Anvisa explica que produtos à base de Cannabis podem ser entregues de forma remota e local desde que sejam dispensados por programas públicos ou comercializados por farmácias
A autorização de venda de substâncias controladas, de forma remota, foi autorizada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2020 – por meio da Resolução da Diretoria Colegiada RDC 357/2020 – para atender à pandemia e expira em maio de 2023. No caso da Cannabis Medicinal, a Agência esclarece que só as empresas com autorização para comercializar produtos na farmácia, pela RDC 327/2019, podem ter estoque no país para fazer a pronta entrega local. Segundo a Agência Reguladora, a regra diz que produtos controlados poderão ser dispensados de forma remota apenas em duas situações: por meio de programas públicos ou quando a drogaria/farmácia buscar a receita na casa do paciente.
Na nota enviada ao Portal Cannabis & Saúde, com exclusividade, a Anvisa explica que:
“Não há, atualmente, previsão para prescrição eletrônica de produtos de Cannabis. A receita digital, só é possível para Receita de Controle Especial, de duas vias, hoje aplicável a produtos de lista C1 e C5, o que não inclui os produtos de Cannabis, que requerem o uso de notificações de receita A ou B, conforme o tipo. Dessa forma, reiteramos que a resolução RDC 357/2020 se aplica somente às farmácias e drogarias, que são estabelecimentos autorizados a dispensar medicamentos”, detalha a nota oficial.
De acordo com a Agência Reguladora, a RDC nº 357/2020, estabelece – temporariamente – a extensão das quantidades máximas de medicamentos sujeitos a controle especial, permitidas em Notificações de Receita e Receitas de Controle Especial, que podem ser entregues de forma remota definida por programa público específico e a entrega em domicílio de medicamentos sujeitos a controle especial, em virtude da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) relacionada ao novo Coronavírus.
“A RDC nº 357/2020, com vigência temporária, permite que a drogaria ou farmácia busque a Notificação de Receita ou a Receita de Controle Especial no local onde se encontra o paciente e, somente após a conferência do farmacêutico da regularidade da prescrição, proceda à entrega do medicamento e coleta das informações e assinaturas necessárias, inclusive no Formulário de Registro de Entrega em Domicílio. Ou seja, a previsão da RDC nº 357/2020 para entrega remota pressupõe um estabelecimento dispensador autorizado e mediante os procedimentos acima. Dessa forma, é possível que um paciente compre determinado produto de Cannabis em uma drogaria de forma remota, desde que atendidos os procedimentos acima descritos. Nesse sentido, não se trata de uma resolução aplicável a uma empresa fabricante ou distribuidora de medicamentos ou produtos de Cannabis. Não existe autorização da venda de forma direta de medicamentos sujeitos a controle especial pelo fabricante, e a RDC 327/19 estabelece regras idênticas às dos medicamentos para os produtos de Cannabis por ela regulados.
Para produtos de Cannabis autorizados conforme a RDC 327/19, são aplicáveis as mesmas regras existentes para os medicamentos controlados conforme a Portaria 344/98.
“Assim, não há nenhuma previsão para a venda de produtos de Cannabis no país pela internet, por uma empresa sediada no país. Para os produtos importados por pessoa física, as empresas podem, no máximo, atuar como facilitadoras, dado serem produtos não regulados no país, não havendo atividade regular que os envolva. A norma de importação excepcional ampara apenas a importação direta pelo paciente”, esclarece a Anvisa.
Alessandra Bastos Soares, ex-Diretora de Medicamentos e Produtos Biológico e Alimentos da Anvisa, diz que participou da elaboração da RDC 357 quando ainda ocupava cargo de chefia na Agência Sanitária. “Essa RDC foi desenhada, exclusivamente, para atender à pandemia, quando havia uma dificuldade para sair de casa e ter acesso aos médicos e fármacos. O momento delicado afetou toda a logística. A ideia era editar uma norma para facilitar o acesso aos medicamentos controlados e as receitas passaram a ter uma validade maior. O objetivo era permitir a entrega de medicamentos controlados de forma local e não com dispensação nacional. Compreendo que as empresas entendam diferente, mas esse era o objetivo real da norma. Uma coisa é o que está escrito na resolução, a outra é como o mercado vem operando. Diante do mundo novo que hoje temos após Covid, nós precisamos entender: funcionou bem de forma diferente? Se funcionou bem, o que podemos aproveitar do aprendizado? Espero que a Anvisa trabalhe nesse sentido em parceria com o setor produtivo e os conselhos de classe”, avalia a farmacêutica.
