Desde que Luzia Sampaio começou a pesquisar canabinoides o cenário na área da ciência já mudou muito. E para melhor. “Sempre brinco que quando cheguei era tudo mato literalmente. Era estranho, eu ia para os congressos e não tinha onde colocar meu pôster, não existia nada sobre o sistema endocanabinoide. E fico muito contente de hoje ver que meus alunos vão para congressos e têm palestras maravilhosas sobre o tema. É um crescimento exponencial e bonito”, comemora a cientista brasileira.
Além deste crescimento, Luzia celebra o fato da respeitada revista Frontiers (Pharmacoepidemiology e neuropharmacology) tenha lançado um Research Topic específico sobre Cannabis, intitulado “Insights on Cannabinoid Translational Science and Medicine: The Endocannabinoidome as a Target for Clinical Practice”. E Luzia faz parte do time editorial da iniciativa, ao lado de Fabio Arturo Iannotti, Deb Karhson e Raquel Maria Campos .
“É uma revista com muita relevância, a Frontiers. E ela é uma revista que faz análise de pares. Então outras pessoas internamente revisam seu trabalho e te dão sugestões e caminho por onde seguir, onde que tem que melhorar, e isto demonstra o grau de seriedade da revista”.
Conheça os critérios para submeter artigos para o tópico de Cannabis da Frontiers
Como explicamos, a Luzia é parte do editorial deste novo tópico da Frontiers que une farmácia e neurociência tendo a Cannabis como mote principal. E se você é pesquisador, ou conhece alguém que seja, saiba que está aberto o período para submissão dos artigos. E é para pesquisadores do mundo inteiro que tenham um trabalho voltado para a área da Cannabis medicinal.
“A gente explica que é voltado com esse olhar para área clínica. Mas também para a área de pesquisa translacional”.
Entenda a pesquisa translacional e as áreas da Ciência
“Basicamente a gente divide a ciência em dois grandes grupos. A pesquisa clínica, que é quando a gente já tá falando de aplicabilidade e paciente, já está vendo mais um escopo final daquela proposta. E a pesquisa básica, que é aquela que a gente faz dentro do laboratório com cultura de célula e com ratinho, criando hipótese. Muito da medicina canabinoide ao longo dos últimos 15 anos tem sido desenvolvida na pesquisa básica. E existe uma breve tentativa da gente fazer mais pesquisa clínica, isso tem aumentado nos últimos anos, mas entre a pesquisa básica e a pesquisa clínica dentro da ciências biológica tem um meio termo que é o que a gente chama de ciência translacional. Que pegar bastante base dessa pesquisa básica, elementos com essas hipóteses criadas e começar a fazer esse caminho de transformar esse achado básico em um dado relevante para clínica.
Quem faz pesquisa básica tá salvando a vida de ratinho, minimamente. E isso para o mundo da Cannabis medicinal é muito importante porque a gente sempre vê aquelas mensagens sensacionalistas, “porque a Cannabis cura Covid”, e quando você vai ler, o artigo é um artigo de pesquisa básica que não se colocou nem na proposta de fazer um caminho translacional, de analisar de alguma maneira ou impacto disso em um ser humano, nem que seja um único paciente, ou então trazer evidências de mundo real. E aí corroborar essas evidências de mundo real com as evidências básicas.
A nossa chamada visa principalmente a pesquisa translacional, que a gente sabe que é dentro da translacional onde a gente pode ter o maior número de achados relevantes para a medicina canabinoide, ou seja, unindo a básica e a clínica.
Mas para além da ciência transnacional a gente também abriu a possibilidade de autores que tenham trabalhos também na pesquisa clínica e também na pesquisa básica. Na verdade, a gente quer unir todos os mundos”, explicou Luzia.
Os critérios completos para submissão dos artigos podem ser encontrados aqui.
