A medicina também faz história e o último painel desta quinta-feira, 13, trouxe dois dos mais importantes personagens da Cannabis medicinal no Brasil. Eles figuram entre os principais médicos precursores no país: o ortopedista Ricardo Ferreira, especialista em coluna e clínica da dor, da Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis, e o neurologista e neuropediatra, Eduardo Faveret, da Associação Brasileira de Epilepsia.
Durante a conversa, lembraram os avanços no cenário internacional e apontaram a necessidade de se produzir ciência no Brasil, mostrando o sucesso que já conseguem nos consultórios.
Ambos apontaram o preconceito racial histórico como um dos fatores que refrearam a pesquisa e a disseminação da medicina canabinoide no Brasil, mas apostam que o movimento que quebrou esse paradigma não tem volta: a Cannabis veio para ficar e revolucionar o mercado farmacológico mundial.
Ricardo Ferreira
No começo, não existia produto. Havia pacientes que relatavam o uso, mas não tinha acesso regulamentado. Só em 2015 pude efetivamente acompanhar pacientes com relevância e observação da terapêutica.
O preconceito na forma de riso amarelo: “Tô sabendo…” Eu procurava desconstruir. Não é bem assim, se fosse assim, não estaria acontecendo no Canadá, na Holanda.”
Avanços
“Estamos no início da regulamentação. Antes mesmo, houve a quebra de paradigma com o documentário Ilegal, matérias em jornais como o Globo, Fantástico, Folha, Estadão, desmistificaram. Na sociedade, tinha gente que via a Cannabis como possibilidade, fruto do que os gringos vinham fazendo. A legislação, mesmo capenga, foi um primeiro passo. Insuficiente porque não pode ser produzido aqui. Ainda estamos muito longe, seja pela regulamentação, seja pela via judicial. Hoje temos duas associações que venceram ações judiciais para plantar e processar óleos, a Abrace e a Apepi.”
O Decálogo da Maconha
Com a Sociedade Brasileira do Estudo da Dor (SBED), fomos falar no CFM (Conselho Federal de Medicina) por algumas horas. Focados na dor, fomos com os trabalhos atuais mais relevantes. Conversamos durante duas horas, eles ouviram, o vice era o Mauro, atual presidente do CFM. E a resposta foi: ‘Vocês falam muito bem, mas a gente está preparando um estudo, e não é muito o que vocês estão falando. Vamos lançar algo a respeito disso’. Era o Decálogo, que foi um prelúdio de um texto ainda maior que eles publicaram contra o medicamento.
Como crítico e prescritor, reconheço que a literatura básica é muito relevante, mas a literatura prática, relatando sucessos, estatísticas de casos, é falha. Precisamos produzir ciência, estatística. No mundo real, no consultório, a gente consegue observar resultados, que é o mais importante.
O Brasil é um país difícil de produzir ciência, mas a gente precisa produzir artigos de relevância mostrando o que a gente observa no consultório.
Apesar de que a Cannabis dificulta artigos na forma que a farmacologia produz, porque a Cannabis tem várias moléculas que interagem, e ainda agem de formas diferentes. Daí a dificuldade de tratar como uma droga única.
Eu me fundamento nos trabalhos da ciência básica associada à minha prática médica. Não trabalho em estudos mas sei que precisamos fazer. Provocar para fazer. Precisamos falar na mesma língua dos caras, não adianta falar que funciona na prática.
Ignorância leva a medo
O THC é potente, mas a planta é um todo. A demanda de THC precisa de acompanhamento. E o médico fica 10 minutos com o paciente. O uso do THC depende de orientação, dose correta, mensuração de efeitos positivos e colaterais, porque o medicamento ideal é o que resolve sem efeitos psicoativos. E separar uso recreativo do medicinal tem diferença quanto à finalidade. O médico brasileiro precisa ter tempo e disposição para isso.
