Neste mês de junho completa um ano que o PL 399/2015 – que regulamenta o cultivo da Cannabis para fins medicinais e industriais – foi aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados sem perspectiva de ser pautado para o plenário em ano eleitoral.
Quem acompanhou de perto lembra que a votação emblemática foi bastante tumultuada com bate boca e até empurrão. O presidente da Comissão Especial da Cannabis, deputado Paulo Teixeira (PT/SP), recorda que inicialmente o texto tinha ampla maioria para ser aprovado no colegiado composto por 34 parlamentares. “Eles foram trocando e substituindo os integrantes da Comissão Especial. Mas ganhamos mesmo assim – com a diferença de um voto – com todo poder que havia contra nós, inclusive pressão vindo do próprio presidente da República”, relembra Teixeira. O presidente Jair Bolsonaro já afirmou publicamente que vetará o projeto no caso de ser aprovado pelo Congresso.
Na Comissão Especial da Cannabis, o PL 399 recebeu 17 votos a favor e 17 contrários. A redação foi aprovada graças ao voto do relator da proposta, o deputado Luciano Ducci (PSB/PR), que desempatou o placar. A matéria que tramitava em caráter conclusivo, ou seja, deveria seguir direto para o Senado, ainda precisará enfrentar o debate no plenário. O deputado Diego Garcia (Podemos/PR), contrário ao cultivo da Cannabis em solo brasileiro, coletou 129 assinaturas para exigir que o texto também seja analisado por todos os 513 deputados. De acordo com o argumento do parlamentar na época, a discussão por ser polêmica, precisaria envolver todo o parlamento e não apenas ficar restrita à uma Comissão que não abriga nem 10% dos deputados da Casa.
Há exatamente um ano esse recurso espera ser pautado pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira. Caso seja aprovado pelo plenário da Casa, os parlamentares voltam a analisar o texto que já foi aprovado na Comissão Especial. Por outro lado, se o recurso for rejeitado, o PL 399 segue o seu rito original e caminha para a tramitação no Senado. “Eu conversei com o presidente Lira, e ele reconhece – nessa agenda da Cannabis medicial – que o Congresso tem maioria para votar o PL 399. Ele (Arthur Lira) disse que não pauta por causa da pressão de algumas bancadas religiosas. Eu acho que deveria colocar em discussão e debate, para que nós fossemos à voto. E, assim eu espero. A sociedade está pagando caro, ainda mais com o dólar nesse valor que está! As pessoas para comprarem medicamentos no exterior, para importar com um dólar tão alto, é algo proibitivo”, defende Teixeira.
O texto aprovado teve como base o projeto do deputado Fábio Mitidieri (PSD-SE) de 2015. No primeiro momento, a proposta alterava a Lei Drogas (11.343/2006) apenas para autorizar no Brasil a venda de medicamentos originários da Cannabis. O relator Luciano Ducci, entretanto, apresentou uma redação substitutiva mais ampla, que prevê o cultivo tanto para fins medicinais (uso humano e animal), assim como para produção científica e industrial, por meio do cultivo de cânhamo – uma subespécie da Cannabis que possui níveis insignificantes de THC (Tetrahidrocanabinol), substância psicoativa da maconha responsável pelos efeitos recreativos da planta. “O projeto está tecnicamente muito bem construído e subsidiado. Pesquisas indicam que mais de 70% da população aprovam o uso da Cannabis para fins medicinais. Esse caminho não tem mais volta. Essa discussão sobre o cultivo da Cannabis no Brasil é o maior atraso que existe. Todas as normas (previstas no PL) são superseguras. O Ministério da Agricultura, a Anvisa e a Polícia Federal estarão envolvidos. O mundo inteiro está produzindo, só nós somos incapazes de produzir. Isso é muito atraso”, analisa o relator.
O deputado Ducci reconhece que o atraso na votação da pauta tem provocado a justiça no sentido de legislar sobre o assunto. “O Judiciário acaba fazendo a sua parte, e às vezes de uma forma não muito boa tecnicamente. O cultivo individual vem sendo liberado em cima do desespero das famílias de não conseguirem ter acesso ao medicamento de Cannabis para atender às demandas das suas famílias. Só que o controle da qualidade desse produto produzido a nível domiciliar é muito questionável”, alerta o relator do PL 399/2015.
