É como se cada paciente custasse ao município R$ 50 mil por ano Especialistas dizem que valor é 3 vezes maior do que o praticado pelo mercado, além de não atender às prescrições médicas
A Prefeitura de Limeira (SP) contratou a empresa Prati-Donaduzzi – por R$ 1.466.550,00 – para fornecer remédios à base de Canabidiol (CBD) aos pacientes que entraram na justiça contra o município para receber o tratamento gratuito.
A reportagem entrou em contato com a Prefeitura de Limeira para entender melhor os termos dessa contratação. De acordo com a Secretaria de Saúde da cidade, o processo respeitou todos os trâmites legais previstos na administração púbica com abertura de licitação e pregão eletrônico.
Pregão nº 149/2023
No dia 19/01/2024, a Secretaria de Estado da Saúde, abriu o Sistema Eletrônico de Contratações (nº 149/2023) denominado “Bolsa Eletrônica de Compras do Governo do Estado de São Paulo” com o objetivo de adquirir produtos derivados da Cannabis contendo Canabidiol.
Dados públicos do processo de compra revelam que a Prati-Donaduzzi apresentou o menor preço durante o pregão no qual também participaram as seguintes empresas: Vier Pharma Distribuidora Hospitalar, Representação e Consultoria LTDA, Indústria Química do Estado de Goiás S A Iquego e a Pró-remédios Dist. De Prod. Farm. e Cosm. Eirelli – ME.
Custo anual por paciente R$ 50 mil
Segundo informações prestadas pela Secretaria de Saúde, 30 pacientes serão atendidos com o Canabidiol isolado – que contém apenas a molécula de CBD na formulação – da farmacêutica. É como se cada tratamento custasse ao município 50 mil reais por ano.
O valor do contrato chama a atenção de médicos e especialistas em regulação. Em média, a depender da patologia e da dose, o tratamento com remédio à base de Cannabis custa entre R$ 400 e R$ 1,5 mil por mês.
Licitação em desacordo com ações judiciais
Para o vice-presidente da Associação Pan-Americana de Medicina Canabinoide (APMC), Dr. José Wilson Nunes Vieira de Andrade, o processo de aquisição do remédio pela Prefeitura de Limeira pode estar em desacordo com a previsão legal de judicialização de um medicamento.
“A partir do momento que o paciente teve a sua judicialização deferida, o município é obrigado a atender o que foi prescrito: a marca escolhida pelo médico e o miligrama indicado. O estado, município e a federação não podem escolher o que vai ser fornecido via judicialização”, detalha o vice-presidente da APMC.
Composição entre os produtos varia
Muitos não sabem, mas a Medicina Canabinoide é personalizada. A composição dos fitoterápicos e fitofármacos varia de um produto para outro. E a resposta entre os pacientes também é única a depender da via de acesso e da formulação.
A presidente da Associação Médica Brasileira de Endocanabinologia (AMBCANN), Dra. Ana Hounie, é quem explica esse entendimento.
CBD isolado não atende todos os casos
“O CBD da Prati-Donaduzzi não vai atender todos os casos, porque a molécula é isolada. Estudos científicos demonstram que o extrato full spectrum (que contém todos os demais canabinoides da planta) é mais eficiente em menores doses”, detalha a psiquiatra.
Inclusive, o paciente que aceitar se tratar com o CBD isolado, terá que passar por novo atendimento médico para trocar a receita. “Se o paciente estiver usando um óleo full, a troca pode não dar certo e retroceder o tratamento”, alerta a Dra. Hounie.
Pode descompensar o paciente
Para completar, o médico pode não concordar com a troca do medicamento.
“Não temos problemas para trocar a receita, desde que a formulação seja compatível. Se não for, coloca em risco a saúde do paciente. Pode descompensar e voltar as crises convulsivas, por exemplo. O óleo full acaba sendo eficaz com menor dose e é mais barato do que o isolado”, explica a médica.
Para a presidente da AMBCANN, não se trata apenas de resolver a judicialização dos pacientes, mas de dar o tratamento correto para cada um deles. “Será que os pacientes vão recorrer? Até lá, como fica o tratamento? Parado”, questiona a médica.
Preço 3 vezes maior do que o de mercado
Outro ponto que levanta suspeita e dá abertura para críticas é o valor do contrato. “Cobrar 3 vezes mais do que o preço de prateleira, é superfaturamento descarado. Isso é um absurdo”, lamenta o Dr. José Wilson.
Para o vice-presidente da APMC, também causa estranheza a farmacêutica, que comercializa um dos produtos mais caros do mercado e que tentou patentear o uso medicinal da Cannabis, vencer a licitação por menor preço.
Licitação direcionada?
“Será que há direcionamento de licitação para a compra do CBD isolado? Há outras empresas que estão nessa briga para fornecer para o estado de São Paulo por preços muito mais competitivos”, orienta o médico.
A reportagem questionou à Secretaria de Saúde de Limeira se, dentro das ações judiciais, havia demanda pelo extrato full spectrum da Cannabis.
