Não há como falar sobre essa questão sem nos debruçarmos sobre seu histórico. A sua história nos conta de onde viemos e para onde vamos. De acordo com as informações de documento do Ministério das Relações Exteriores, de 1959 e contado pelo nosso querido Carlini, ela foi introduzida na América portuguesa em 1549 por escravizados africanos que traziam com eles sementes de cânhamo em “…bonecas de pano, amarradas nas pontas das tangas…”.
A Real Feitoria do Linho Cânhamo, instalada em 1783 pela Coroa Portuguesa, era a empresa responsável pelo plantio da planta e a produção de sua fibra. Trata-se de um empreendimento que durou quase meio século, encerrado somente em 1824, durante o Império do Brasil. Ainda no mesmo século XVIII, em 1785, o cultivo da Cannabis na América portuguesa foi incentivado pelo envio ao porto de Santos de dezesseis sacas com trinta e nove alqueires de sementes da planta. Além disso, o Vice-Rei recomendava o plantio de cânhamo ao Capitão General e Governador da Capitania de São Paulo por ser este de “interesse” para a Metrópole.
Após cerca de 150 anos de uso da Cannabis no Brasil, na década de 1930, a repressão ao uso da maconha ganhou força
Possivelmente essa intensificação das medidas policiais surgiu, pelo menos em parte, devido à postura do delegado brasileiro na II Conferência Internacional do Ópio. Realizada no ano de 1924, em Genebra, pela antiga Liga das Nações. Essa parte da história é bem conhecida. Importa aqui pontuar que a partir deste marco, o Brasil passou cerca de mais 84 anos vivendo o proibicionismo em relação ao uso da Cannabis. Apesar da publicação da Lei 11.343/2006 que autorizou o uso medicinal e a pesquisa com a planta no Brasil, de lá pra cá ainda foram necessárias diversas lutas para a garantia do acesso a essa alternativa terapêutica, no atual modelo que temos no país. O movimento por sua reivindicação não parou mais e tudo indica que nada vai contê-lo.
Em 2019 a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) publicou a Consulta Pública (CP) nº 665. Nela se estabeleciam os critérios sanitários para o plantio da Cannabis no Brasil. Contudo, essa CP passou por “nocaute político” e foi sobrestada, não pela maioria, mas por dirigentes máximos da ANVISA a época e continua assim até a presente data na Agência Reguladora.
De lá até hoje, olhando para essa iniciativa desafiadora, os seus cinco anos de vigência teriam proporcionado um salto para a garantia do acesso dos brasileiros à planta, com base em seu custo mais atrativo. Além disso, a CP poderia ter diminuído as repercussões e impactos trazidos pela judicialização da Cannabis para uso medicinal.
Projetos de Leis tramitam no Congresso Nacional, alguns prontos para dar ao povo brasileiro a equivalência da utilização de produtos sanitários semelhantes a vários países do mundo com produção nacional da Cannabis
Outros projetos tramitam por iniciativa popular e outros começam a fatiar iniciativas mais amplas. Nessa toada, questões econômicas e sociais sobre o tema ficam em segundo plano. Em contrapartida, em ritmo mais célere, apresenta-se o grande volume da judicialização da questão e processos legislativos nas esferas estaduais e municipais, para garantir acesso, fomento à pesquisa e a comemoração ao dia da Cannabis. Nessa altura, compromete a Política de Saúde local e depende de outras iniciativas legais para o fomento do uso da Planta.
Em 2020, a Comissão de Drogas Narcóticas das Nações Unidas aprovou a “reclassificação da maconha e da resina derivada da cannabis para um patamar que inclui substâncias consideradas menos perigosas segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS)” (COMISSÃO, 2020). A ação da ONU ilustra a recente tendência global de maior abertura para a discussão sobre a legalização da Cannabis. Nesse sentido, a ANVISA já poderia ter assimilado esta reclassificação, afinal perfazem três anos de sua aprovação, tempo suficiente para a maturação das discussões internas sobre a questão e a integração do país nesta agenda global. É relevante para essa questão a influência de um importante diálogo com outros agentes da sociedade civil para fortalecer os decisores.
Em 2023, o Executivo Brasileiro arriscou alguma resposta à questão do plantio
O Ministério da Justiça/Conad criou um Grupo de Trabalho – GT para discutir o tema. Após meses de discussão, seus trabalhos estão chegando ao fim, com o compromisso de apresentar em junho de 2024 a minuta de Decreto que sugere os critérios para o plantio da Cannabis. Neste pretende-se diferenciar os critérios para empresas e associações sobre o plantio, nos quais levarão em conta as experiências de outros países, como Nova Zelândia, Argentina e Uruguai. Esse será um passo definitivo para a regulamentação e autorização do plantio da Cannabis para uso medicinal no Brasil.
