Resumo
O artigo visa conhecer os efeitos cardiovasculares dos canabinoides. É sabido que o controle do sistema cardiovascular é regulado por diferentes outros sistemas que interagem entre si, como o sistema nervoso central e periférico (sistema nervoso autônomo), sistema hormonal, sistema imune, sistema excretor (renal), sistema renina angiotensina aldosterona. Toda essa interação demonstra a complexidade da regulação pressórica, que se torna ainda mais complexa após o entendimento da interação promíscua que o sistema endocanabinóide faz com todos os outros sistemas expostos. Esse estudo perpassa pelos componentes do sistema endocanabinoide, como os receptores CB1 e CB2, pelos endoconabinoides Anandamida (AEA) e 2 Araquidonoil Glicerol (2AG), fitocanabinoides, abordando seus principais representantes, assim como seus efeitos terapêuticos e seus possíveis efeitos adversos. E é observado que os canabinoides podem causar efeitos paradoxais, alguns protetores e outros potencialmente danosos ao sistema cardiovascular, devendo ser usado com cautela em pacientes cardiopatas a depender de sua condição clínica e por outro lado podendo obter efeitos sinérgicos no tratamento de doenças cardiovasculares.
Palavras-chave: Sistema Endocanabinoide (SEC). Tetrahidrocanabinol (THC). Canabidiol (CBD). Canabinoide. Fitocanabinoide. Sistema Cardiovascular. Sistema Nervoso Central. Sistema Nervoso Autônomo.
Abstract
The article aims to know the cardiovascular effects of cannabinoids. It is known that the control of the cardiovascular system is regulated by different
other systems that interact with each other, such as the central and peripheral nervous system (autonomic nervous system), hormonal system, immune system, excretory system (renal), renin-angiotensin-aldosterone system. All this interaction demonstrates the complexity of pressure regulation, which becomes even more complex after understanding the promiscuous interaction that the endocannabinoid system makes with all other exposed systems.
This study goes through the components of the endocannabinoid system, such as CB1 and CB2 receptors, the endoconabinoids Anandamide (AEA) and 2 Arachidonoyl Glycerol (2AG), phytocannabinoids, addressing their main representatives, as well as their therapeutic effects and their possible adverse
effects. And it is observed that cannabinoids can cause paradoxical effects, some protective and others potentially harmful to the cardiovascular system, and should be used with caution in cardiac patients depending on their clinical condition and, on the other hand, being able to obtain synergistic effects in the treatment of cardiovascular diseases.
Keywords: Endocannabinoid System. Tetrahydrocannabinol. Cannabidiol. Cannabinoid. Phytocannabinoid. Cardiovascular system. Central Nervous System. Autonomic Nervous System.
Introdução
É sabido que o sistema endocanabinoide (SEC) está presente em vários tecidos do corpo, incluindo o sistema nervoso central (SNC), órgãos e tecidos periféricos, assim como a regulação metabólica, cardiovascular e imune. Essa ampla ação do SEC se dá através de complexas interações entre seus componentes, com vários efeitos sistêmicos incluindo também ações na vasculatura e o músculo cardíaco.
Na prática clínica dos médicos prescritores de cannabis é muito comum a desprescrição de várias classes medicamentosas. E os anti-hipertensivos são frequentemente ajustados durante esse tipo de tratamento. Essa observação, apesar de empírica, sugere uma grande interação do SEC com o sistema
cardiovascular e traz a necessidade de mais estudos para uma maior compreensão do tema.
O objetivo do artigo é justamente entender quais as formas de interação dos canabinoides com o sistema cardiovascular de maneira a trazer mais segurança para o tratamento, visto que as doenças cardiovasculares apresentam grande prevalência e a maior morbimortalidade do mundo.
Serão abordados os efeitos dos canabinoides no SEC por diferentes perspectivas como receptores, endocanabinoides, fitocanabinoides, e seus efeitos práticos no âmbito cardiovascular.
