Durante a faculdade, o baiano Geovane Massa sentia que os professores afastavam os estudantes de uma abordagem mais integrada, até com deboche. “Como se médico só precisasse de diagnóstico e doença”, diz. Numa aula, ele conta que questionou as inferências psicológicas das doenças, ao que o professor respondeu: “Você não é psicólogo”.
Massa conta que “quanto mais lia, mais ficava impressionado e desiludido com o modelo” – de medicina tradicional. Mesmo assim, desenvolveu um interesse pela prática chinesa, fitoterapia, e medicina ayurvédica, apesar do pouco uso no Brasil. Seguindo essa abordagem, conheceu a Cannabis medicinal. Hoje, o jovem neurologista se tornou pesquisador, professor e ainda atende na Fundação de Neurologia e Neurocirurgia Instituto do Cérebro em Salvador, onde quase 15% dos atendimentos é gratuito.
O início da trajetória
Para chegar lá, Massa percorreu uma trajetória bem diferente do perfil usual dos médicos brasileiros. Ao terminar a faculdade, em 2013, tentou realizar o sonho de ter experiência na Amazônia e conhecer mais as ervas naturais que os povos tradicionais usam. O caminho escolhido foi o Exército. Como voluntário, poderia escolher onde servir.
Na Amazônia, deparou-se com uma realidade diferente da que tinha imaginado. Massa percebeu que o Exército não era aberto à sua vontade de entender as culturas indígenas e a riqueza da fitoterapia. “A população branca vê o índio como se fosse um peso, acham um luxo eles não fazerem nada”, lamenta. Nem no Exército, nem depois, quando voltou ao Acre e ficou quinze dias, conseguiu fazer a pesquisa que desejava.
Foi quando seguiu para a Chapada Diamantina. Lá conheceu o Dr. Áureo Augusto, médico naturista que atende no Vale do Capão há 30 anos. Massa conta que o famoso ginecologista e obstetra foi o responsável pela introdução do parto humanizado no Brasil e atende gratuitamente em seu posto de saúde. Ficou por um ano e meio aprendendo e auxiliando os atendimentos. No posto de saúde de Áureo, Massa adquiriu experiência na sua prática e na fitoterapia. Ele explica sua abordagem: “As medicações são coisas que não são do nosso corpo, e a gente reage a elas. As coisas naturais são entendidas pelo corpo, lidamos de forma natural”.
Cannabis e pesquisa
Ao voltar da Chapada, Massa fez especialização em neurologia. Sua escolha foi estratégica: queria entender o corpo humano como um todo e achou que a neurologia era o caminho. Com outros estudantes, ele publicou uma revisão de canabidiol em epilepsia na Revista Brasileira de Neurologia e Psiquiatria. Com a repercussão, Massa foi procurado no final de 2017 pela Associação Cannab, que visa o cultivo de forma legalizada e fomenta pesquisa. Em conjunto com chilenos e com patrocínio do laboratório alemão Knop, fizeram um ensaio clínico sobre cannabis e epilepsia. Massa reforça a importância da pesquisa no Brasil, que ainda conta com poucas: “A Cannabis é o modo de entrada para uma renovação do modelo de como as coisas são feitas”, diz. Ele quer usar parte deste estudo para o mestrado em neurociência que planeja fazer. Ia começar no Rio Grande do Norte, mas foi impedido pela pandemia. “É difícil fazer neurociência no Brasil”, lamenta.
Atendimento acessível
Ainda em 2017, Massa conheceu a Fundação de Neurologia e Neurocirurgia Instituto do Cérebro, dirigida há 28 anos pelo Dr. Antônio Andrade em Salvador. Massa conta que, depois que voltou da Chapada Diamantina, não teve muitas oportunidades: “As pessoas me viam como médico complementar, alternativo”. Ele se alegra ter conhecido Andrade. “Ele era empolgado, me abriu as portas”, diz. Ainda em 2017, começaram a prescrever Cannabis na Fundação, que há 25 anos também atende gratuitamente.
Massa viu que era possível tratar pacientes de baixa renda com Cannabis. Eles contam com a Associação Brasileira de Apoio Cannabis e Esperança (ABRACE) e alguns importados para indicar nas prescrições. Também desincentivam o uso de fontes desconhecidas, que podem colocar tudo a perder por não haver garantia da composição do óleo. O neurologista recomenda produtos do Uruguai e agora do Chile, orienta a formulação, dosagem, e o paciente pode comprar onde quiser, mas sempre de forma legal.
Hoje, ele atende na Fundação e por telemedicina com pacientes particulares, que equilibra entre suas aulas na Faculdade de Medicina da Estácio de Sá, as pesquisas e a supervisão do programa Mais Médicos.
Na Fundação, o atendimento é privado e gratuito, em convênio com os governos municipal, estadual e federal. Durante a semana, há agendamento de pacientes do SUS e de particulares, e aos sábados, mutirões 100% gratuitos, onde neurologistas, estudantes, fonoaudiólogos, psicólogos, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais atendem o público. Mil atendimentos chegam a ser feitos por mês.
