Desde criança, Patrícia Villela entendeu sua situação de privilégio. A partir dessa compreensão, concluiu que tinha uma responsabilidade social, postura que hoje ela considera a herança mais importante que recebeu da mãe. Desde o primeiro ano de vida, até os 27, ela comemorou seus aniversários no mesmo orfanato com 300 meninos de maioria parda e negra. Ela fez amizade com eles e descobriu que muitos tinham pais encarcerados.
Depois que casou, morou um tempo no exterior, onde cursou filantropia. Na volta ao Brasil, foi a campo conhecer mais de perto a realidade do brasileiro. Formou a Plataforma Latinoamericana de Política de Drogas com amigos influentes de países vizinhos, onde entendeu que o foco do problema social de todos eles é uma política antiquada, punitivista e racista, que origina as desigualdades sociais nos países. Com o Instituto Humanitas360 ela produz conhecimento para diminuir essas diferenças e entende que a Cannabis tem papel fundamental nesse processo. Nesta entrevista, ela fala sobre racismo, legislação, legalização de drogas, experiências de outros países e o papel das associações no novo cenário, entre outros temas. E chama a ciência e toda a sociedade para discutir e desmistificar a Cannabis.
Cannabis & Saúde: Como se voltou ao trabalho social?
Patrícia Villela Marino: Eu fui apresentada às diferenças do mundo, das pessoas e da diversidade muito cedo, quando os meus pais começam a celebrar os meus aniversários num orfanato com 300 meninos, eu era uma bebê de um ano. Isso perdurou do meu primeiro até o 27o. aniversário. Eu passei a fase da infância, pré-adolescência, adolescência e fase adulta levada, primeiro pelos meus pais, para celebrar o dia em que todo mundo recebe os parabéns, eu dava os parabéns. No dia em que você é o foco das atenções, os meus pais estavam me ensinando que temos que dar o foco para as pessoas, e não ficar com ele.
Eu não quero dizer que eu entendi isso logo no começo. Muito pelo contrário. Esse entendimento profundo me veio até recentemente. Desde o começo, desde a minha infância e pré-adolescência, eu me debati muito, e a experiência de lidar com o desconfortável e com o diferente e tentar não anulá-lo, mas sim, tentar entender o por quê dessas diferenças, e se assumir quem eu sou, onde estou, e a partir de se assumir não parar por aí.
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Não foram poucas vezes que eu argumentei com a minha mãe que eu não queria ir. Primeiro ninguém fazia isso, e geralmente a gente quer construir as narrativas a partir dos outros. Mas a minha mãe insistiu muito sempre, que aquele era um compromisso, eu tinha que assumir aquele compromisso, primeiro porque era um compromisso dela e depois porque era a maneira dela me ensinar que a vida é cheia de compromissos e responsabilidades. Uma das mais importantes é compartilhar o que você tem, seja capital financeiro, emocional, intelectual. E nesse dia eu compartilhava tudo.
Essas perguntas não eram para o outro, eram para mim mesmo. Por que desse jeito, por que as pessoas tinham que ser tão diferentes. Era nítido, existia um bolo entre nós, uma situação entre nós, que convencionamos de celebrar o meu aniversário desde perspectivas e vivências muito diferentes. Eu, com toda minha família, todos brancos, e eles, sem ninguém das suas famílias, e todos negros ou pardos. Essa diferença era muito gritante, e aquele bolo ali no meio era o que nos separava.
C&S: O Instituto Humanitas360 é a instituição que você preside e que trabalha com sistemas prisionais, promoção de cidadania e inclusão social, e foi criada em 2015. Como vocês escolhem os projetos?
PVM: Com o trabalho de campo e a criação de conhecimento, de um conteúdo que respalde o trabalho de campo. Esse trabalho de campo é sempre voltado para a criação de conteúdo para diminuição de preconceitos. Todas essas famílias de amigos latino americanos já tinham seus trabalhos e organizações de responsabilidade social corporativa, mas nós entendemos que, como cidadãos latino americanos, nós ainda tínhamos uma responsabilidade pessoal e individual que precisavam ser preenchidas.
Então nós nos encontrávamos, fazíamos eventos, convidávamos acadêmicos, autoridades, para nos educar em nossa capacidade cidadã de sermos promotores de transformações sociais que, por algumas razões de tema, de pauta, não necessariamente estavam sendo motor condutor das organizações. Nós viajamos, nos reunimos e percebemos o quanto todos os problemas que dilaceram a América Latina como a gravidez jovem indesejada, o encarceramento, a violência doméstica, tudo tinha o ponto de convergência que é a droga. Essa droga, vista dentro de um lugar comum, precisava ser entendida. Seus efeitos, legalidade, ilegalidade. E não existia isso, só um grande preconceito, essa visão terraplanista, de que a vida das pessoas seguem o mesmo ritmo. Por exemplo, o ditado de que deu certo para mim, tem que dar certo para o outro. Essa é uma visão muito vigente na América Latina, que foi colonizada por dois impérios.
