Para começar, quero deixar bem claro que, independentemente da questão do uso medicinal da Cannabis, há muito tempo eu me convenci de que a atual política de drogas é nefasta. Ela precisa ser urgentemente modificada, colocando em primeiro lugar a liberdade de escolhas individuais e a segurança das pessoas. Por isso, há mais de uma década sou favorável à regulamentação da utilização responsável de drogas leves. E Cannabis, certamente, encabeça essa lista.
Como ator do processo de regulamentação da cannabis como medicamento no Brasil, desde antes da primeira permissão oficial de importação, eu acompanhei todas as mudanças do regramento da importação e venda de produtos canábicos no Brasil. Desde a primeira decisão favorável à importação de derivados da Cannabis pela ANVISA, em 2015, e em suas atualizações, os textos eram bem explícitos em relação ao tema. Sempre se posicionaram quanto à impossibilidade de importações individuais da planta “in natura”. Da mesma foram, também se opunham a qualquer tipo de extração, que possibilitasse sua utilização por via pulmonar/fumada/vaporizada.
Surpresa com a possibilidade de importação de flores de cannabis
Foi uma grande surpresa quando representantes de empresas que facilitam a importação para pacientes me disseram que a última resolução da ANVISA, a vigente RDC 660, permitia a importação de flores pelos pacientes. Isso porque não constava mais no texto de forma explícita a restrição para importação e uso medicinal de qualquer derivado ou mesmo da planta “in natura” – o que se entende como flores ou buds.
Inicialmente, achei que não era possível, mas lendo e relendo a última RDC algumas vezes concluí que sim. Os representantes estavam certos. Havia realmente uma brecha regulatória, que permitiria a importação de flores de cannabis e outros derivados da planta para uso por qualquer via de administração. Em resumo: pela boca, pela pele, pelos pulmões e até pelas mucosas, como lubrificantes vaginais ou supositórios.
Uma vez ciente desta possibilidade, fui atrás de alguns representantes de empresas facilitadoras, para saber quais flores de cannabis estariam disponíveis para importação. Neste processo, fui apresentado a vários catálogos, com ampla variedade de belos nomes, em função da maior ou menor concentração de determinados terpenos e genéticas. Contudo, me chamou atenção que todas as flores continham menos de 0,3% de THC.
Flores de cannabis com baixa concentração de THC
Descobri que a razão para que todas as flores contivessem menos de 0,3% de THC é que todas eram produzidas e importadas nos Estados Unidos. E por isso estas flores estão sujeitas às peculiares regras federais americanas, para produção e comercialização da Cannabis e seus derivados.
Desde 2018, o governo federal americano passou a ignorar, do ponto de vista regulatório, plantas com menos de 0,3% de delta-9-THC natural. Em outras palavras, qualquer planta que contenha qualquer canabinoide, fora mais de 0,3% de THC, a partir de 2018 passou a poder ser comercializada, com o mesmo nível de controle que uma planta ornamental (vide orquídeas). Isso abriu a possibilidade de produção em escala e venda de Cannabis com baixas concentrações de THC em todo EUA, até mesmo em estados que ainda não regularizaram o uso médico ou recreacional/adulto da Cannabis.
Desde então, um crescente número de empresas, lojas físicas e virtuais estão proliferando nos EUA, sob a promessa de acesso a cannabis de forma totalmente legal, mas mantendo a mesma experiência de consumo de produtos de altíssima qualidade. Essencialmente, produtos outrora vendidos apenas nos melhores dispensários, presentes nos estados que já regulamentaram o uso medicinal ou recreacional da Cannabis, como Califórnia e Colorado.
Entretanto, como a maioria dos consumidores que buscam a utilização destas flores se frustram, ao não perceberem os efeitos similares aos provocados pelo THC. Por causa disso, a explosão inicial da demanda pelas flores com CBD foi contida, em função delas não atenderem a todos os objetivos dos consumidores.
Infusão em flores de cannabis
A partir disso, estratégias, como a infusão de outros canabinoides psicoativos nas flores originalmente com menos de 0,3% de THC passassaram a ser uma alternativa. Uma vez que, com a infusão de Delta-8, Delta-9 e Delta-10-THC, produzidos a partir do CBD, muitas pessoas passaram a perceber experiências psicoativas similares ao THC natural. Só que ainda dentro do marco regulatório, que atualmente permite a venda livre de produtos de cannabis com baixas quantidades de THC natural em todo território americano. Da mesma forma, isso também também ocorre para exportação, para países como o Brasil.
