Quando uma empresa desenvolve um produto inovador e único, imediatamente ela busca garantir a patente desta inovação. E após a conquista, o inventor costuma divulgar o feito com orgulho. Não foi o que aconteceu com a farmacêutica paranaense Prati-Donaduzzi que desde junho de 2020 detém uma patente de canabidiol diluído em óleo no Brasil. Agora, também de forma silenciosa, a empresa reivindica outros 18 canabinoides. Os documentos foram obtidos com exclusividade pelo portal Cannabis & Saúde. Especialistas do setor alertam que as patentes criarão um monopólio da Cannabis medicinal no país, inviabilizando um mercado competitivo e preço justo aos pacientes.
No Brasil, é o Instituto Nacional da Propriedade Intelectual (INPI) o órgão responsável por estas conceções. A carta patente do INPI BR 112018005423-2 concede à Prati-Donaduzzi a “invenção” de “uma composição farmacêutica oral de canabidiol” “útil no tratamento de distúrbios neurológicos, em especial a epilepsia refratária”.
A patente confere à Prati-Donaduzzi “proteção a uma composição oral líquida caracterizada por consistir de 20 a 250 mg/mL de canabidiol (…) em peso da composição, óleo de milho e excipientes”, apesar da reivindicação citar quase 30 óleos gordurosos diferentes, que incluem sementes, frutas e peixes. A patente tem validade de 20 anos, contados a partir do pedido, em 2016 – apenas 4 anos atrás, enquanto a média dessas concessões costuma demorar mais de uma década.
A Prati-Donaduzzi possui hoje o único derivado de Cannabis com autorização sanitária da Anvisa para ser vendido em farmácias, conforme a RDC 327/2019. Ele custa caro, R$ 2,5 mil, uma vez que os insumos são importados, já que o plantio por aqui é proibido. Pelo menos outras quatro empresas já entraram com pedido junto à Anvisa para obter a mesma licença, mas até agora nenhuma outra foi concedida.
As patentes são uma forma de garantia para empresas que descobrem e/ou desenvolvem produtos inovadores. Elas também estão presentes no mercado de Cannabis. A gigante do setor GW Pharma, do Reino Unido, por exemplo, possui a patente do Mevatyl®️, produto à base de CBD e THC vendido no Brasil para esclerose múltipla. Porém, a invenção prevê uma formulação específica e isolada e não um espectro tão amplo. Vale ressaltar que o pedido de patente concedido pelo INPI no Brasil foi rejeitado nos EUA e Europa.
O neurocientista Fabrício Pamplona, doutor em farmacologia de canabinoides, explica que a solubilidade do composto CBD é muito próxima de 200 mg/ml. E alcançar uma concentração superior ao que prevê a patente é difícil e traz instabilidade.
“O INPI concedeu uma ‘patente guarda-chuva’, porque prevê uma extensa faixa de dose e basicamente cobre a maioria dos usos conhecidos de CBD. Então é uma tentativa de se criar uma barreira de entrada artifical no mercado”, afirma o neurocientista, que também empreende no ramo da Cannabis no Brasil: ele está à frente da Propium, uma startup que realiza testes genéticos para avaliar a sensibilidade e intolerância de pacientes aos canabinoides.
“Não se pode patentear o que é estado da arte”
A molécula do canabidiol foi descoberta e isolada em 1963 pelo químico búlgaro-israelense Raphael Mechoulam, num estudo da Universidade Hebraica de Jerusalém. Desde então, inúmeras publicações científicas têm demonstrado seu potencial no tratamento de doenças, sobretudo em convulsões de pacientes epilépticos. O precursor dessas pesquisas foi o brasileiro Dr. Elisaldo Carlini, que nos anos 1980 comprovou o uso do CBD no controle das crises em estudo publicado pela Unifesp em parceria com a Universidade Hebraica.
Já em 1993, uma pesquisa da USP chamava atenção para uma maior eficácia e estabilidade do CBD dissolvido em óleo de milho. O autor da pesquisa é o médico Dr. Antonio Zuardi, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto e que aparece entre os inventores do CBD da Prati-Donaduzzi. Todas essas publicações e muitos outros trabalhos anteriores deveriam, em tese, impedir a concessão da patente.
