No dia em que o MS completa 71 anos que balanço podemos fazer sobre a regulamentação da Cannabis para fins médicos no país?
O Ministério da Saúde (MS) completa hoje 71 anos. Muito embora a história da saúde pública brasileira tenha início em 1808, a pasta responsável por essa área só foi instituído no dia 25 de julho de 1953, com a Lei nº 1.920, que desdobrou o então Ministério da Educação e Saúde em dois ministérios: Saúde e Educação e Cultura.
Ao longo dessas sete décadas, o órgão se destacou por implementar ações que ampliaram o acesso à saúde, como por exemplo, a criação do Programa Nacional de Imunizações (1973), o Programa HIV/AIDS (1985), com campanhas de prevenção e distribuição gratuita de medicamentos antirretrovirais, e o Programa Saúde da Família (1994) focado no cuidado, através de equipes multidisciplinares, em áreas urbanas e rurais, só para citar alguns exemplos.
Ministério da Saúde implementou o SUS
Em 1988, com a promulgação da Constituição, o Ministério da Saúde precisou assumir um dos maiores desafios do país. Instituir o Sistema Único de Saúde (SUS) para prover acesso universal e gratuito a serviços de saúde para todos os brasileiros.
Dentro dessa filosofia, quase 10 anos depois, o MS criou a Política Nacional de Medicamentos, para garantir acesso a remédios essenciais, incluindo a criação da Farmácia Popular, em 2004, que oferece medicamentos a preços reduzidos.
E o uso medicinal da Cannabis?
Muito embora exista um programa federal de fornecimento de medicamentos gratuitos via SUS, o uso medicinal da Cannabis ainda precisa de leis estaduais (veja no mapa) ou judicializações para assegurar ao paciente o remédio sem custos.
Estados como São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro, Goiás e Distrito Federal, por exemplo, já possuem leis para que certos tipos de patologias possam receber a Cannabis medicinal, via farmácia de alto custo.
Esses estados e iniciativas refletem um movimento crescente para integrar a Cannabis medicinal no SUS, mas a disponibilidade e a implementação ainda variam de acordo com a região e dependem de regulamentações e decisões locais.
Burocracia impede acesso
A burocracia e falta de vontade política ainda têm dificultado o amplo acesso. Em Brasília, que aprovou uma lei distrital em 2016 – para garantir remédio à base de Cannabis para os pacientes com epilepsia – não se consegue manter o fornecimento do medicamento de forma perene.
Adalberto Alfredo Schumann, pai da Grabriela – que tem diagnóstico de epilepsia de difícil controle, retardo mental, lesão cerebral e autismo – conta que não consegue receber o medicamento desde setembro do ano passado.
“Toda vez é uma desculpa diferente. A falta de uma regulamentação federal traz indefinições e muitos prejuízos para quem precisa do tratamento”, lamenta Schumann.
O que diz o Ministério da Saúde sobre a Cannabis?
Em audiência pública na Câmara dos Deputados, em novembro do ano passado (29/11), o representante do Ministério da Saúde, Dr. Rodrigo Cariri, reconheceu que a pasta tem a prerrogativa de regulamentar o plantio da Cannabis para fins de pesquisa e medicinais.
É o que prevê o Decreto n. 5.912/06 – que regulamenta a Lei de Drogas (11.343/2006). De acordo com a lei, cabe ao Ministério da Saúde autorizar o cultivo de plantas proscritas para fins médicos e pesquisas científicas.
Omissão
No entanto, o Executivo, há 18 anos, ignora o cumprimento da lei e diz que o assunto precisava ser regulamentado pelo Congresso Nacional, que também se omite.
Essa falta de regulamentação da produção nacional mantém o país dependente de importação. Os insumos em dólar encarecem o remédio e limitam o acesso a quem precisa, além de onerar os cofres públicos, com judicializações que fogem da programação orçamentária.
MS reconhece evidências científicas
Muita embora falte regulamentação para que o país se torne autônomo na produção de remédio à base de Cannabis, o Dr. Rodrigo Cariri reconhece o potencial medicinal da planta.
“Estamos trabalhando para reunir os elementos técnicos para responder a esse quesito legal (cumprir o que está na lei). O Ministério da Saúde reconhece seu papel de condutor da política e reconhece que existe um potencial terapêutico desses produtos. Temos o respaldo da Ciência. Há evidência científica”, afirmou Cariri, em novembro do ano passado.
