A Cannabis é uma das culturas agrícolas mais antigas conhecidas pelo homem. Existem análises de marcas deixadas por cordas feitas com a planta em peças chinesas produzidas há 10 mil anos. Por isso, arqueólogos concluíram que o ser humano interage com essa planta desde o período neolítico, época das primeiras lavouras. Ou seja: a gente usa Cannabis de alguma forma desde a Idade da Pedra.
O primeiro registro histórico da Cannabis para fins medicinais foi por volta 2.700 antes de Cristo no livro chinês Pen Tsao, considerada a primeira farmacopeia da História. A planta é descrita contra dores articulares, gota e malária. Outra referência está no livro ‘De Matéria Médica’, escrito no ano 70 d.C. pelo grego Pedânio Dioscórides, considerado o fundador da farmacopéia. O livro cataloga centenas de plantas medicinais, entre elas a Cannabis, usada contra dores articulares e inflamações.
Em 1843, o médico irlandês Willian O’Shaughnessy passou um temporada em Calcutá, na Índia, e publicou um importante artigo sobre as aplicações terapêuticas da Cannabis indica, remédio tradicional nas culturas orientais. O documento lista as experiências dele com extrato das plantas em animais e humanos a partir das recomendações dos nativos e a própria experiência clínica. O médico passou então a indicar o produto no tratamento de colera, reumatismo, tétano, raiva, dores e convulsões. O’Shaughnessy contribuiu decisivamente para divulgar o uso medicinal da Cannabis na Europa do Século 19. De lá, a prática se difundiu para as Américas, incluindo o Brasil.
RACISMO E PROIBIÇÃO
É também no século 19 que a ciência farmacêutica moderna começou a se desenvolver mais rapidamente. E a Cannabis impunha desafios a essa nova área da Medicina. Médicos tinham dificuldade de prever resultados do tratamento com Cannabis, já que não havia uma padronização das plantas e extratos. Era difícil entender que produtos serviam para cada caso e as dosagens indicadas. Problemas na conservação da planta e dos óleos também dificultavam prever e reproduzir resultados. Além disso, a chegada de medicamentos mais modernos contribuiu para diminuir a popularidade do uso medicinal da planta, já nas primeiras décadas do Século 20.
O proibição da planta, no entanto, não foi motivada por questões de saúde, mas por perseguição a grupos marginalizados que a usavam de forma social. Nos EUA, era comum a droga ser usada por mexicanos. Com a Revolução Mexicana, a partir de 1910, cresceu entre os estadunidenses a rejeição aos imigrantes vizinhos, e a maconha passou a ser alvo de filmes, livros e reportagens que a associavam à violência, homicídios e loucura.
Essa campanha ficou conhecida como “Reefer Madness”, em referência a um filme muito famoso na época e que contribuiu para disseminar um clima de terror ligado à droga. Em 1937, a maconha foi proibida nos EUA.
No Brasil, a maconha é tornada ilegal mais cedo, no século 19. Em outubro de 1830, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro aprova a “Lei do Pito do Pango”, que previa 3 dias de cadeia aos “escravos e outras pessoas” que fumassem maconha. No Século 20, o psiquiatra sergipano Rodrigues Dória publicou artigos na imprensa e um livro associando o uso da planta a uma suposta degeneração moral, consolidando na sociedade brasileira a imagem negativa sobre a Cannabis e seus usuários.
A maconha foi incluída pela primeira vez em convenções internacionais sobre drogas em 1924, num encontro da Liga das Nações – entidade anterior à ONU. No Brasil, a proibição em nível federal aconteceria em 1938, durante a Ditadura Vargas, por meio da Lei de Fiscalização de Entorpecentes.
Com leis que restringiam ou proibiam a prescrição, sob pena de prisão inclusive para médicos, o uso medicinal foi desaparecendo na Europa e nas Américas. Em 1942, a Cannabis foi excluída da farmacopeia americana.
O RENASCIMENTO DA CANNABIS MEDICINAL
O interesse pelo uso medicinal da Cannabis começou a se reestabelecer a partir dos estudos do químico búlgaro-israelense Raphael Mechoulam. Ele isolou pela primeira vez dois princípios ativos da planta. Em 1963, descobriu e isolou o canabidiol (CBD). No ano seguinte, isolou o tetra-hidrocanabinol (THC), e identificou o composto como responsável pelos efeitos intoxicantes da planta. Uma nova classe de substâncias foi criada: a dos canabinoides.
Pesquisando como essas substâncias agem no nosso organismo permitiu à ciência descobrir o sistema endocanabinóide, um mecanismo de regulação dos neurônios, presente no homem e em todos os animais vertebrados. A descoberta do mecanismo de ação dos canabinoides e de um sistema até então desconhecido de comunicação entre neurônios gerou uma intensa onda de pesquisas sobre a Cannabis e seu potencial terapêutico.
No fim do Século 20, produtos feitos com canabinóides isolados, como Marinol e o Dronabinol, foram aprovados para tratamento de náuseas e vômitos em pacientes com câncer e para aumento de apetite em pacientes com HIV e doenças terminais. O avanço das pesquisas também fortaleceu grupos de pacientes, que militaram para poder cultivar a planta e produzir seu próprio remédio.
Em 1995, um plebiscito na Califórnia (EUA) aprovou a ‘Lei da Compaixão’, que deu origem à primeira regulamentação para a Cannabis medicinal em décadas. Em 2001, essa pressão de pacientes faria dois países criarem regulamentações próprias para organizar a produção e o uso de Cannabis com fins medicinais: o Canadá e a Holanda.
Uma nova onda de interesse mundial da Cannabis aconteceu em 2013. Foi quando o médico e celebridade americano Sanjay Gupta lançou um documentário apresentando a utilidade terapêutica da Cannabis e o uso de canabidiol para epilepsia refratária. Por não causar o barato conhecido da maconha, o uso de canabidiol foi passou a ser aceito em diversos países ao redor do mundo, apesar da reprovação moral que ainda recai sobre a maconha.
No Brasil, essa mudança de cultura começou com a história da menina Anny Fischer, de Brasília, portadora de uma doença rara que causa epilepsia refratária. Em 2014, ela se tornou a primeira paciente do país autorizada a usar legalmente Cannabis. A partir do caso dela, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária passou a autorizar a importação de medicações à base de Cannabis. Até que, em dezembro de 2019, a agência autorizou a produção nacional e a venda de derivados de Cannabis em farmácias, embora o cultivo da planta siga proibido. A história da Cannabis medicinal segue sendo escrita.