“É uma patente fraca, porque tem que ter inventividade, novidade e descrição da tecnologia. A molécula do canabidiol é estado da arte, e todos os processos de obtenção dela não são nenhum segredo há décadas. Não se pode patentear uma molécula neste estado dentro dos direitos da propriedade intelectual”, explicou ao portal Cannabis & Saúde uma fonte da área farmacêutica com quase 30 anos em Pesquisa e Desenvolvimento.
“Além disso, dissolver uma molécula em uma base oleosa é andar para frente em termos de tecnologia farmacêutica. Não há nada de novo nisso”, concluiu o profissional.
O estado da arte é uma referência ao estado atual de conhecimento sobre um determinado tema.
Outra brecha apontada pelo pesquisador é a de que quando uma patente expira, a invenção pode ser reproduzida por outras empresas. Este é um benefício para a sociedade entendido desde a concepção das patentes, séculos atrás. Porém, a invenção outorgada à Prati “não traz informações necessárias sobre o processo industrial farmacêutico”.
Patente pode estar ligada à possível incorporação pelo SUS, diz cientista
Para o neurocientista e empresário Fabrício Pamplona, a patente pode estar relacionada com a iniciativa do governo federal de incluir o Canabidiol da Prati-Donaduzzi no SUS. A possível inclusão está em fase de consulta pública.
“A média do INPI é de 12 anos. Então eles não só concederam sem inventividade, como em tempo recorde, o que é no mínimo suspeito e casa com os interesses da empresa de entrar no SUS. Porque quando se tem um produto patenteado, há uma justificativa da compra sem licitação. Isso acontece para qualquer tecnologia, porque aí se consegue justificar que não há concorrente”.
A especulação é baseada na proximidade entre a farmacêutica e o governo. Em outubro de 2020, Prati e Ministério da Saúde fecharam um convênio de transferência de tecnologia de 5 anos. O convênio foi feito sem chamada pública, o que motivou os membros da Comissão da Cannabis na Câmara a solicitarem informações ao Ministério sobre o contrato.
O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, já informou publicamente que o governo busca incluir o CBD no SUS. Essa medida é uma clara resposta contra o Projeto de Lei 399/15, que legaliza o plantio de Cannabis com fins medicinais e industriais no Brasil. Por fim, o maior opositor da Cannabis medicinal dentro da base do governo Bolsonaro, deputado Osmar Terra (MDB-RS), é um defensor dos projetos da farmacêutica para a Cannabis, tendo se reunido com a empresa por algumas vezes quando era ministro, em 2019.
“Vai inviabilizar o setor de Cannabis no Brasil”
Para o empresário Jaime Ozi, vice-presidente da healthtech de Cannabis medicinal OnixCann e ex-country manager da gigante da Cannabis Canopy Growth no Brasil, esta situação prejudica não só o setor como um todo, mas sobretudo os pacientes:
“O produto é único e não necessariamente o melhor, com preço muito alto, e essa patente sendo exercida vai inibir a concorrência e novos investimentos. Quem mais vai perder é o paciente, será o maior prejudicado. Então as empresas do setor estão muito preocupadas. Vamos convir, você conseguir uma patente de um sintético dá para entender. Agora patentear algo que é de domínio público, como o CBD, o óleo de CBD, não faz nenhum sentido. Não inovaram em absolutamente nada. Tudo que dizem ter criado já existia no Brasil e em outros países”.
Já o empresário Marcelo de Vita Grecco, cofundador da aceleradora de statups de Cannabis The Green Hub, traz uma visão mais ampla e menos preocupada. Ele lamenta que o setor não esteja explorando o tetrahidrocanabinol, indispensável na maioria dos tratamentos.
“Eu tenho uma visão que os mercados estão cometendo um grande erro de falar apenas do CBD isolado e não tratar o THC também e a planta como um todo. CBD trata cerca de 30% das condições. Então eu não vejo essa corrida de patentes ser algo relevante e preocupante agora”.
Contudo, no Brasil, produtos acima de 0,2% de THC precisam de uma receita especial (amarela), necessária para produtos controlados como a morfina.
“É verdade que os autores da patente são pioneiros da área, mas tem que estar passeando em Marte há uns 30 anos e ter recém voltado ao planeta Terra pra acreditar que esse pedido descreve uma tecnologia original quando foi escrita em 2016”, ironiza o cientista Fabrício Pamplona.
