O Dr. Pernambuco Filho foi um dos maiores responsáveis pela proibição da Cannabis no Brasil. Já o renascimento dos estudos científicos da planta vieram com o Dr. Elisaldo Carlini. Depois do cientista, uma geração de pesquisadores surge no país, como Eduardo Faveret, Sidarta Ribeiro, Renato Malcher-Lopes, Alexandre Crippa, Antonio Zuardi, Reinaldo Takahashi e Fabrício Pamplona.
Não é bem uma novidade as propriedades medicinais da Cannabis. Uma das primeiras plantas a ser cultivada pela humanidade, principalmente por suas fibras e sementes ricas em proteínas, teve seu potencial farmacêutico exaltado pelo imperador chinês Chen Nung, o “Divino Agricultor” em português, que a receitava para malária, constipação, dores reumáticas, desatenção e distúrbios femininos. Há mais de 5 mil anos.
Na Índia, era recomendada para acelerar a mente, diminuir a febre, induzir ao sono e curar desinteria. Na África, além da malária, era usada contra disenteria e outras febres. Assim como na Europa. Em 1621, o clérigo inglês Robert Burton recomendou a Cannabis para o tratamento de depressão em seu famoso trabalho “A Anatomia da Melancolia¹”. No entanto, só ganhou a atenção da ciência ocidental em 1839.
Um jovem professor irlandês do Colégio Médico de Calcutá, William Brooke O’Shaughnessy, observou seu uso na medicina popular da Índia e resolveu testar. Em um artigo escreveu que a “tintura” de
Cannabis – muito semelhante ao óleo artesanal – destacou os efeitos analgésicos da planta e como relaxante muscular.
“Um remédio anticonvulsivo de grande valor”, escreveu. Os estudos com a planta se popularizaram e, entre 1840 e 1900, mais de cem artigos científicos foram publicados na literatura médica ocidental, indicada para uma ampla variedade de condições, de depressão pós-parto à asma.
As cigarrilhas Grimauld, ou Cigarros Indios, como também eram chamadas, eram anunciadas nos jornais brasileiros como solução para “asthma, catarrhos, insomnia, roncaduras e flatos”.
Mas a partir das décadas seguintes, o interesse dos pesquisadores na planta foi diminuindo. O fato de cada pessoa responder de forma diferente às substâncias da Cannabis, tornando os resultados imprevisíveis, e a invenção da injeção, na década de 1850, que tornou o uso de opiáceos uma forma mais rápida e eficaz no alívio da dor, desviaram a atenção da ciência.
Dr. Pernambuco filho
A pá de cal na Cannabis medicinal veio pouco tempo depois, por intermédio de um brasileiro. Por aqui, o “fumo de angola” era coisa de negro, índio, e todos os mestiços que formam a base menos favorecida da população brasileira. Não chamava atenção da classe dominante branca. Isso num país que recém havia abolido a escravidão.
Dr. Pedro Pernambuco Filho era um médico brasileiro que tratava viciados em entorpecentes no Sanatório de Botafogo, no Rio de Janeiro. Seus pacientes envolviam viciados em heroína e cocaína, além dos morfinômanos, aqueles que se viciaram em morfina – um opioide assim como a heroína – devido ao uso recorrente no tratamento para dores crônicas. Também chamava atenção o grande número de médicos e enfermeiros viciados.
Um documento oficial do Ministério das Relações Exteriores de 1959, que fala sobre a participação da delegação brasileira na 2ª Convenção do Ópio da Liga das Nações, precursora das Nações Unidas, mostra que Dr. Pernambuco sabia que a maconha não provoca dependência de ordem física como os produtos do ópio e da coca.
“Em centenas de observações clínicas, desde 1915, não há uma só referência de morte em pessoa submetida à privação do elemento intoxicante, no caso a resina canábica”, diz o documento.
“No canabismo não se registra tremenda e clássica crise de falta, acesso de privação, tão bem descrita nos viciados de morfina, pela heroína e outros entorpecentes, fator este indispensável na definição oficial da OMS para que a droga seja considerada toxicomanógena³.”
Chegando à convenção, cuja agenda estava marcada apenas a discussão sobre o ópio e da coca e, com a ajuda da delegação do Egito, introduziram a Cannabis na discussão. Lá, afirmou que a maconha era “mais perigosa que o ópio”. Como consideraram que nesses dois países o uso da substância é endêmico, ninguém se opôs.
Essa postura foi ratificada por diversos países ao longo do século passado. Principalmente depois de 1930, a Cannabis virou um dos alvos preferidos da ainda atual guerra às drogas. Em 1961, a Convenção única de Entorpecentes, da ONU, de qual o Brasil é signatário, colocou de vez a maconha como uma droga extremamente prejudicial à saúde e à coletividade, comparando a à heroína.
