Embora a Anvisa permita desde 2020 a venda de derivados de Cannabis nas farmácias, a importação é a via mais comum no Brasil para estes produtos, já que está prevista desde 2015. Segundo dados da agência, mais de 30 mil pacientes já obtiveram autorização para importar CBD e até produtos com THC.
Nos últimos 7 anos, foram publicadas três resoluções diferentes, que atualizaram e simplificaram as regras para esta importação excepcional. As mudanças, porém, geraram muitas dúvidas nos pacientes. Nós pedimos para nossos leitores enviarem perguntas para a Anvisa através do nosso Instagram.
Nesta semana, o gerente de Produtos Controlados da Anvisa, Thiago Brasil Silvério atendeu o pedido de entrevista do portal Cannabis & Saúde e respondeu às perguntas encaminhadas por email. O servidor esclareceu dúvidas sobre processo de importação, produtos com CBD e THC, profissionais prescritores, vias de administração, cosméticos e alimentos e, principalmente, o que a agência espera para o futuro regulatório da Cannabis no Brasil.
Silvério é formado em Farmácia pela Universidade Federal de Goiás. Atualmente é Especialista em Regulação e Vigilância Sanitária da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, onde ocupa o cargo de gerente de Produtos Controlados. Tem experiência na área de Farmácia, com ênfase na regulação de produtos sujeitos a controle especial.
Confira a entrevista com Thiago Brasil Silvério.
A RDC 327/19 prevê receita especial para “produtos com cannabis”, enquanto a 570/21 exige apenas uma receita simples. Por que essa diferença?
Isso se deve à forma distinta de acesso. O processo de autorização excepcional para importação direta por pessoa física regulamentado pela RDC 355/2020 foi organizado por meio do envio, à Anvisa, de prescrições digitalizadas, de forma que a exigência de receita de controle especial ou de notificação de receita não contribui para o controle, dado que não é possível a retenção da receita pelo dispensador.
Por outro lado, a RDC 327/19 estrutura o acesso a uma categoria de produtos regularizados pela Anvisa, apoiando-se, assim, de forma natural no arcabouço regulatório existente para produtos sujeitos a controle especial, incluindo o formato de prescrição.
Em alguns países como EUA e Canadá, por exemplo, a receita médica é exigida apenas para produtos com THC. Produtos com apenas CBD são considerados suplemento alimentar. Já aqui no Brasil é necessária receita médica tanto para THC como para CBD. Por que a Anvisa considera necessária a prescrição médica para produtos com apenas CBD?
É importante destacar que o canabidiol continua sendo um componente do extrato de Cannabis, e que as exceções para o uso de substâncias da Cannabis vão ao encontro da previsão para o uso médico previsto pela Convenção Única de Entorpecentes de 1961. Por sua vez, os produtos com finalidade terapêutica no país, estão sujeitos à Lei 6.360/76 e às suas disposições relativas a medicamentos.
A atuação da Anvisa na garantia do acesso de nossa população a medicamentos de qualidade, eficazes e seguros passa, necessariamente, por rigorosa análise técnica, a partir de demonstrações concretas vindas da realização de pesquisas clínicas e análises de segurança, eficácia e qualidade. Esse procedimento, que serve ao registro de medicamentos e tem base no conhecimento científico, não pode ser entendido como barreira técnica ou burocrática à liberação para a comercialização de qualquer produto como medicamento.
Oportuno ressaltar que não há qualquer impedimento ao registro como medicamento de derivados de Cannabis Sativa, devendo apenas os interessados nessa autorização demonstrarem existir informações e dados farmacológicos concretos, baseado em evidências científicas, que indiquem ser o uso da Cannabis ou de seus canabinoides eficaz e seguro ao tratamento de doenças.
Igualmente, devem demonstrar a realização de ensaios clínicos em seres humanos que balizem os benefícios e riscos do uso medicinal desses produtos.
Com relação aos derivados de Cannabis (canabinoides), destacadamente o canabidiol (CBD) e o tetra-hidrocanabidiol (THC), espera-se, ainda, o alinhamento das muitas divergências existentes sobre as propriedades terapêuticas deles e, consequentemente, sobre o percentual correto da presença deles na formulação de medicamentos, formas de uso e vias de administração. Há diversos estudos, a grande maioria ainda não conclusivos, que relatam benefícios com uso de derivados de Cannabis.
Contudo, a ausência de informações científicas acuradas implica em imprecisão que impede uma confirmação da eficácia do uso de derivados de Cannabis sativa em terapias curativas ou amenizadoras de dores ou outros sintomas indesejáveis oriundos das várias enfermidades humanas. Consequentemente, nesse contexto de indisponibilidade de informações confirmatórias de eficácia, há uma impossibilidade de real dimensionamento dos riscos envolvidos nesses tratamentos, situação que, por si só, sugere cautela em nossa atuação regulatória.