Prati quer patentear agora mais 18 canabinoides
Além da carta patente – que já está em vigor – a Prati-Donaduzzi também reivindica outros 18 dos 85 canabinoides conhecidos na planta da Cannabis, através de um segundo pedido em análise no INPI (BR 12 2019 017588 8).
A empresa reivindica uma “composição oral líquida caracterizada por compreender canabinóides em um solvente oleoso” na concentração de 5 a 500 mg/mL. São esses os canabinoides:
- tetrahidrocanabinol (D9-THC)
- tetrahidrocanabinol (D8-THC)
- tetrahidrocanabinol-ácido (THC-A)
- tetrahidrocanabivarin-ácido (THCV-A)
- canabidiol ácido (CBD-A)
- canabidivarina ácido (CBDV-A)
- canabigerol-ácido (CBG-A)
- canabigerovarin (CBGV)
- canabinovarin (CBNV)
- canabigerol (CBG)
- canabicromeno (CBC)
- canabiciclol (CBL)
- canabivarin (CBV)
- tetrahidrocanabivarin (THCV)
- canabidivarin (CBDV)
- tetrahidrocanabinol (THC)
- canabidiol (CBD)
- canabinol (CBN)
- além de seus sais ou ácidos farmaceuticamente aceitáveis e combinações dos mesmos.
Com relação ao solvente oleoso, a farmacêutica lista um grupo que compreende quase 30 vetores diferentes, que vão do algodão ao azeite de oliva, passando por óleos de frutas, sementes e peixes.
O Cannabis & Saúde encaminhou uma série de questionamentos à Prati-Donaduzzi. Porém, a empresa informou apenas que “não será possível atender à demanda”. Também encaminhamos um pedido de entrevista ao professor Dr. Antonio Zuardi à assessoria de imprensa da USP, mas o pedido foi negado. O Cannabis & Saúde mandou então os questionamentos à imprensa da USP ainda na quinta-feira (04), mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
INPI garante que patente atendeu todos os requisitos técnicos
Em nota encaminhada ao portal Cannabis & Saúde, o Instituto Nacional da Propriedade Intelectual informou que a patente atende os requisitos técnicos. O órgão reconhece que o canabidiol é um produto de origem natural e, portanto, não é considerado invenção e esclarece que questionamentos sobre a patente devem ser feitos no próprio instituto. Confira a nota na íntegra.
“A patente de invenção BR112018005423-2 confere proteção a uma composição oral líquida caracterizada por consistir de 20 a 250 mg / mL de canabidiol (CBD), com pureza igual ou superior a 99,4%, em peso da composição, óleo de milho e excipientes. A concessão da patente ocorreu após exame técnico do INPI e anuência prévia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), respeitando-se as normativas e legislação vigentes. Todas as etapas administrativas relativas ao trâmite processual da patente foram integralmente seguidas pelo INPI.
À luz do estado da técnica citado no parecer, o INPI entende que a matéria pleiteada na patente BR112018005423-2 atende aos requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Adicionalmente, a composição de canabidiol (CBD) protegida está suficientemente descrita na patente, de modo a permitir a sua reprodução por um técnico no assunto. Particularmente, o processo de preparo do produto está descrito no Relatório Descritivo da patente, nos parágrafos [0041] até [0045].
Importa notar que a patente BR112018005423-2 não confere proteção ao composto canabidiol (CDB) per se, mas a uma composição farmacêutica que compreende o composto canabidiol (CDB) associado a outros constituintes específicos. O composto canabidiol (CDB), um dos princípios ativos da Cannabis sativa, é um produto de origem natural e, portanto, não é considerado invenção de acordo com a Lei 9.279, de 1996 (LPI).
Em relação ao pedido de patente BR122019017588-8, informamos que o exame técnico ainda não foi iniciado pelo INPI. Atualmente, tal pedido se encontra na ANVISA para fins de análise de anuência prévia.
Por fim, cabe ressaltar que qualquer questionamento quanto à nulidade da patente BR112018005423-2 deve ser realizado pelos meios oficiais, de modo que as objeções sejam analisadas tecnicamente pelo INPI.”