A advogada Maria José Fagundes, CEO da MJD Fagundes Consultoria em Saúde, afirma que a Resolução nº 357 é clara quando diz que produtos controlados poderão ser dispensados de forma remota apenas nas duas situações citadas acima. “A Resolução não fala em digitalização de receita – que precisa ser retida na farmácia. A Cannabis é uma substância controlada, inclusive por acordos internacionais, e está prevista da Portaria 344 do Ministério da Saúde que prevê a lista de substâncias que merecem controle especial. A RDC 357 foi editada para atender a um momento de pandemia, mas há uma limitação na prática”. Fagundes, que durante anos trabalhou como Coordenadora de Vigilância Sanitária, explica que o foco na edição dessas resoluções é reduzir o risco para o paciente. “É observada uma série de indicadores epidemiológicos de danos que vão mapear e determinar a regulação. A Resolução não nasce do dia para a noite. Ela é estudada e a Ação Sanitária é focada na redução do risco sempre”, detalha Maria José.
RDC 327 X RDC 660
A Agência Reguladora afirma que para compreender as restrições sobre o chamado “delivery de produtos de Cannabis” é necessário conhecer as RDCs nº 327/19 e RDC nº 660/22 – que versam sobre a regulação dos produtos à base de Cannabis no Brasil em situações distintas.
“A RDC 327 trata de produtos de Cannabis autorizados no Brasil para venda no varejo farmacêutico, como qualquer outro produto autorizado pela Anvisa”, diz a nota da assessoria de imprensa da Agência Reguladora. Já a RDC 660 trata da importação excepcional, para uso pessoal, de produtos não autorizados no Brasil.
“Segundo a RDC 660, a importação de produtos derivados de Cannabis por pessoas físicas, no entanto, ocorre por meio do serviço de courier, que é a remessa expressa. Neste caso, o produto deve necessariamente vir diretamente da origem no exterior para o paciente e – dado não ser um produto regularizado no país – não é possível que ele seja armazenado para distribuição local, por exemplo. Vale notar que o envio desses produtos pelos Correios não é permitido no país”, detalha a Anvisa.
Outra diferença entre a RDC 660 e 327 é que para trazer o produto do exterior basta ter uma receita branca e autorização de importação da Agência Reguladora. Já as empresas que estão submetidas à RDC 327 podem manter o produto em estoque nas drogarias, mas neste caso, o receituário é B1 para produtos com THC até 0.2%, com retenção da receita azul, que é a garantia de controle junto à Anvisa, dentro da Portaria nº 344/1998, atualmente em revisão. As substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial no Brasil estão previstos tanto na Portaria do Ministério da Saúde nº 344/98, assim como nas RDCs da Anvisa nº 58/07, nº 11/11 e nº 191/17.
Informações desencontradas
No mês passado, notícias – veiculadas em grandes veículos de comunicação – afirmavam que uma farmacêutica teria autorização especial da Anvisa para estocar medicamentos à base de Cannabis no país, encurtando o prazo de importação do medicamento de 30 dias para 48 horas, com cobertura de 70% do território nacional. A promessa era de que o produto seria dispensado por telefone, sem custo adicional de frete – um dos entraves que mais encarece a chegada do medicamento no Brasil.
As reportagens anunciando a possibilidade de delivery motivaram a Agência Reguladora a soltar a seguinte nota divulgada no dia 23/09:
“Com relação às informações veiculadas na imprensa, de que produtos de Cannabis serão vendidos por delivery no Brasil, a Anvisa esclarece que esta prática não é permitida pela legislação atual.
Os produtos derivados de Cannabis, autorizados no país, seguem as regras definidas na resolução da Anvisa RDC 327/2019. Esta norma criou uma nova categoria regulatória, a de Produtos de Cannabis, que não são considerados medicamentos.
O objetivo é viabilizar a disponibilidade dos produtos no país, com níveis mínimos de controles. Esta categoria, no entanto, deve seguir as mesmas regras de comercialização de medicamentos controlados.