C&S: Como conheceu a Cannabis?
PVM: Dentro da Plataforma Latino-americana de Política de Drogas, nós sempre víamos a Cannabis como uma das drogas, muito demonizada, hostilizada. Mas na sua origem, ela não é droga, ela é uma planta, diferente das químicas que já nascem com o objetivo de entorpecimento. A Cannabis não. Também vimos que ela era meio de subsistência em alguns países da América Latina. Inclusive já tinha uma visão medicinal em alguns países.
A Cannabis, dentro do movimento, sempre foi alvo de interesse e de estudo. Passado algum tempo, eu me defronto com as epilepsias refratárias em crianças. E foi quando os diretores do filme Ilegal, o Tarso e o Rafael me procuraram e me disseram que eu ia querer escutar essa história. Foi quando eu conheci a história das mães.
Eu fiquei bastante tocada, porque eu tinha acabado de ter um filho, e a benção do Daniel é que ele dormia muito, o que é muito bom para o desenvolvimento dele. Enquanto essas mães – e eu me coloquei no lugar delas – não dormiam e seus filhos muito menos. Porque se essa mãe se ausentasse para tomar um banho, a criança poderia ter uma convulsão. Então essa mãe era impotente de fazer alguma coisa. Isso me tomou por inteiro. Foi quando eu me envolvi na produção cinematográfica que se tornou uma grande ferramenta de produção de conhecimento, de sensibilização, de promoção de cultura e de mudança da mentalidade da sociedade brasileira.
C&S: Você usa Cannabis medicinal?
PVM: Não uso, mas não por qualquer problema, não tenho preconceito. Inclusive fiz um exame epigenético para saber qual seria o melhor tipo para melhorar minha qualidade de sono, quem sabe. Vou usar se for compatível e eu não teria nenhum problema em usar, mas acredito que todo uso deve ser precedido de uma boa condução médica, clínica, e de uma posologia adequada.
C&S: Explique melhor como a Cannabis entra como agente social. Quais as discussões que têm sido feitas sobre o tema?
PVM: Parto do princípio de que fé e ciência devem andar juntas. Não podemos acreditar em algo sem respaldo, e esse respaldo tem que vir com a sua crença. Essas duas coisas equilibram a maneira de nós nos posicionarmos e evitam as ideologias e preconceitos. Conhecer o entorno e se desfazer da sua própria história para entender a história do outro é fundamental na criação de uma cultura e movimentos civilizatórios para que nosso o nosso país se torne verdadeiramente uma nação.
Com a Cannabis, nós temos visto muito desentendimento. Uma planta que tem as suas qualidades medicinais absoluta e cientificamente comprovadas, mas que luta contra a ideologia e o preconceito. Uma planta que, se bem manipulada desde suas cepas, que se oficial e seriamente, seja seguida na sua trajetória de plantio e depois, com todos os processos científicos, tiver sua formulação e posologia, essa planta se transforma em remédio. E, em se tornando remédio, nós temos que levar alguns contextos sociológicos, antropológicos, e muito importante, econômicos.
Não podemos seguir num preconceito e numa ideologia de que essa é uma coisa do mal, quando na verdade, ela pode trazer o bem. Não só para uma pessoa enferma, de uma situação em que a Cannabis é prescritível, mas para o familiar, que cuida da pessoa. Eu tenho visto e presenciado a melhoria da qualidade de vida para estes entes familiares que vivem ou convivem com essa pessoa que tem uma situação de enfermidade, cuja prescrição de Cannabis melhora muito, se não vem a curar. Então temos que pensar na situação do outro.
C&S: Como você analisa a situação do Brasil nesse tema?
PVM: Uma abertura de mercado com o plantio nacional vai abrir possibilidades de emprego muito importantes, numa época de crise não só por pandemia, mas pelo que já vinha antes da pandemia e pelo que vem no pós pandemia. Nós abrirmos linhas de pesquisa, de interesse, que são importantíssimas para que o Brasil continue defendendo o protagonismo histórico que já teve em pelo menos duas vezes na área da saúde: a criação dos genéricos e dos medicamentos que lutaram contra a Aids. Nós temos um posicionamento importante do Brasil, disruptivo, que afrontou pensamentos que julgavam que o país não poderia fazer o que estava fazendo. E nós temos que levar em consideração uma questão histórica, e me permito chamar de condição antropológica que é a nossa situação de desigualdade social.