Não somos só médicos, somos atores políticos. O uso traz consequências dramáticas. Estamos sofrendo pela guerra às drogas, pelo preconceito racial, social, cultural. Mas a Cannabis é um caminho sem volta no Brasil e no mundo. Hoje temos acesso aos trancos e barrancos. Empresas, coloquem outros no jogo; associações, coloquem produtos. Precisamos prescrever THC.
Eduardo Faveret
Iniciação
“No centro de epilepsia na Alemanha, tive contato com jovens que relataram benefício de uso da maconha recreacional, e me deram artigos. Mas na época, a literatura era pouco consistente, porque a maconha é natural, varia, apresenta resultados díspares. Em 2005, teve o caso da Charlotte Figi, com (Síndrome) Dravet gravíssima, centenas de crises por semana (famoso caso em que a menina foi tratada com CBD e teve uma redução de 300 crises por semana para três por mês), e outros primeiros casos.
Num grupo referência em epilepsia no RJ, eu já tratava de casos mais difíceis. Aí vieram a Margarete e a Aline em 2013 e se instalaram na minha sala. ‘Eduardo, você não quer ser o primeiro a prescrever?’ Fui estudar, elas trouxeram a seringa contrabandeada da Hemp Meds, e vi que era anti-inflamatório, antioxidante, tratava quadros epilépticos e era remédio potente, tratava casos mais variados, e com muita segurança. Mas ainda era ilegal, e eu segui o roteiro de segurança: estudar, usar doses leves, ir devagar e seguir observando. A experiência foi boa, porque crianças voltaram a sorrir, apresentaram melhoras no cognitivo, do tônus muscular.”
Futuro
“Quero que continue um mundo solidário, de cooperação. Inclusive que empresas sejam parceiras das associações. No início, viemos de mãos dadas nas rua, veio o Ilegal, o filme abriu portas, mostrou o contexto.
Cultivadores, neurocientistas, pacientes e sociedade podem dar as mãos e fazer um trabalho rico de afeto, união, crença com base científica.”
Preconceito
“Eu sofria preconceito, mas entendo que comigo tinha menos, porque sou branco, medicamente respeitado, com interlocução em diferentes camadas. Da mesma forma, as primeiras duas mulheres, a Margarete e a Katielle são brancas, bonitas, olhos verdes. Tem que entender que a planta é milenar, foi trazido pelos negros, e por isso foi proscrita. Essa foi a razão do preconceito. Essa cultura dos cultivadores foi o que fez a coisa sobreviver até hoje. Tinha gente que queria acabar com as plantas de Cannabis na América Latina.”
Futuro
“Queda progressiva dos preços, para melhora acessos. Associação Búzios, Franca, Parati, vão melhorando os acessos, para quem não tem condição de comprar.
Hoje tem um número crescente de pesquisadores e médicos que já tinham linha de pesquisa, e muitos laboratórios, para estudar o sistema endocanabinóide, de metabolismo.
Não tem nada que cresça mais que a pesquisa na área de Cannabis. Na prática, tem evidências, mas nos trabalhos controlados, não chega a mostrar benefícios. No tratamento da epilepsia já está aprovado, mas as pesquisas quase sempre são financiadas por empresas da área, que buscam o caminho mais fácil: melhor escolher o canabidiol isolado, porque é um produto só. Eu posso pegar estudos que foram feitos com o Epidiolex em outro país e, como é só um princípio ativo, eu posso dizer ‘esse produto aqui é semelhante àquele.
Não são 100 substâncias que tenho que mostrar diversas questões, como qualidade de cultivo, manufatura, boas práticas, etc.. Então é um caminho muito mais delicado e acaba limitando um pouco a pesquisa. Mas Israel faz pesquisa desde o princípio, para tratar câncer, autismo. Lá, não se fala em tratar câncer sem cannabis.
Acabou de sair um artigo sobre o uso do Sativex (Mevatyl no Brasil) que aumenta a expectativa de vida de 53% para 83% em pacientes com câncer. Não tem evidências fase 3, não tem, mas tem várias evidências, fase 2, então vai explodir em Israel, nos EUA, no Canadá. Tem várias pesquisas na Alemanha e em vários outros países, o mundo inteiro está estudando Cannabis.“