Consulta humanizada
Sua consulta presencial leva de 40 minutos a uma hora. E lamenta que, aos sábados tenham que ser mais rápidas por conta do volume de pacientes. Ele faz uma investigação do sintoma principal, anamnese e um prévio entendimento do todo: sono, hábitos alimentares, aspectos fisiológicos, rotina familiar, estresse, trabalho, rotina diária. Massa sabe que tudo isso vai ter impacto no tratamento e que ele precisa mensurar para medir a melhora do paciente. Primeiro ele extrai a parte clínica e depois a parte social. “Meu atendimento é bem humano, porque pessoas com a mesma doença têm realidades distintas, etiologias (os motivos do adoecimento) distintas”, diz.
O paciente sai com orientação, pedido de exames e com prescrição de Cannabis, se tiver indicação. No retorno, Massa analisa os exames de antes da terapia e passa a acompanhar as outras síndromes metabólicas, para ir além da queixa, que variam de pessoa para pessoa. Ele só lamenta que alguns pacientes melhoram e não voltam. “É péssimo, porque ele poderia melhorar muito mais”, conta. Massa lida com esse dilema de como fazer para o paciente ficar mais, voltar e contar como melhorou. Ele acredita que o paciente do SUS sofra mais com a longa espera e consulta mais rápida.
As doenças mais frequentes na Fundação são epilepsia, enxaqueca, demência, transtornos do humor e ansiedade, transtornos psiquiátricos em geral, dores crônicas, fibromialgia, transtornos de sono, diabetes, Parkinson, paralisia supranuclear progressiva (PSP, que é uma forma de demência neurodegenerativa) e intoxicação de drogas (redução de danos), onde eles usam a Cannabis para diminuir a compulsão. Sobre os casos de dependência química, Massa conta que eles usam óleos com mais CBD, mas sempre com THC, e percebem que ajuda no autocontrole, bem estar e humor. A Fundação atende uma média de sete mil pacientes por mês, sendo mil gratuitamente.
Na Fundação eles também orientam a judicialização em conjunto com a Associação Cannab, que faz processos coletivos.
Acompanhamento
Massa conta que os efeitos colaterais dos tratamentos com Cannabis são pequenos, geralmente controlados com ajustes de dose. São sonolência, tontura, apatia, mudança na consistência das fezes e alterações cognitivas. Por isso, sempre que começa os tratamentos, ele começa com uma dose pequena e pede para ir subindo devagar e manter por três dias anotando os efeitos em um diário. “Isso é muito importante para acertarmos a dose”, diz. Caso o paciente apresente alguma reação adversa, ele orienta para voltar à dose anterior.
“Não é fórmula de bolo”, diz Massa, que se preocupa em explicar aos pacientes como será o tratamento, para que eles fiquem capacitados a ler e resolver os problemas dali para a frente.
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No início, mantém a maior parte dos medicamentos alopáticos prescritos anteriormente por outros médicos. Algumas vezes, logo na primeira consulta, consegue reduzir essa lista de medicamentos, em outros casos, retira nos retornos. A maioria dos pacientes reduz pela metade a quantidade de remédios, e uma minoria consegue retirar todos.
Adaptação
“A Cannabis não serve para uma coisa só. Você usa para inflamação e acaba melhorando o sono. Ela trata com mais integralidade, é humana porque é natural e o corpo entende”, diz. Massa diferencia a Cannabis dos demais produtos da indústria farmacêutica, porque é mais barato (no caso de plantio pessoal), proporciona inclusão e é mais eficaz do que muitas outras medicações. “Só precisa de mais estudos – que virão”.
Como a planta permite a personalização, o tratamento não é o mesmo para todos. E o médico precisa entender nuances de dose, do metabolismo do paciente. “O médico precisa se adaptar, é imprescindível”, arremata. Por isso, ele trabalha para educar a população em geral, pacientes e médicos sobre o caráter de polifarmácia e o efeito entourage da Cannabis. Sem esquecer do suporte imprescindível para as terapias integrativas: terapia ocupacional, psicologia, nutrição, fitoterapia. “A Cannabis é a porta de entrada de um novo modelo de assistência médica. Não é complementar, é integrativa”.
Massa diz que gostaria de receitar Cannabis para todos os pacientes, mas hoje apenas de 30 a 40% deles usam. Alguns por falta de acesso (preço, dificuldade de aquisição), outros por preferirem remédios tradicionais.
Mesmo ainda sentindo resistências e preconceitos, acredita que não há como voltar atrás quando se fala em Cannabis. “Quem ainda tem preconceito vai ter que se adaptar”, diz. Ele avalia que o Brasil vai ser produtor ou importador, mas que haverá uma grande demanda de estudos clínicos para provar que a Cannabis funciona. E está preparado para fazer esse trabalho.