Após um período de 5 anos, os produtos que possuem hoje autorização sanitária deverão ter registro de medicamento para serem vendidos em farmácia, conforme prevê a RDC 327. Nesse futuro cenário, a Anvisa espera que a venda em farmácia substitua gradualmente a importação ou a agência seguirá facilitando o processo de importação, como vem fazendo desde 2015?
A Anvisa espera que os pacientes que necessitam desses produtos possam acessá-los em segurança. É razoável que se considere que o acesso a produtos regularizados e que atendam à legislação sanitária brasileira tenda a permitir que se possa, progressivamente, prescindir de instrumentos excepcionais para o acesso a produtos não regularizados no país. Desta forma, futuramente, considerando que a ciência regulatória é dinâmica, a agência avaliará o cenário nacional e definirá o caminho regulatório mais adequado a ser seguido.
Em 2015, as autorizações levavam semanas para sair. Num período crítico tiveram casos com quase 2 meses. Mas hoje essa autorização sai no mesmo dia ou no dia seguinte. Quais foram as medidas que a Anvisa tomou para tornar isso possível?
O processo de solicitação já teve uma instrução que demandava mais documentos (formulário, receita, laudo médico, termo de responsabilidade), e era realizado principalmente de forma física.
À medida que a demanda cresceu, o processo de trabalho foi aperfeiçoado com o uso de sistemas informatizados, culminando, em 2019 com a migração para a plataforma do Portal gov.br.
Em outra frente, a regulamentação foi trabalhada de forma que a autorização excepcional pudesse ocorrer de forma a tornar o processo de autorização viável, ajustando o processo de instrução dos pedidos, sem prejuízo do controle administrativo obrigatório na importação de produtos derivados de Cannabis.
Outro entrave era o prazo de desembaraço aduaneiro. Nós paramos de receber esse tipo de reclamação, que um tempo atrás era constante. O que foi feito para solucionar esse problema?
O atraso, muitas das vezes, ocorria em função de algumas empresas de courier, responsáveis pelo processo de importação, que não faziam os pedidos à Anvisa.
Durante as fiscalizações de rotina, era frequente a identificação de remessas irregulares pela Receita Federal do Brasil (RFB), que as encaminha para tratamento administrativo da Anvisa. Também houve uma reorganização dos processos internos de análises dos pedidos de importação, o que contribuiu para dar mais agilidade ao processo.
O §3º da RDC 570/21 diz que a “prescrição deve ser emitida, preferencialmente, por meio eletrônico, subscrita por profissional legalmente habilitado”. Este profissional pode ser, além de médico, um dentista, nutricionista, fisioterapeuta ou veterinário? Quais categorias podem prescrever via 570?
Em 2015, com a publicação da RDC n° 17, de 06 de maio de 2015, a Anvisa passou a regulamentar a importação, em caráter de excepcionalidade, de produto à base de Canabidiol em associação com outros canabinoides, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, para tratamento de saúde.
Tal regulamentação foi concebida em um contexto de necessidade de acesso excepcional aos produtos derivados de cannabis, ante à inexistência de alternativas para acesso a tais produtos no país.
Nesse sentido, e sob essa perspectiva do acesso, entende-se que, conforme previsto pela Portaria SVS 344/98, as prescrições podem ser realizadas por profissionais médicos ou por cirurgiões dentistas, neste caso quando para uso odontológico.
A RDC 570/21 não fala sobre as vias de administração. Ou seja, outras apresentações além de oral e nasal, como tópica, adesivo e supositório, também são possíveis?
Conforme exposto, a regulamentação para importação excepcional por pessoa física foi concebida em um contexto de necessidade de acesso excepcional aos produtos derivados de Cannabis, ante à inexistência de alternativas para acesso a tais produtos no país, e de forma não restritiva, no que tange à indicação médica.
A RDC 570/21 não fala sobre importação de alimentos e cosméticos, seja com CBD ou sem canabinoides, caso da proteína de cânhamo ou óleo de sementes de cânhamo. Também pudera, pois não são produtos para fins medicinais. Sendo assim, qual a orientação da Anvisa para pessoas que buscam importar esse tipo de produto, sobretudo os sem canabinoides?
A RDC 570/2021, que altera a RDC 335/2021, tem escopo específico para a autorização de produtos derivados de cannabis para uso próprio, para tratamento de saúde.
Como a vedação para o uso da Cannabis e seus derivados é ampla e abrange qualquer outra finalidade, e outros usos não são excetuados, essa possibilidade não está prevista pela legislação no momento.
Para quem precisa fazer uma viagem internacional levando a medicação, qual a orientação da Anvisa?
Ao se viajar com medicamentos e produtos sujeitos a controle especial, é necessário que se observe a regra do país de destino, o que valerá também para medicamentos e produtos à base de Cannabis.
Nos próximos dias, publicaremos a entrevista com o João Paulo Perfeito, gerente de Medicamentos Específicos, Notificados, Fitoterápicos, Dinamizados e Gases Medicinais da Anvisa. Ele vai esclarecer dúvidas sobre a venda de derivados de Cannabis nas farmácias brasileiras. Fique atento(a) às redes sociais do portal Cannabis & Saúde!