O mineiro Cristiano Fernandes trabalha no Centro de Combate ao Câncer em São Paulo. Lá, o hematologista trata pacientes com cânceres de sangue, como leucemias e linfomas.
Com mestrado em genética e bioquímica, a hematologia foi a área mais abrangente nestes dois temas, e por isso, sua escolha de trabalho. O especialista trata de doenças não oncológicas como anemia e queda de plaquetas e também de cânceres hematológicos como leucemias e linfomas. Na clínica, ele trata destes últimos, e seus colegas oncologistas dos cânceres sólidos.
Cannabis não é balela
Por sua abordagem científica e cartesiana, Fernandes recebeu o convite do dono da clínica Cid Gusmão, diretor médico da OnixCann, para estudar Cannabis medicinal.
No final de 2018, começou seus estudos. Antes, só tinha ouvido falar. Não tinha preconceito, mas, por não conhecer, tinha restrições. “Hoje não tem mais desculpa para não conhecer as coisas. A internet é a janela do mundo”.
Pesquisou revistas científicas como a The New England Journal of Medicine e encontrou um artigo com duplo cego randomizado sobre epilepsia refratária tratada com Cannabis com sucesso. A seriedade e robustez da pesquisa, aliados ao prestígio da publicação, chamaram sua atenção. “Cannabis não era balela”, foi a conclusão que chegou na época.
Com mais informação, viu as patologias passíveis de tratamento, conheceu as pesquisas de Elisaldo Carlini no Brasil, as de Raphael Mechoulam em Israel. Comprovou que a quantidade e a qualidade das publicações em revistas importantes estavam longe de ser desprezíveis. Com esta visão mais contundente, seguiu estudando a legislação brasileira, os termos da Anvisa e os parâmetros exigidos por aqui. E especializou seu olhar para os vários estudos oncológicos com melhoras em todos os parâmetros de qualidade de vida.
Mas Fernandes ressalta que, por enquanto, a Cannabis não se presta a tratamento do câncer: só há estudos pré-clínicos, ainda não transponíveis para o ser humano. Apesar de promissores, o papel cientificamente aceito e consagrado da Cannabis é somente para tratar os sintomas do câncer, bem como os efeitos colaterais dos tratamentos tradicionais como quimioterapia.
Para doenças sem cura como alguns tipos de câncer, Alzheimer, Parkinson, autismo, epilepsia refratária, se não pode promover cura, promove qualidade de vida. “A Cannabis entra na falta de medicação nessa área”, diz. Fernandes lembra que um cenário maior que o curativo é o de paliação, que é extremamente importante e para o qual a medicina nunca teve grandes medicações.
Conhecimento clínico
No Centro de Combate ao Câncer, os médicos começaram a usar a Cannabis, permitindo maior conhecimento clínico, sempre com foco oncológico, para tratamento de dor, náusea e vômitos, perda de apetite e bem-estar em geral. Fernandes diz que os tratamentos oncológicos na hematologia não têm muitos efeitos colaterais, sendo bem tolerados. “A quimioterapia é agressiva, mas não tanto quanto a doença”, diz.
Seus pacientes são os da clínica ou referenciados por colegas, já buscando a prescrição de Cannabis. As indicações mais comuns são as dores neuropáticas do câncer, com o intuito de melhorar o sono, reduzir a dor e a ansiedade. Na consulta, ele levanta todos os exames, o quadro do paciente e analisa a possibilidade da indicação.
“Não é todo paciente que se beneficia”, diz, lembrando que dores que não sejam neuropáticas não costumam responder tão bem. Seu exemplo é o da dor nociceptiva, a de lesão a algum órgão ou estrutura, como uma topada na canela ou uma martelada no dedo. Nestes casos, a dor guarda uma correlação direta com estrutura lesada, e portanto o tratamento com Cannabis pode não ser o melhor. Já a dor neuropática não tem necessariamente correlação com uma estrutura específica, é uma mudança na condução nervosa ou percepção da dor – aí a Cannabis tem bons resultados.
Indicação bem pensada
“Praticamente todos os pacientes querem fazer uso da Cannabis e às vezes precisa pontuar para não frustrar o paciente”, explica. Fernandes conta que muitos pacientes chegam querendo tratar o câncer com Cannabis, e precisam ser informados que não é o tratamento mais indicado. “O paciente mais consciente do que pode esperar tem melhor resposta”, pondera.
Sempre atento à comprovação científica, ele diz que a literatura ainda carece muito de comprovação quanto ao uso tópico de Cannabis. Parece ser uma via promissora, já que os canabinóides são moléculas de estrutura lipídica, o que aponta que seriam facilmente absorvidos pela pele. Por ainda não haver trabalhos importantes com rigor científico, este seria um exemplo de uso que ele não recomenda. “Não pode transferir estudos em animais ou células para seres humanos. Precisa de pesquisas. Precisamos ter paciência e correr atrás”, diz o cientista.
Para Fernandes, “preconceito é fruto de ignorância”. Seu ceticismo foi bom porque o fez buscar conhecimento pontuado em reprodutibilidade (condição que discerne o caráter científico de um estudo). “É preciso rever o que se conhece sobre um assunto. Quando se conhece sobre ele, o preconceito desaparece”.
A Cannabis ainda não é um medicamento de primeira indicação, porque ainda não existem comparativos de fase 3, feitos entre medicamentos já consagrados. “A Cannabis ainda não chegou nesse ponto da história, mas vai chegar”. Fernandes acredita, por exemplo, que o próximo passo é a inclusão da planta como anticonvulsivante no rol de medicamentos de uso habitual.
Comprovação científica
Depois do conhecimento acadêmico e clínico, ele participou da montagem do curso da OnixCann com a Inspirali sobre Cannabis medicinal. O primeiro módulo traz informações sobre legislação, história da planta e noções básicas. O segundo, de indicações para tratamentos, que Fernandes pesquisou a fundo como professor e coordenador.
As aplicações com comprovação científica, isto é, com pesquisas clínicas robustas são dor oncológica, náusea e vômitos decorrentes da quimioterapia, espasticidade relacionada a esclerose múltipla, caquexia e anorexia. Epilepsia tem dois estudos duplo cego randomizados em andamento, e será a próxima doença a entrar no rol de aplicações irrefutáveis, segundo Fernandes.
Ele ainda aponta para as doenças com tratamentos promissores com base nas pesquisas existentes pelo mundo: depressão, ansiedade e controle de dores neuropáticas. O destaque é para a ansiedade, considerada o mal do século e que afeta cada vez mais pessoas no Brasil e no mundo. As medicações disponíveis para o tratamento costumam ser fortes e com efeitos colaterais importantes. E a dor neuropática, que carece de medicações efetivas.