Agora vamos voltar ao nosso Brasil. Como eu disse, inicialmente, as flores disponíveis nos catálogos continham necessariamente menos de 0,3% de THC natural. Entretanto, mais recentemente, flores com outros canabinoides, similares ao delta-9-THC natural, também estão chegando ao Brasil, através da RDC 660.
Até aí tudo bem. O problema é que cada vez mais recebemos notícias de pacientes sobre efeitos adversos, como crises de ansiedade e paranoia, decorrentes da utilização destes canabinoides psicoativos derivados do CBD. Por serem produto de laboratório, a partir de uma molécula natural, estes canabinoides, hoje em dia, têm classificação de semissintéticos.
Reforçando esta má impressão inicial, artigos publicados nos últimos anos demonstraram a presença de vários subprodutos, potencialmente tóxicos, decorrentes do processo de transformação do CBD em delta-8, delta-9 e delta-10-THC. Estes artigos creditam os efeitos desagradáveis, frequentemente experimentados por quem utiliza estes canabinoides, à presença destes subprodutos, como nitrosaminas e hidrocarbonetos aromáticos policíclicos (HAPs). Além de alterações psíquicas agudas, estas substâncias podem ser cancerígenas e causar outros problemas de saúde, a médio e longo prazo.
Opções de canabinoides e aplicabilidade clínica
Uma vez ciente das características das flores de cannabis disponíveis para importação no Brasil, nos cabe ponderar se estes produtos realmente têm aplicabilidade clínica. Mais que isso, se são comprovadamente seguros para utilização em longo prazo. Vale ressaltar que, neste momento, temos acesso, por diversas maneiras (através da compra direta na farmácia, importações, associações de pacientes e autorizações judiciais individuais), a diferentes extratos. É possível comprar extratos contendo, desde o CBD isolado, até THC em alta concentração, passando por aqueles com canabinoides menores, como CBG, CBN, THC-V e suas combinações.
Voltando a minha realidade: a minha prática médica é quase que totalmente focada no tratamento de dores crônicas. Por causa disso, a grande maioria dos pacientes que eu trato terão que seguir utilizando medicamentos por alguns meses, ou até mesmo pela vida.
Como é de boa prática, todas as vezes que um médico prescrever algo para seu paciente, que ele pondere, não só em função da efetividade, mas também pela segurança do seu paciente a curto, médio e longo prazo. Desta forma, não considero razoável que eu exponha meus pacientes a riscos desnecessários ou que aposte em uma suposta segurança, que a ciência ainda não foi capaz de demonstrar.
Recomendar ou não a importação de flores de cannabis?
E por que eu falei tudo isso? Porque justamente estas foram as reflexões que eu fiz, para decidir se deveria ou não começar a recomendar a importação de flores de cannabis para meus pacientes. Não se tratou de uma questão de opinião ou ideologia, mas sim uma decisão técnica, com base em um conjunto de variáveis reais.
Desta forma, em função da variedade de flores que temos disponíveis, da impossibilidade de importação de flores com delta-9-THC natural, pela necessidade dos meus pacientes fazerem uso por longos períodos ou até mesmo pela vida, pela incerteza de segurança, em longo prazo, da via pulmonar, seja ela fumada ou vaporizada, e pela possibilidade de acesso a diferentes composições de extratos, para utilização pela sabidamente segura, via oral – eu não me sinto neste momento seguro a recomendar aos meus pacientes a importação de flores de Cannabis.
Entretanto, vejo com bons olhos a utilização de extratos ou flores de Cannabis com delta-9-THC natural para a chamada dor disruptiva ou “breakthrough pain”. Essa forma de dor se caracteriza por uma grande elevação súbita do nível de dor crônica. Este tipo de ocorrência é comum em dores que têm relação com doenças oncológicas, mas pode ocorrer em outras dores crônicas, de diferentes origens. Outra aplicabilidade que acho válida para via pulmonar é para pacientes em fim de vida. Digo isso, por ser uma via muito rápida e eficaz. E em função da brevidade da vida, os riscos de complicações em longo prazo da via pulmonar deixam de ser relevantes.
Se até aqui eu pisei em uma mina e explodi ou não, na verdade tanto faz. O importante é que eu – na condição de médico – estou tentando garantir a segurança das pessoas que solicitam a minha ajuda. E é isso que realmente me interessa.
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