A relação entre substâncias psicoativas e seres humanos é uma constante antropológica, mas o status legal de algumas delas – como a cannabis – variou em cada momento histórico.
Grosso modo, é possível identificar as seguintes tipologias de regime de controle sobre drogas:
– proibição total: posse para uso pessoal e tráfico de drogas são incriminados e punidos com penas privativas de liberdade (é o caso do Japão e da Suécia);
– despenalização: posse de drogas para uso pessoal é incriminada, mas punida com sanção alternativa à prisão (é o caso do Brasil, onde o tráfico de drogas permanece incriminado e severamente punido com pena de reclusão de 5 a 15 anos);
– descriminalização: posse de drogas para uso pessoal deixa de ser considerada uma conduta criminosa, mas pode permanecer ilegal (é o caso de Portugal, onde a posse de drogas é classificada como um ilícito contraordenacional, enquanto o tráfico de drogas permanece incriminado);
– legalização “de facto”: a posse de drogas para uso pessoal é formalmente proibida pela lei penal, mas por uma opção político-criminal, na prática tolera-se o consumo dentro de certos parâmetros (é o caso da Holanda, onde o uso e tráfico da cannabis permanecem incriminados na lei, mas não são priorizados na sua aplicação prática);
– legalização “de jure”: produção, distribuição, comercialização e posse de drogas para uso pessoal é permitida e regulada, nos moldes do que ocorre com bebidas alcoólicas, tabaco e fármacos (é o caso do Uruguai e de alguns estados dos Estados Unidos em relação à cannabis);
– produção e uso medicinal e religioso: nos tratados internacionais (e também nas leis internas de muitos países), há expressa previsão de que o uso medicinal ou religioso de drogas proibidas pode ser autorizado, como é o caso da cannabis, ayahuasca, MDMA, LSD e outras substâncias1.
Espectros de desenho regulatório podem variar radicalmente, da ultraproibição ao extremo oposto da promoção comercial em mercados legais não regulados.
Veja-se a imagem abaixo (figura 1):
Em ambos os extremos (ultraproibição/mercados legais desregulados com promoção comercial) há, na prática, mercados desregulados, que produzem danos sociais e à saúde muito elevados. Na parte central da imagem, há a regulação legal estrita, o intervalo regulatório ótimo que abrange uma variedade de alternativas regulatórias, da descriminalização com medidas de redução de danos até uma regulação restrita de mercado, vedada a promoção comercial.
Na figura 1 acima, é possível apontar dois movimentos antagônicos paralelos: as políticas sobre cannabis apresentam tendência no sentido de se afastar do extremo da ultra proibição e se aproximar da zona da regulação legal estrita, ao mesmo tempo em que as políticas sobre álcool e tabaco, grosso modo, apresentam tendência no sentido de se afastar do extremo dos mercados legais desregulados com promoção comercial e de se aproximar da zona de regulação legal estrita. Identificar boas práticas e aprender com os erros havidos no processo regulatório do álcool e do tabaco, eis aí um bom caminho a ser trilhado na construção da política de cannabis baseada em evidências.
A organização britânica Transform Drug Policy Foundation, referência internacional no tema do design de políticas de drogas, propõe metas e princípios para uma efetiva regulação da cannabis, baseando-se em formas normalmente aceitas hoje em dia para lidar com riscos sociais e de saúde em muitos âmbitos da vida, como por exemplo os modelos de controle do álcool e tabaco2. -A política de cannabis deve ser proporcional (custo-benefício regulatório deve ser positivo), certa (certeza jurídica e harmonia com outras políticas públicas), flexível (enfoque inovador e de menor custo), durável (capacidade de evoluir para responder a novas demandas e circunstâncias cambiantes), transparente e auditável (o sistema regulatório deve justificar suas decisões e submeter-se ao escrutínio público), eficiente (capacidade pessoal e institucional para viabilizar a operação do sistema regulatório) e capaz de ponderar adequadamente os objetivos econômicos (em relação à saúde, segurança, proteção do meio ambiente, dos consumidores e dos investidores, impactos na inovação, exportação, políticas de integridade, comércio e abertura de investimentos)3. Deve também almejar seis metas chave:
- Proteção e cuidado com a saúde pública;
- Promoção de justiça social e equidade;
- Redução da criminalidade relacionada às drogas;
- Promoção da segurança e do desenvolvimento sustentável;
- Proteção dos jovens e pessoas vulneráveis;
- Respeito e defesa dos direitos humanos;
- Garantia de uma boa relação preço-qualidade4.
Cada uma dessas seis metas possui submetas, que detalharei em artigos futuros aqui no Cannabis e Saúde.
Compartilho, para fechar, as perguntas que julgo serem fundamentais:
- quais objetivos políticos uma política de drogas deve mirar?
- que tipo de modelo de regulamentação melhor alcançará os objetivos políticos que uma política de drogas deve mirar?
Qual a sua opinião?
Neste espaço, pretendo tratar dos objetivos políticos que uma política de drogas deve perseguir e qual o design regulatório adequado para torná-los concretos, em diálogo aberto com todas as pessoas interessadas no tema. Peço que sugestões, observações e críticas sejam encaminhadas para o e-mail cmaronna@msm.adv.br.
Até breve.