Aqui teremos que esperar mais algum tempo para que esta minuta passe pelas tramitações governamentais até a sua publicação. Depois disso teremos dado mais um passo para a garantia da qualidade, segurança e eficácia dos produtos da Cannabis medicinal, uma vez que tudo começa no plantio. Será um movimento importante para a tão sonhada redução do custo dos tratamentos com a planta e a ampliação do seu acesso. Nesse sentido, significaria a efetivação da Política Nacional de Medicamentos, definida pelo uso do medicamento correto, na hora certa, pelo tempo necessário e com o menor custo para o paciente, seus familiares e a sociedade. Entretanto, no atual cenário, a ausência organizada e eficiente do Estado com base em uma Política Nacional de Assistência Farmacêutica que garanta acesso a todo produto prescrito faz com que a maioria dos casos para o acesso aos produtos de cannabis se efetive unicamente pela via de judicialização. Isso faz com que a totalidade da sociedade pague pela conta dos tratamentos necessários aos pacientes.
Além disso, o Brasil atravessa um cenário controverso no que se refere ao IFA (insumo farmacêutico ativo, as matérias-primas)
Para a produção de medicamentos no Brasil, a sua dependência internacional chega a 95%. No caso dos produtos de Cannabis, essa taxa só não é de 100% porque é concedida autorização judicial para essa finalidade em ações bem fundamentadas.
Sobre a questão, destaca-se que com base na Diretoria Colegiada e em reunião realizada por meio do Circuito Deliberativo (CD 637/2022 – Autorização de Excepcionalidade, de 27/6/2022) a ANVISA entendeu que existe uma disposição infra legal no artigo 18 da RDC 327/2019 que permite a importação de matéria-prima para purificação e obtenção de Canabidiol (CBD) e fornecimento para empresas que irão fabricar produtos de Cannabis e aquelas que farão o desenvolvimento de novos produtos. Entretanto, é imperioso destacar que na Agência, nesse momento, há um procedimento complexo e até controverso para o andamento da Cota inicial para os testes iniciais da produção de matéria prima nacional. Com certeza, a efetivação dessa disposição infra legal seria mais um marco na história da Cannabis em terras brasileiras e propiciaria segurança jurídica para os potenciais investidores no mercado canábico.
Com base nas diretrizes da democracia, os poderes do Estado devem agir em conformidade com os interesses da sociedade. Por se tratar de tema sensível e que envolve uma questão jurídica com grande repercussão nos meios sociais, acadêmicos e institucionais a cerca de um ano, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julga a utilização de substratos da Cannabis Sativa cultivada em solo nacional para a produção de medicamentos. Desde então, houve a suspenção da tramitação dos processos pendentes em território nacional, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão, o que trouxe um imenso prejuízo para a resolubilidade do Direito à Saúde de vários pacientes. A Ministra Relatora definiu para 25 de abril deste ano a realização da audiência pública que vai produzir “subsídios técnicos, jurídicos ou científicos aptos a embasar as conclusões do STJ”, permitindo que os cidadãos participem da decisão da Corte. Espera-se que se defina na Audiência Pública um prazo para a determinação produzida nessa ocasião.
É possível observar que ao longo da história do plantio de Cannabis no Brasil é determinante a participação do Estado, movido ou não pelos interesses políticos de diferentes grupos e com a participação da sociedade civil, de acadêmicos, de conselheiros de categorias profissionais, de religiosos e dos pacientes
O movimento para a regulamentação e autorização do plantio da Cannabis para fim medicinal no Brasil busca resultados econômicos e sociais que estão diretamente ligados ao princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da Constituição de 1988. O objetivo é ampliar o acesso à Cannabis para fim medicinal, garantindo menor custo e seguridade jurídica, mas com segurança, qualidade e eficácia dos produtos da Cannabis medicinal. Por fim, precisamos acelerar as discussões e regulamentações sobre a questão do plantio da Cannabis ou poderemos continuar levando décadas para cada conquista. É a danada da História, que vai e vem!
Referências bibliográficas:
CARLINI, E. A., A história da maconha no Brasil. In: CARLINI, E. A.; RODRIGUES, E.; GALDURÓZ, J. C. F. Cannabis sativa L. e substâncias canabinóides em medicina. São Paulo: CEBRID, 2005, p. 6.
FONSECA, G. A maconha, a cocaína e o ópio em outros tempos. Arq Polic Civ, 34: 133-45, 1980.
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