Receptores
Os receptores de membrana CB1 e CB2 que foram descritos pela primeira vez por Mechoulam em 1995. Os receptores CB1 estão localizados principalmente no cérebro e nos tecidos periféricos, incluindo o endotélio, músculo liso vascular e os rins. E já o CB2 se apresentam no sistema imune, e também foram descritos em células endoteliais regulando citocinas pró-inflamatórias. O fato de o receptor CB2 ser comumente encontrado em células do sistema imune, incluindo células gliais (Ho e Kelly, 2017), permite pensar que o controle da resposta imune decorrente de sua ação tenha também impacto direto sobre o funcionamento do sistema cardiovascular, especialmente em resposta a danos teciduais.
CB1
O receptor CB1 é o receptor canabinóide mais abundante no SNC (matsuda et al, 1990), mas também está presente em tecidos periféricos, como coração, vasos sanguíneos e células inflamatórias (Bony et al, 2003; Rajesh et al, 2008; Dol-Gleizer et al, 2009). A ativação do CB1 na parede vascular reduz a abertura de canais de cálcio, induzindo a produção de óxido nítrico (NO) (Gebremedhin et al, 1999). O óxido nítrico tem como principal função a vasodilatação, além de reduzir a agregação plaquetária, promovendo saúde vascular (Lacchini, 2004).
CB2
No sistema vascular o receptor CB2 é expresso tanto no miocárdio como em células endoteliais e musculares lisas, além das células inflamatórias associadas (Defer et al, 2009; Ramirez et al, 2012). Os receptores CB2 localizados nas células do sistema imune (macrófagos e células T) quando ativados suprimem o sistema imune diminuindo a produção de citocinas (4 singla S et al / Oscar J Leon). E se expressam nas lesões vasculares, especialmente aquelas que apresentam modificações de sua estrutura durante processos inflamatórios locais como observado na aterosclerose e na re-estenose (Viegas e Lacchini, 2008; Girão Silva, Miyakwa e Lacchini, 2021).
Em estudos animais foi produzido resistência à isquemia por meio da ativação dos receptores CB2 nos miócitos, também permite um efeito preventivo na progressão da aterosclerose, inibindo a migração de macrófagos nas placas de ateroma por meio dos mesmos receptores CB2. (26. Steffens S + 27 Franz CA).
Outros receptores
Hoje são conhecidos outros receptores capazes de responder a endocanabinoides. Entre eles estão os GPR18, GPR55, GPR119, além dos receptores vaniloides tipo1 (TRPV1), bem como receptores ativados por proliferadores de peroxinoma (PPAR´s).
Endocanabinoides
A Anandamida (AEA) foi o primeiro endocanabinoide descoberto e é o segundo mais abundante no SNC (sierra, Luquin e Navarro-atano, 2018). Está presente nos ventrículos, em células endoteliais, células circulantes como macrófagos e leucócitos, assim como nas plaquetas. Apresenta também como efeitos descritos a hipotensão e a bradicardia (Kunos et al 2000).
O 2 Araquidonoil Glicerol (2AG) foi o segundo ligante endocanabinoide identificado e é o mais abundante do Sistema Nervoso Central (SNC) e também encontrado no coração, células endoteliais, células circulantes do sistema imune e plaquetas. (Sugiura et al, 1998; Scmid et al, 2000). E também está associado a presença de taquicardia (Kunos et al 2000).
Diferentemente do 2AG a AEA apresenta uma natureza múltipla, como agonista endocanabinoide dos dois receptores: CB1 e CB2.
Fitocanabinoides:
CBD
O CBD apresenta efeito vasodilatador e propriedades antioxidantes em hipertensos (kiccman e Toczek et al, 2020). E se mostrou capaz de aumentar a sensibilidade do mecanismo pressorreceptor (Alves et al, 2010). Desta forma para cada aumento de PA, a bradicardia reflexa é aumentada pelo efeito do CBD.
Entre as ações do CBD, destacam-se a redução da área de infarto, a redução de arritmias ventriculares, bem como a agregação plaquetária (Walsh et al, 2010). Além disso, a melhora da função ventricular esquerda e da cardioproteção após isquemia / reperfusão, se relacionam de forma importante com a redução do infiltrado leucocitário no coração (Feng et al, 2015). Assim como em casos de cardiotoxicidade induzido por drogas (quimioterápicas), miocardite autoimune ou mesmo cardiomiopatia diabética (Kicman e Toczec, 2020).