Os produtos derivados de Cannabis devem ser dispensados, exclusivamente, por farmácias sem manipulação ou drogarias, por farmacêutico e mediante a apresentação de Notificação de Receita específica, emitida exclusivamente por médico.
A escrituração (o registro da receita/ prescrição) deverá ser realizada por meio do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC), que é um sistema de utilização obrigatória por farmácias e drogarias.
As regras definidas pela RDC 327/19 estão vinculadas aos controles da Portaria 344/98 e não há qualquer previsão da venda remota de medicamentos controlados, na forma descrita pela referida matéria”.
Ações de Fiscalização em Vigilância Sanitária
Numa resposta mais incisiva, a Anvisa publicou a Resolução nº 3.293, no dia 5 de outubro de 2022. A normativa diz respeito a ações de fiscalização em Vigilância Sanitária em seis empresas. Entre os motivos para a ação fiscalizatória – nas empresas que comercializam produtos de Cannabis especificamente – estão: a comprovação do anúncio de venda de produtos sem registro ou Autorização Sanitária e a dispensação remota de formulações à base de Cannabis.
De acordo com Maria José Fagundes um grupo de trabalho foi criado pela Anvisa para discutir atualização de RDCs, e um dos temas em análise é a dispensação remota.
“O setor parece ter dificuldade de entender, há interpretações diversas. Mas o fato é que a Anvisa instaurou ação de fiscalização, inclusive com apreensão cautelar de produtos de empresas que estariam trabalhando com estoque, mas operando pela RDC 660. Quem opera pela 660 é como se fosse um despachante, não pode armazenar produto controlado que exige fiscalização, diferente de um comércio farmacêutico. Como que faz estoque de produto controlado sem Autorização Sanitária? Isso não existe. A regra é a mesma dos outros produtos controlados. A entrada desvirtuada por meio da 660 descaracteriza a autorização excepcional concedida individualmente pela Anvisa. Agora a auditoria da fiscalização vai comprovar ou não o crime sanitário”, analisa a especialista em Vigilância Sanitária.
A farmacêutica Alessandra Soares concorda e enfatiza que a legislação atual (Lei 6360/76) ainda limita a definição do que é medicamento no Brasil tornando o tema ainda mais controverso. “Para dizer que um produto é medicamento, precisa apresentar estudos de qualidade, segurança e eficácia comprovados. O processo precisa ser validado desde a extração à embalagem até a distribuição. Além disso, ainda precisa comprovar que a dose sugerida está segura dentro da faixa estabelecida e que é eficaz para o tratamento da patologia a que se destina a tratar. Os estudos clínicos demandam voluntários dentro de um mesmo padrão. Depende de um plano aprovado pela Anvisa e pela Comissão Nacional de Estudo e Pesquisa Clínica que assegura a condução ética do estudo. Quando olhamos os produtos de Cannabis já consumidos no mundo todo, o que observamos são evidências da clínica médica, mas estudos clínicos ainda estão em curso. Na minha visão, a área médica deveria analisar o tema com um olhar menos apaixonado e mais técnico. Já as empresas deveriam atuar dentro das regras para evitar ainda mais resistência e preconceito”, afirma a ex-Coordenadora Nacional de Vigilância Sanitária.
Entenda as resoluções que regem o comércio, a venda nas farmácias e a importação de produtos à base de Cannabis no Brasil:
RDC da Anvisa nº 327/2019 cria uma nova categoria de produtos derivados de Cannabis. A normativa define as condições e procedimentos para a concessão de Autorização Sanitária para fabricação e importação, bem como estabelece requisitos para comercialização, prescrição, monitoramento e fiscalização de produtos de Cannabis sativa para fins medicinais de uso humano.
Resumindo: A RDC regulamenta o comércio nas farmácias e permite estoque em solo brasileiro.
RDC da Anvisa nº 660/22 permite a importação, por pessoa física ou responsável legal do paciente, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado para tratamento de saúde, de produto derivado de Cannabis. Autoriza também a importação do produto por meio de intermediação de entidade hospitalar, unidade governamental ligada à área da saúde, operadora de plano de saúde para o atendimento exclusivo e direcionado ao paciente previamente cadastrado na Anvisa.
Resumindo: A RDC 660 regulamenta a importação pelo paciente em caráter de exceção e não autoriza estoque em solo brasileiro.