Extrato da Cannabis está fora da licitação
E a resposta foi a seguinte: “Os itens mencionados não fizeram parte desta licitação”, sem detalhar se havia prescrição médica para tipo de formulação entre as demandas judiciais.
Ainda foi questionado se a compra em escala seria mais vantajosa para o município e se a Secretaria havia cotado o valor de marcado de outras formulações antes de abrir o processo licitatório.
O que diz a Prefeitura de Limeira?
Por meio de nota, a Secretaria de Saúde da Prefeitura de Limeira respondeu que:
“A escala de vantagem não é mensurada necessariamente de forma direta (em valores). Pode-se afirmar que a vantagem está na capacidade de adquirir, ao longo do período de vigência de um ano da ata, os produtos pelo mesmo preço, sem se sujeitar aos aumentos de mercado durante esse período, o que viabiliza um planejamento orçamentário mais eficaz”, conclui.
Análise dos pedidos médicos
Para a presidente da ABMCANN, antes de dar início ao processo de licitação, a Prefeitura deveria ter feito uma análise dos pedidos médicos para entender qual a demanda dos pacientes e médicos.
“Mesmo diante das evidências de que o óleo full é mais eficiente e barato, nós observamos que essas licitações têm privilegiado o CBD isolado. Não sabemos se é um lobby da farmacêutica. Fica uma suspeita no ar”, analisa a Dra. Hounie.
O que diz o regulatório?
Com relação a parte regulatória, a experiência de advogados, especializados na área, demonstram que as ações judiciais nesses casos devem ou deveriam ser cumpridas na íntegra.
O advogado Leonardo Navarro, membro efetivo da Comissão do Direito da Cannabis do Conselho Federal da OAB, explica que a decisão judicial impõe a compra de um produto específico. Então, a Prefeitura deveria ter analisado as ações, de forma individualizada, antes de dar inicio ao processo de licitação, na avaliação do especialista
“Era preciso ter acesso às decisões judiciais e ver de que forma o juiz decidiu. esse tipo de decisão é suportada por relatórios médicos e prescrição. Então, é importante apurar o que o médico prescreveu”, diz Navarro.
Mas há brechas nas mais diversas situações quando o assunto é compra na administração pública.
De acordo com a advogada, fundadora e CEO da MJDFajundes – Consultoria Especializada em Saúde, Maria José Delgado Fagundes, nos casos em que determinados produtos passam a ter alta taxa de judicialização, é comum o Ministério da Saúde realizar a compra via licitação.
“Os contratos podem ser executados de forma variável. Dependendo da lisura da compra, você vai ter melhores processos instruídos”, diz a especialista em regulatório.
Contratação via RDC 660 ou 327
Para quem não sabe, hoje existem duas regulações, expedidas pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que permitem o comércio de produtos à base de Cannabis no Brasil.
A RDC 660, autoriza a importação direta pelo paciente. Já a RDC 327 autoriza a venda em farmácias mediante registro do produto na Anvisa.
A advogada diz que já questionou a Anvisa para saber que casos de licitação poderiam ser atendidos por meio da RDC 660 ou apenas para produtos que operam via 327.
Judicializações podem ser atendidas via RDC 660
“As repostas foram as mais diversas. Quem define é quem contrata. Para a Anvisa, as judicializações podem ser atendidas via importação (RDC 660/2022), mantendo a individualidade da entrega em casa ou ainda via licitação”, detalha a advogada.
Em uma das respostas, segundo Maria José, a Anvisa afirmou que é permitida a importação, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado para tratamento de saúde, de produto derivado de Cannabi e essa importação poder ser intermediada por entidade hospitalar, unidade governamental ligada à área da saúde, operadora de plano de saúde para o atendimento exclusivo e direcionado ao paciente previamente cadastrado na Anvisa, explica a advogada.
Ainda existem os casos em que o Ministério da Saúde faz pagamento do valor da judicialização na conta do paciente. “Porque é mais barato. No caso de uma compra no valor de R$ 1 mil reais, após a decisão uma decisão judicial, é mais simples transferir a quantia para que cada paciente possa adquirir seu medicamento”, afirma Maria José.
Na interpretação do advogado, mestre em Direito Público e professor do Instituto Plenum Brasil, João Lucas Lembi, os processos judiciais devem ser atendidos como prevê a prescrição médica (dose), com os miligramas indicados e características específicas das formulações.
“A pretensão de fornecimento de medicamento não pode se voltar à marca específica, mas ao princípio ativo que lhe trará o mesmo resultado prático e observará os princípios da isonomia e da eficiência. Mas judicialmente, se os produtos disponibilizados não atendem a receita, novos medicamentos devem ser adquiridos”, alerta o advogado.
O uso medicinal da Cannabis já é legal no Brasil
O uso medicinal da Cannabis no Brasil já tem regulação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por meio das RDC 660 e RDC 327. No entanto, para isso, é preciso prescrição médica.
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