Com ampla experiência no tratamento e recuperação de usuários de drogas, incluindo a própria, o professor de Harvard, Peter Grinspoon, falou sobre o vício na 4ª edição do Medical Cannabis Summit
Nos Estados Unidos, 93 mil pessoas morreram em 2020 por overdose de opiáceos. O médico Peter Grinspoon, atração internacional do segundo dia do Medical Cannabis Summit, podia ter seguido destino semelhante. Há 14 anos está em recuperação do vício em medicamentos analgésicos.
“Médicos são um grupo de alto risco para a dependência química. Todos os profissionais da saúde. Especialmente depois do covid, mostra um risco muito grande para dependência, depressão, suicídio. Nós assumimos os problemas de todo mundo e temos os mesmos problemas que todo mundo tem”, disse em palestra na noite desta terça-feira (23). “É muito estresse, esgotamento, e ansiedade entre os profissionais, que nos torna suscetíveis aos vícios.”
Em sua experiência pessoal e profissional, como médico no hospital geral de Massachusetts e professor na Harvard Medical School, chegou a conclusão que a Cannabis pode ser uma solução. “Disseram que a Cannabis é uma porta de entrada nos últimos 50 anos. Cannabis leva a heroína, cocaína, e tudo é besteira. Toda essa hipótese foi uma criação da Guerra às Drogas”, afirma Grinspoon.
“Todo mundo que usa heroína bebeu leite na infância. A maioria das pessoas bebe leite quando bebê, mas não se pode dizer que o leite causou a heroína. Correlação não é causalidade. Não faz sentido. A Cannabis está se mostrando uma porta de saída para as drogas.”
O médico explica que muitos pacientes começam a usar opiáceos, como oxicodona, para tratar dores crônicas. Quando as doses ficam altas demais, assim como os preços, acabam recorrendo ao opiáceo mais barato, que pode ser encontrado nas ruas: a heroína. “Se nós queremos tirar as pessoas dos opiáceos, acho que a maconha é uma solução espetacular.”
O que é vício?
Grinspoon acredita que o caminho começa pela definição do que é o vício. “Eu trato muitos pacientes com diferentes vícios, em uma clínica de cuidados primários. Como médico, você vê que muitas pessoas com vícios estão exaustas, meio desesperadas, e acabam se viciando em uma coisa ou outra”, conta.
“Eu superei o vício e tenho muitas ideias do que funciona ou não em termos de tratamento de vícios e sobre a natureza dos vícios por si. A maioria das pessoas acreditam que coma droga você está se divertindo e só. Mas vícios são na verdade bem mais complicados que isso.”
Mais de 70% das pessoas viciadas estão sofrendo de depressão e ansiedade não tratada. “Estão tentando se tratar. Desesperadamente tentando se sentir bem. As pessoas tem pouca tolerância ao sofrimento, sentem-se desconfortáveis em sua própria pele, Não conseguem suportar tédio muito bem e então pegam uma pílula que troca esse sentimento por um sentimento melhor. O vício é chamado de doença do desespero.”
Em sua definição, vício é o uso contínuo de substâncias apesar das consequências negativas. Sob esse ponto de vista, a própria maconha pode induzir ao vício. Ele relata o caso de paciente que, pelo menos uma vez por semana, é internado por crises de vômito. Usuário compulsivo de maconha, pode ter essas crises provocadas pelo fumo ou por algum outro problema médico. A única forma de saber é interrompendo o uso por três a seis meses. “Meu paciente não consegue fazer isso. Se você tá no hospital toda semana e não pode parar de usar só para ver se é isso que está causando vômito, isso é vício de Cannabis.”
Especialistas em vício dizem que a taxa de usuários de Cannabis viciadas chega a 30%. Grinspoon, no entanto, acha que esse tipo de afirmação não faz sentido. “A definição deles de transtorno de cannabis são tão amplas que consideram transtorno de uso de Cannabis pessoas felizes, que aproveitam a Cannabis sem problemas, ou pacientes com boa tolerância.”
“Eu tratei muitas pessoas com o vice em Cannabis. Geralmente são homens jovens usando Cannabis o dia todo e seus pais querem que saiam, interajam com pessoas, voltem pra faculdade. Talvez esteja ajudando em algo, tratando depressão, talvez a ansiedade, mas o fato de estarem no porão fumando maconha o dia todo definitivamente parece ser um transtorno de uso. Não está realmente ajudando eles.”
Nesses casos, recomenda que restrinjam o uso a determinada hora no dia, como à noite, para que possam interagir normalmente com as pessoas durante o dia.
O que é a recuperação do vício?
Muitas pessoas pensam que recuperação é abstinência. A abstinência é necessária, mas não é suficiente, defende. “Recuperação é trabalhar em si mesmo para estar saudável o bastante para estar nesse mundo de maneira que não haja espaço para álcool e drogas. Você não precisa delas, não quer elas. Você tem maneiras saudáveis de se conectar com as pessoas . Formas saudáveis de ter suas necessidades atendidas. Quando as coisas se deterioram, você relapsa. Usar droga é a última etapa, quando todas suas defesas estão desmoronando.”
Como a Cannabis pode ajudar como porta de saída?
O primeiro caminho que aponta é no tratamento de dores crônicas. A Cannabis já demonstrou funcionar muito bem em casos como fibromialgia, osteoartrose e dor neuropática e pode ser considerado como uma opção válida no lugar da prescrição de opiáceos. Os endocanabinoides também podem trabalhar em conjunto com os opiáceos, reduzindo a dose necessária em até 80%. “Quanto menos pessoas tomarem opiáceos, menos pessoas terão overdose daqui 5 anos.”
A Cannabis, quando pensada de acordo com o teor de canabinoides e dose, também pode ajudar no tratamento de ansiedade e depressão e, assim, ajudar no controle das doenças do desespero. Ou seja, reduzir o vício de outras substâncias.
Regulamentações da Anvisa
A segunda noite do evento ainda contou com apresentação da Dra. Margarete Kishi, que abordou com detalhes como funcionam as RDCs da Anvisa hoje em vigência sobre a Cannabis e a mais as novas aprovações de produtos pela agência reguladora.
Posologia de A a Z
Já a psiquiatra Dra. Ana Hounie encerrou a noite com uma aula sobre a posologia da prescrição de Cannabis medicinal no tratamento de doenças mentais com base em sua experiência clínica.
Essas e todas as demais palestras dos cinco dias do mais completo evento sobre Cannabis medicinal do Brasil podem ser acessadas gratuitamente, 100% online até o dia 03/12/2021.