Nunca se estudou tanto Cannabis no mundo
Recentemente foram divulgados os números das pesquisas sobre Cannabis em 2022. Foram 4.300 estudos científicos publicados, o atual recorde. O número é superior aos 4.200 registrados em 2021. Para Luzia, os números não refletem uma simples tendência. É uma questão de que quanto mais se estudou o uso da cannabis e o entendimento do uso da Cannabis e esta visão integrativa do sistema endocanabinoide.
“Quanto mais a gente conhece esses elementos mais interessantes e mais abrangente fica a aplicação de novos estudos. Então por isso a gente tem esse crescimento tão exponencial.
Me dói muito quando eu leio algum comentário ou escrita que diz que faltam estudos da Cannabis medicinal. E os estudos não faltam. Talvez falte boa-fé e boa vontade de se entender o que os estudos estão apontando. Mas não faltam estudos.
E em relação à pesquisa clínica é sempre importante também reforçar que pesquisa clínica com viés de determinar se tal molécula é medicamento, quem faz é a indústria Farmacêutica. Os centros de pesquisa mundo afora não têm autonomia de pegar qualquer produto x e colocar dentro de uma pesquisa clínica. Então quando estou falando de pesquisa e estudos estou falando com esse viés científico da parte da ciência. A gente está fazendo tudo de tudo, se você perguntar para qualquer situação, eu vou conseguir te direcionar e te dizer qual é o estudo que fala sobre. Estudos é o que não faltam”.
Obstáculos das mulheres que produzem ciência
Segundo a UNESCO, há uma barreira para o avanço das mulheres na ciência. Nada novo sob o sol. O ultrapassado machismo, ainda tão presente, e questões que tocam a maternidade, misoginia, mansplaining e vulnerabilidade feminina no mercado de trabalho, também afetam as mulheres que querem avançar na ciência.
No Brasil, as mulheres estão em apenas 3 de cada 10 ocupações em ciência, tecnologia, engenharia e matemática. Embora representem 44% da força de trabalho, conforme infoma relatório da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS).
Mulheres são a maioria dos cientistas no Brasil
Recentemente a Folha de São Paulo divulgou o levantamento que revela que as mulheres são a maioria entre os bolsistas da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), somos 58%. Entre o mestrado, as mulheres são 57% e no doutorado o número é de 54%.
Porém o número cai quando são verificados os dados de bolsistas no exterior: 48% são mulheres. E também o alerta da queda deste número esta entre coordenadoras de grupos de pesquisas, 38%, ou como bolsistas de pesquisa, 25%, do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).
Neste sentido, Luzia valida a noção de que as mulheres são o maior número, o maior grupo dentro da pesquisa no Brasil e no mundo. Também corrobora sobre a falta da presença feminina em áreas de liderança na pesquisa e academia.
Mesmo assim, Luzia encoraja mulheres que querem seguir no caminho da ciência no Brasil
“A primeira coisa que eu vou dizer é que é difícil, mas que não desista. Eu devo tudo que tenho na minha vida profissional e pessoal por não ter desistido de fazer ciência. Me encantei com ciência muito cedo. Achei que não era possível, mas aí depois pensei “vou tentar de qualquer maneira”. E dentro de todas as dificuldades eu olho para minha história e tenho certeza que escolhi seguir o caminho certo, por mais difícil que seja. Talvez a gente ainda tenha muitas dificuldades.
Hoje nitidamente a ciência no mundo é carregada pelas mulheres. E vejo isto no laboratório. Mais de 80% dos meus alunos são mulheres, é algo que realmente faz muito peso na hora que eu vou selecionar os alunos que vão participar do grupo.
E todo o histórico social também. Mas mesmo que eu não fizesse esse esforço, é fácil observar pelo menos nas salas de aula que o número de mulheres é maior. Temos que lidar sim com todas as dificuldades de ser mulher. E se você participa de grupos de minoria como raciais e sociais, fica mais difícil ainda. Mas eu mesmo assim, sou muito positiva. Muita coisa melhorou, mas muita coisa ainda precisa melhorar. E minimamente o que a gente tem que fazer é falar sobre e não passar pano”, finaliza Luzia.