannabis e ouviu do médico que ele estaria “matando a mãe”: mesmo assim ela acabou tendo o tratamento e obteve ótimos resultados. Histórias como essas servem para ilustrar o preconceito na psiquiatria. Talvez o exemplo mais forte seja o Decálogo da Maconha, documento publicado em 2019 negando a maconha medicinal e que foi produzido pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
Mesmo fazendo parte de uma especialidade ainda tão resistente aos tratamentos com Cannabis, Fabrício se alegra por ter contado com mestres que moldaram sua clínica. Seu orientador de mestrado foi Paulo Amarante, um dos pioneiros pela reforma psiquiátrica, com o seminário “A epidemia das drogas psiquiátricas”. Nise da Silveira emprestou um olhar diferente à psiquiatria e aos pacientes.