C&S: Existe um forte aspecto de discriminação envolvido.
PVM: Nós não olhamos para a nossa abolição como se ela tivesse realmente acontecido. Existe uma perpetuação de traços extremamente tradicionais, culturais, conscientes, inconscientes e subconscientes no brasileiro, de que as raças são diferentes, principalmente na sua cor. Hoje nós notamos que isso se faz presente no sistema penitenciário. E também que a maioria dos nossos presos, e aí eu quero falar principalmente das pessoas privadas de sua liberdade feminina. A maioria dessas mulheres são presas por tráfico.
Eu gosto que a gente comece a traçar um nexo de causalidade. As pessoas não tiveram oportunidade, inclusão feita, e alguma inclusão que foi feita num passado recente, agora começa a ser desfeita. Foram vítimas de ódio, violência e de um olhar de desigualdade muito marcado. Portanto não fazem parte dos entornos do privilégio financeiro e acabam sendo relegadas à criminalidade. E não é que elas foram procurar a criminalidade. Elas acabam se envolvendo com o tráfico, e geralmente as mulheres são vítimas dessa situação e acabam sendo presas, e quase sempre em flagrante.
C&S: Isso porque a legislação é antiquada?
PVM: Existe uma condição jurídica em que o crime de tráfico é tido como hediondo, e eu entendo que o legislador quando fez essa legislação, achou que quanto mais eu penalizar – veja a mentalidade punitiva – quanto mais eu crio uma situação de medo, de distanciamento, de prevenção, essa pessoa não vai se meter com o tráfico. Ledo engano. Porque existe todo um racional por detrás que, ou essa mulher não conseguiu atingi-lo por todas as privações que ela teve, inclusive as educacionais, de saúde, ou quando essa mulher se viu, ela já estava lá.
O fato é que não houve esse raciocínio de prevenção que o nosso legislador, na maioria das vezes legislando dentro de um gabinete com ar condicionado, não conseguiu perceber ou medir o nível de temperatura e pressão do território e acaba legislando punitivamente e não reconciliatoriamente. A mulher vai ser presa, e o que acontece com a família: total disrupção e desagregamento. Estudos mostram que uma mulher mantém uma família, um homem não necessariamente. Esse pilar é tirado do cenário familiar – e eu não digo que seja um cenário perfeito, é de grande pobreza e fragilidade, mas seria importante aquela figura estar ali. E ela é levada para o isolamento.
C&S: Como são as experiências mais inclusivas?
PVM: Na Colômbia, eu fico muito feliz em dizer que o propositor da lei foi um dos membros da Plataforma Latinoamericana de Políticas de Drogas, o então senador Juán Manuel Galán, que hoje faz parte do conselho consultivo global do Humanitas360. Eles viram as experiências anteriores e melhoram a proposta. E é na regulamentação que problemas estão sendo discernidos.
Aí o Brasil tem ganho com isso. Nos últimos anos, nós temos corrido enormes riscos. Médicos ameaçados de perderem CRM, pessoas ameaçadas na sua liberdade de se expressar, mas ainda assim mantivemos um certo movimento sincronizado e contínuo de produção de conhecimento – e aí a produção cinematográfica tem um lugar especial porque é altamente sensibilizatória e é expansiva, atinge muitas pessoas.
Mas nichos da sociedade civil: a comunidade religiosa, de cientistas, de empresários, financeira, devem ser trazidas a conversas, eventos que sejam informativos, debatedores, elucidatórios dessa questão. Hoje eu acredito que teremos um ordenamento jurídico que fez com que esses legisladores saíssem dos seus gabinetes com ar condicionado e fossem visitar esses países e o campo, e escutassem a sociedade civil, de forma desprendida, como verdadeiramente um agente público.
E nós construímos uma cultura canabinóide para que essa cultura respaldasse o ordenamento jurídico. Isso talvez seja inédito no Brasil, e eu fico muito feliz de falar sobre isso, porque geralmente nós vemos leis sendo feitas e elas não colam. Porque elas não chegam à população, elas não falam com o cidadão. Nesse caso nós temos uma lei que fala com o cidadão. A lei olhou para as outras e melhorou. Mas não só isso, ela escutou o seu constituinte, aquele que vota. E hoje nós podemos ter um ordenamento não perfeito, mas com uma humildade que eu não vi até hoje acontecer.