Uma das principais críticas ao texto é que o PL não libera o auto cultivo, não descriminaliza o uso da planta, não prevê reparação social e estaria favorecendo apenas à indústria medicamentosa. “A gente acata as críticas. A questão da liberação da planta para o uso recreativo é uma polêmica a menos na discussão. O uso recreativo não deve entrar na questão medicinal da Cannabis. A questão do auto cultivo é uma solução que as pessoas estão encontrando agora. A partir do momento que nós tivermos um produto sendo produzido no Brasil, com qualidade, com custo baixo, distribuído pelo SUS, não vai ser mais necessário as pessoas fazerem o auto cultivo, onde não existe um controle de qualidade dos níveis de THC e CBD. Eu acredito muito na aprovação do projeto e na distribuição gratuita pelo SUS da Cannabis para os pacientes que têm essa necessidade e prescrição médica”, defende Ducci.
Muitos parlamentares ouvidos no quadro “A Cannabis no Congresso” alegam se sentir desconfortáveis com a aprovação de um texto que vai liberar o cultivo da Cannabis para a produção de cosméticos e alimentos, por exemplo. Entretanto, a maioria desconhece a informação de que a planta utilizada para fins industriais não possui efeitos alucinógenos e tem aplicabilidade em mais de 25 mil atividades na indústria. “O uso industrial, entre eles o comestível, é feito a partir de uma planta sem efeitos psicoativos, que é o cânhamo. Os comestíveis são ricos em Ômega 3. Eles têm uma potência alimentar importante e já incorporada por vários países”, explica o deputado Paulo Teixeira.
Países como o Paraguai, por exemplo, vem substituindo o cultivo da maconha ilegal pelo cânhamo industrial. O país vizinho já é a terceira maior potência industrial do cânhamo no mundo, só fica atrás da China e do Canadá. Além do produto in natura, a indústria paraguaia lançou mais de 200 produtos terminados que o país comercializa em farmácias, shoppings centers e supermercados de nações como Holanda, Reino Unido, Costa Rica, Caribe, México, Estados Unidos, Canadá, Austrália e boa parte do leste europeu. Esse crescimento exponencial evidencia não apenas as potencialidades do cânhamo e a demanda mundial, assim como a urgência pela reparação social depois de quase 100 anos de criminalização da planta, uma vez que o governo daquele país trabalha para incluir a agricultura familiar e as comunidades indígenas no cultivo legal da planta.
O que diz o PL 399?
A redação aprovada, até agora, permite o cultivo, processamento, pesquisa, armazenagem, transporte, produção, industrialização, manipulação, comercialização, importação e exportação de produtos à base de Cannabis em todo o território nacional, desde que feito por pessoa jurídica autorizada pelo poder público. A redação também prevê o cultivo por meio das chamadas “Farmácias Vivas” do Sistema Único de Saúde, que poderão dispensar produtos desde que sejam realizados testes de validação a respeito dos teores dos principais canabinoides contidos na planta, o que também vale para as associações de pacientes sem fins lucrativos.
Ao contrário dos que alegam que a regulamentação do cultivo pode favorecer o desvio de finalidade para o uso recreativo, o PL prevê condições rígidas de controle como por exemplo:
– Cota de cultivo para atender a demanda pré-contratada ou com finalidade pré-determinada, que deverá constar no requerimento de autorização para o cultivo;
– Rastreabilidade da produção (com QRcode) desde a aquisição da semente até o processamento final e o seu descarte;
– Plano de segurança, de acordo com os requisitos previstos na lei, objetivando impedir o desvio de finalidade;
– Mudas e sementes certificadas;
– Cultivo exclusivamente feito em casa de vegetação – estrutura montada para cobrir e abrigar artificialmente plantas;
– Videomonitoramento e sistema de alarme de segurança;
– Muros ou estruturas de alambrado com no mínimo dois metros de altura para impedir a visualização do plantio;
– Presença de um responsável técnico pelo cultivo;
– Instalação de cercas elétricas para impedir a entrada de pessoas não autorizadas;
– Indicação de proveniência e caracterização do quimiotipo da planta de Cannabis;