Com epilepsia, o paciente usa valproato, que pode gerar problemas no fígado. Ou tem um problema cardíaco que o faz usar varfarina – o que pode levar a sangramentos ou até mesmo uma trombose. Estes são somente dois dos medicamentos que podem trazer efeitos inesperados, se utilizados em conjunto com a Cannabis medicinal. Ambos fazem parte de uma lista de 57 substâncias (ver abaixo), publicada em agosto de 2020 por pesquisadores da Faculdade de Medicina Penn State.
Os autores do estudo foram o professor e diretor de farmacologia Kent Vrana e o farmacêutico Paul Kocis, ambos da Faculdade de Medicina Penn State, que explicam o foco dado em medicamentos com margem terapêutica estreita. Ou seja, aqueles prescritos em doses muito específicas, suficiente para serem efetivos; caso contrário, qualquer excesso pode causar danos. É a chamada “margem terapêutica estreita”.
Publicada no jornal científico Medical Cannabis and Cannabinoids, a lista visa auxiliar médicos a considerar os medicamentos prescritos e suas interações. Para desenvolver o estudo, os pesquisadores avaliaram quatro medicamentos canabinoides. Suas bulas incluíam uma lista de enzimas que processam os ingredientes ativos dos medicamentos, como THC e CBD. Eles compararam estas informações com as bulas de remédios comuns disponíveis em agências regulatórias como a U.S. Food and Drug Administration para identificar onde poderia haver sobreposição.
Os canabinoides são usados em diversos tratamentos como estimulação de apetite, epilepsia, controle de dor, náuseas e vômitos em pacientes tratando câncer, ansiedade, entre outros. Em geral, os canabinoides são bem tolerados e seguros, mas é necessário cuidado ao administrar certas drogas ao mesmo tempo da Cannabis, principalmente para idosos e pessoas com doenças de rins e fígado.
Margem terapêutica estreita
Drogas variadas fazem parte da lista: remédios para o coração, antibióticos, antifúngicos, anticoagulantes. No caso da varfarina, é um medicamento que previne a formação de coágulos e é prescrita para pacientes com fibrilação atrial ou depois de substituição de válvula cardíaca e tem grande potencial de interação com canabinoides. Por fazer parte da lista dos medicamentos com margem terapêutica estreita, qualquer alteração em seus efeitos pode causar sangramentos ou trombose. Como o CBD e o THC inibem a atividade das enzimas CYP, podem acarretar a diminuição dos efeitos da droga. O cuidado, portanto, deve ser tomado tanto por médicos prescritores de Cannabis, quanto por prescritores da varfarina.
Os pesquisadores avisam que a atenção não deve se restringir apenas ao uso medicinal da Cannabis. Também o uso adulto ou recreacional precisa ser levado em consideração. Segundo Vrana, produtos não regulamentados frequentemente contém os mesmos ingredientes que os canabinoides medicinais, mas em diferentes concentrações. Por isso, o paciente deve ser honesto com a equipe médica que o atende, informando desde o uso recreacional da maconha até medicamentos OTC (vendidos nas prateleiras sem necessidade de bula).
Como funciona a interação
Quando tomamos uma substância, o corpo a metaboliza, ou seja, faz a quebra dessa substância. O metabolismo dos remédios acontece por todo o corpo, mas mais comumente no trato digestivo e no fígado. A família de enzimas P450 (CYP450) faz o trabalho de processar substâncias estranhas de forma que elas sejam eliminadas, mas alguns medicamentos afetam estas enzimas, acelerando ou desacelerando o metabolismo. Este processo pode alterar a absorção de medicamentos, daí a interação medicamentosa.
A família CYP450 é a responsável por metabolizar diversos canabinoides, inclusive o CBD. Mas, durante este processo, o canabidiol também interage com ela, que é responsável por metabolizar pelo menos 50% dos remédios prescritos. Como o CBD pode estimular ou inibir a ação dessas enzimas, o remédio pode permanecer por mais tempo ou menos no corpo, trazendo efeitos indesejados. Por isso a importância em regular as doses dos outros remédios ao prescrever Cannabis medicinal.
Outros medicamentos
Além dos 57 medicamentos com margem terapêutica estreita, Vrana e Kocis também listaram outros 139 medicamentos que podem ter interações medicamentosas com a Cannabis. Eles planejam atualizar com frequência, sempre incluindo medicamentos recentemente aprovados e conforme novas evidências científicas forem surgindo.
Alguns dos medicamentos com interações mais conhecidas:
Clobazam
O CBD aumenta a ação e também os efeitos colaterais deste benzodiazepínico usado para tratar convulsões associadas à síndrome de Lennox-Gastaut em crianças e adultos. Mesmo assim, o CBD é aprovado pela Food and Drug Administration (FDA) americana para tratar ataques epilépticos tanto de Lennox-Gastaut como para Dravet.
Quando as duas drogas são usadas juntas, o CBD aumenta a concentração do clobazam, chegando a triplicar sua concentração no metabolismo, aumentando não só seus efeitos, como a indesejada sedação. Por isso, médicos devem ser orientados a diminuir as doses do clobazam quando usado em conjunto com o CBD.
Valproato
Outra droga prescrita para tratar epilepsia e também transtorno bipolar e prevenir dores de cabeça. Tomar CBD com valproato pode aumentar os níveis enzimáticos no fígado e causar dano no órgão. Em estudos clínicos descritos na bula do isolado fármaco Epidiolex, 21% dos pacientes com epilepsia que tomaram ambos tiveram níveis elevados de transaminase (enzimas intracelulares, que, em altas quantidades indicam destruição celular), chegando a três vezes o limite saudável. Este número chega a 30% de casos quando havia também a prescrição do clobazam. Por isso, o próprio fabricante do Epidiolex recomenda a descontinuação ou ajuste de dose caso exames acusem alta de transaminase.
Lista de medicamentos do estudo
- acenocumarol (VKA)
- alfentanil
- aminofilina
- amiodarona
- amitriptilina
- anfotericina B
- argatroban
- busulfan
- carbamazepina
- clindamicina
- clomipramina
- clonidina
- clorindiona (VKA)
- ciclobenzaprina
- ciclosporina
- etexilato de dabigatrana
- desipramina
- dicumarol (VKA)
- digitoxina
- dihidroergotamina
- difenadiona (VKA)
- dofetilide
- dosulepina
- doxepina
- ergotamina
- esketamina
- etinilestradiol (contraceptivos orais)
- etossuximida
- biscoumacetato de etila (VKA)
- everolimus
- fentanil
- fluindiona (VKA)
- fosfenitoína
- imipramina
- levotiroxina
- lofepramina
- melitraceno
- meperidina
- mefenitoína
- ácido micofenólico
- nortriptilina
- paclitaxel
- fenobarbital
- fenprocumon (VKA)
- fenitoína
- pimozida
- propofol
- quinidina
- sirolimus
- tacrolimus
- temsirolimus
- teofilina
- tiopental
- tianeptina
- trimipramina
- ácido valpróico
- varfarina (VKA)