Uma lei federal de 1938 definiu a proibição total do plantio, cultura, colheita, exploração por particulares da maconha.
Dr. Elisaldo Carlini
Se era proibida para particulares, às vezes um pesquisador conseguia uma brecha. Foi o caso do professor Dr. Ribeiro do Vale, na Escola Paulista de Medicina, na década de 1950. Pesquisador em farmacologia, tinha muito interesse em substâncias naturais, sendo plantas ou substâncias de animais, como o veneno da lagarta. A Cannabis era uma de suas preferidas4.
“Naquela época ele já fazia o trabalho científico buscando entender a Cannabis”, contou um de seus alunos, Elisaldo Carlini, em uma palestra. Do professor herdou o interesse, se especializando em farmacologia do sistema nervoso central.
“O professor Vale dizia uma frase e eu levo comigo: ‘nós estamos estudando a maconha que o homem usa, e isso é um erro. Nós temos que estudar o homem que usa a maconha’.” Esse interesse herdado culminou, em 1980, na primeira investigação científica a testar os efeitos do canabidiol em pacientes com epilepsia. Oito pacientes que sofriam ao menos uma crise convulsiva generalizada por semana receberam o CBD puro, enquanto mantiveram suas medicações regulares, por quatro meses e meio.
Apenas um não obteve melhora. Três tiveram redução das crises, enquanto os outros quatro viram as crises desaparecerem totalmente durante o tratamento.
Esse estudo5, realizado na Escola Paulista de Medicina, em São Paulo contou com uma equipe da Universidade Hebraica de Israel, incluindo o químico Raphael Mecholaum. Búlgaro radicado em Israel, ficou famoso por ter sido o primeiro isolar, decifrar a estrutura e sintetizar o THC.
Durante a década de 1980, principalmente pelo endurecimento à guerra às drogas, a pesquisa com o canabidiol avançou lentamente. Só foi retomada a partir dos anos 2000, com a descoberta do sistema endocanabinoide pela equipe do próprio Mecholaum.
“O THC já tinha indicação clínica em outras indicações, como no câncer, na dor, no HIV, anorexia”, conta o médico Eduardo Faveret, diretor médico do Centro de Epilepsia do Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer, e que se orgulha de ser o primeiro a receitar Cannabis medicinal no Rio de Janeiro.
“Com o canabidiol, a epilepsia foi o abre alas.”
Foi a largada para o ressurgimento da pesquisa científica com cannabis no Brasil. A partir daí, mais de uma geração de pesquisadores, como Sidarta Ribeiro, Renato Malcher-Lopes, Alexandre Crippa, Antonio Zuardi, Reinaldo Takahashi e Fabrício Pamplona, tem ajudado a criar as bases para a consolidação da Cannabis medicinal.
Já Carlini, com 90 anos, estendeu sua carreira para além dos laboratórios. Ele é o criador do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) – um importante fornecedor de informações para a formulação de políticas de educação – e da Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos (Sobravime), em 1990.
Está no sétimo mandato como membro do Expert Advisory Panel on Drug Dependence and Alcohol Problems, da Organização Mundial da Saúde (OMS).
“Eu nunca falei e continuo não falando sobre o uso hedonístico da maconha, ou uso recreativo da maconha. Isso é outro assunto totalmente independente do que estamos falando”, diz Carlini. É ciência, medicina, remédio. “Não é coisa de porra loca, como já me acusaram.”
Em fevereiro de 2018, o professor Carlini, já em tratamento de um câncer, foi intimado a depor na delegacia de polícia. O motivo, a organização do “5º Simpósio Internacional Maconha – Outros Saberes”, que, segundo a promotora de Justiça, Rosemary Azevedo Porcelli da Silva, “contém, em tese, fortes indício de apologia ao crime”.
Esse fato gerou indignação generalizada dos cientistas brasileiros, com repercussão internacional.
“O Dr. Elisaldo Carlini é imprescindível e sua carreira é uma apologia à vida”, resumiram em nota conjunta a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Fontes:
¹https://maps.org/research-archive/mmj/grinspoon_history_cannabis_medicine.pdf
² FioCruz https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/17765/2/117.pdf
³ https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0047-20852006000400008
4 https://www.museudapessoa.net/pt/conteudo/historia/o-grande-progresso-na-terapeutica-esta-por-vir-45488
5 https://druglibrary.org/crl/movement/Cunhaet.al80Epilepsy_Pharmacol.pdf