C&S: Como você avalia o PL 399?
PVM: Eu admiro e defendo o auto cultivo por conta das mães. Elas são heroínas. Se hoje estamos chegando nesse ponto de exercício cívico, essas mães tiveram uma importância fundamental. Também acho que algumas concessões tiveram que ser feitas para que tivéssemos uma lei efetivamente votada e aprovada. Entendo que o auto cultivo vai ter que ser objeto de mais debate e discussão para que uma maior camada da população entenda a necessidade e regulamentação dele. Não é qualquer auto cultivo que estamos falando. O das associações tem um lugar especial. Eu entendo o cuidado e a proteção do legislador para que a massa não desandasse e esse auto cultivo não parecesse que agora a gente abriu as comportas e cada um faz o que quer. Na regulamentação, ainda precisamos discutir algumas coisas, esse não é assunto consolidado, e faz parte desse crescimento. Eu acho importante.
Quanto às quantidades (de porte: tráfico ou uso pessoal), é uma discussão importantíssima, porque leva à discussão do encarceramento e do uso adulto. Houve outra dose de cuidado para que esta discussão não influenciasse a discussão da Cannabis medicinal. Porém é extremamente necessária porque é de justiça racial, e social.
C&S: Você acha melhor a divisão entre Cannabis medicinal e recreativa?
PVM: Gosto que as coisas sejam discutidas num sentido amplo, para que não compartimentalizemos o entendimento das pessoas. Mas entendo que, nessa hora, o legislador quis dar uma primazia à discussão da medicinal para que as pessoas que realmente dependem do medicamento para sua sobrevivência. E depois podemos continuar com a discussão que é realmente racial, social, humana.
Mas isso poderia indeferir uma lei que fala da continuidade da vida de pessoas. Nós do Humanitas360 só começamos a discutir sobre isso. A batalha da legalização da maconha é ainda mais difícil. São duas batalhas humanas e humanizadoras. Uma vida não é mais importante que outra, mas tem que ter uma certa ordem na discussão porque senão vai virar uma anarquia. Eu sou muito sincera em dizer que, com uma mentalidade extremamente conservadora, de grande parte do nosso congresso, essa discussão como eu gostaria que ela fosse, seria muito provavelmente inviabilizada. Então eu vejo uma necessidade de fazer uma certa divisão, mas não entender que os assuntos são antagônicos, divisórios, ou que um é mais importante que o outro, mas é talvez uma estratégia cívica importante para esse momento.
C&S: Você é a favor da legalização de todas as drogas?
PVM: Não sou a favor de legalizar todas as drogas, porque infelizmente hoje nós não temos o conhecimento do que são todas as drogas. As químicas que são produzidas por aí, que são consideradas drogas, fogem do nosso conhecimento. Hoje é uma, amanhã é outra. E também não temos o conhecimento científico de qual é a potência destrutiva dentro do organismo humano. Então eu não diria que sou a favor de todas as drogas. O ‘todas’ ficou muito amplo nos dias de hoje. Mas sou a favor da legalização de várias delas, inclusive de alguns psicodélicos que hoje já estão sendo cientificamente estudados em laboratório, com grande potencial de melhoria de qualidade de saúde. Tem alguns laboratórios dentro de universidades que estão estudando a ayahuasca por exemplo, com grande potencial de melhoria de qualidade de vida com pessoas com depressões muito profundas, e sem medicamento que alcance.
C&S: Como vê a sobrevivência das associações mediante a entrada das grandes empresas?
PVM: Essa é uma batalha muito importante de ser lutada. Nós precisamos – e aí a importância da lei apresentada – prezar o cultivo nacional para sair da dolarização. Então, eu acredito que as associações têm um papel importantíssimo porque elas mostram, mesmo que embrionariamente, como pode existir mercado com acesso. Como pode e deve existir um mercado que não seja tomado pela necessidade ou pelo objetivo do lucro.
Nós temos, junto com uma organização chamada GreenHub, um trabalho no sentido de preparar o mercado para que seja um mercado de acesso econômico e portanto socialmente justo. Junto com o GreenHub, eles têm eventos e reuniões. Eles têm olhado e aproximamado os grandes players internacionais para entenderem que tipo de mercado tem que existir no Brasil.Tem sido um movimento de educação e de criação de certos limites para que o mercado não seja exploratório, mas que seja um exemplo nítido de que é possível viver o novo capitalismo, de participação e não de exploração e de acumulação. Eu vejo as associações como preconizadoras desse mercado justo e com acesso econômico.