Tentamos ouvir o Ministério da Saúde sobre o que a pasta tem feito para regulamentar o assunto, tanto para produção nacional, como para fornecimento do medicamento via SUS, mas não obtivemos resposta até a publicação da reportagem.
Ações judiciais garantem o acesso há 10 anos
O uso medicinal da Cannabis é regulamento há quase dez anos no Brasil, graças a ações judiciais individuais, que reivindicaram na Justiça o direito de importar produtos à base de fitocanabinoides (moléculas medicinais da planta).
Desde 2015, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – órgão vinculado ao Ministério da Saúde – tem sido responsável pela regulamentação do uso medicinal da Cannabis no Brasil.
RDC 17/2015 permitiu a importação legal
A edição da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 17/2015, permitiu a importação de medicamentos à base de Cannabis para pacientes com prescrição médica, especialmente para aqueles que não encontram alternativas terapêuticas eficazes no Brasil – é o chamado uso compassivo.
Já em 2016, A Cannabis medicinal foi incluída na lista de plantas e substâncias de controle especial da Portaria 344 (1998), do Ministério da Saúde. A atualização possibilitou o registro de medicamento à base dos derivados da planta e simplificou o processo de autorização importação.
Cannabis entra na agenda regulatória da Anvisa
Um ano depois, o tema foi incluído na Agenda Regulatória 2017-2020 da Anvisa.
Nesse mesmo ano, em 2017, a Anvisa aprovou o registro no Brasil do primeiro medicamento produzido com Cannabis, o Mevatyl, (nome comercial do Sativex), para ser vendido nas farmácias. O remédio é usado no tratamento da espasticidade relacionada à esclerose múltipla.
Ainda naquele mesmo ano, a Anvisa publicou a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 156/2017, que inclui a Cannabis na lista das Denominações Comuns Brasileiras (DCBs), e criou o Grupo de Trabalho (GT) para discutir requisitos de segurança e controle para o cultivo da planta no país.
RDC 327/2019 permite a venda em farmácias
Dois anos mais tarde, em 2019, a Agência aprovou Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 327/2019, que regulamenta a fabricação, importação e comercialização de produtos à base de Cannabis para fins medicinais no país, possibilitando a venda desses produtos nas farmácias de todo país.
Mesmo assim, até agora, a Cannabis medicinal no Sistema Único de Saúde (SUS) tem sido um tema em desenvolvimento.
17ª Conferência Nacional de Saúde aprova o cultivo da planta
A regulamentação do cultivo da planta para produção nacional e distribuição via SUS já foi aprovada, de forma inédita, na 17ª Conferência Nacional de Saúde, em julho de 2023.
No final do ano passado, a 5ª Conferência de Saúde Mental também aprovou – de forma inédita – uma moção com 12 propostas, para que o uso terapêutico e medicinal da Cannabis faça parte das políticas públicas de saúde do país. Entretanto, nada avançou.
Nada avançou
A Dra. Eliane Nunes, presidente da Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis Sativa (SBEC) – entidade coordenadora da Primeira Conferência Livre de Cannabis na Saúde Mental, intitulada Padre Ticão – afirma que, apesar da aprovação de todas as propostas e publicação no Diário Oficial da União, nada foi feito ainda por parte do Ministério da Saúde.
“Estamos cobrando uma posição do Ministério da Saúde desde fevereiro. Mas o órgão e os diversos ministérios envolvidos ainda estão tímidos para chamar as entidades e os defensores dessa política no SUS. Precisamos ficar em cima e pressionar. Mas parece que falta vontade política para fazer acontecer”, alerta a presidente da SBEC.
Falta apoio político
Fontes ouvidas pela reportagem foram unânimes em dizer que a produção nacional da Cannabis – para fins medicinais – precisa de apoio político para ser regulamentada no país, mesmo já existindo uma previsão legal, para que o Ministério da Saúde estabeleça as regras para o cultivo em solo brasileiro.
“Infelizmente, esse ainda é um tema carregado de preconceito e desinformação. O atual governo teme que a oposição use a possível regulamentação da produção nacional para dizer que o PT quer legalizar as drogas no país, enfraquecer o Ministério da Saúde e até derrubar a ministra Nísia Trindade. Por isso, esse jogo de empurra para que o Congresso estabeleça as regras”, conclui José Moura Aragão, cientista político.