O CBD é desprovido de efeitos cardiovasculares adversos. Além disso, tem sido sugerido ter potencial terapêutico no tratamento de doenças cardiovasculares, como acidente vascular cerebral, infarto do miocárdio, miocardite, cardiomiopatias e complicações cardiovasculares do diabetes, o que está relacionado com propriedades vasodilatadoras, cardioprotetoras, antioxidantes, anti-inflamatórias e neuroprotetoras.
É importante ressaltar que o CBD também apresenta efeitos psicoativos, porém “não intoxicantes”.
O canabidiol é transportado no sangue principalmente na forma ligada a proteínas e cerca de 10% do CBD se liga aos eritrócitos. É rapidamente distribuído para todos os órgãos bem supridos de sangue, como cérebro, coração, pulmões e fígado. O volume de distribuição de CBD é de cerca de 32 L/kg. Devido à sua alta lipofilicidade, pode acumular-se no tecido adiposo quando usado cronicamente. E é eliminado por metabolismo e excreção, sendo excretado tanto no estado inalterado quanto na forma de metabólitos com urina e fezes. A meia-vida relatada do CBD em humanos depende do estudo (diferentes doses, vias de administração) e pode variar de cerca de uma hora a cinco dias. O canabidiol sofre biotransformação que ocorre principalmente no fígado, onde o CBD sofre transformações envolvendo isoenzimas do citocromo P450.
THC
O THC é o ingrediente psicoativo “intoxicante” da cannabis e tem seu uso questionado para cardiopatas, isso se deve ao efeito simpaticomimético, que aumenta a PA e FC, que pode estar associado a arritmias. Complicações cardiovasculares, como taquicardia e eventos coronarianos agudos, estão amplamente associadas ao uso de maconha (os efeitos são dose dependentes, dependem principalmente do THC) ou à ingestão de canabiméticos sintéticos como constituinte de drogas sintéticas.
Efeitos clínicos:
Bradicardia
A bradicardia é um efeito mediado pela diminuição da estimulação simpática. Também foi observado aspecto bifásico do efeito na pressão arterial, tendo relação dose dependente com aumento da pressão arterial seguido de período de descenso pressórico e da frequência cardíaca.
Taquicardia
A taquicardia está significativamente relacionada ao uso do THC, mas também pode se dar de maneira reflexa a hipotensão arterial.
Hipotensão
A anandamida apresenta como efeitos descritos a hipotensão e a bradicardia, com menor duração do que se foi observado com o THC. Já o 2-araquidonoil glicerol (2-AG) está associado à presença de taquicardia.
Em 2007, Aryana et al. Estabeleceu os principais efeitos cardiovasculares negativos associados ao consumo de maconha (Tabela 1). Porém associa-se ao consumo fumado, não podendo separar os efeitos de cada substância.
- Tabela 1 Efeitos adversos cardiovasculares
Efeito pró arrítmico mediado por catecolaminas
Isquemia cardíaca associada a aumento da frequência cardíaca e trabalho cardíaco em indivíduos susceptíveis
Hipotensão arterial
Demora na busca de atenção médica em eventos coronarianos agudos pelos efeitos analgésicos da planta.
Alteração no aporte de oxigênio do coração secundário ao aumento dos níveis de carboxihemoglobina do sangue.
Produção de gases oxidantes no uso fumado, causando estresse celular que pode levar a risco cardiovascular por ativação plaquetária , formação de colesterol de baixa densidade oxidado e mudanças na ativação do fator VII e indução da resposta inflamatória
Fonte: 28. Aryana et al 2007
Interação medicamentosa
É sabido que o CBD interage com a varfarina, aumentando o efeito anticoagulante e alargando o INR, devendo ter cuidado no manejo deste tipo de paciente.
Considerações Finais
O controle do sistema cardiovascular é regulado por diferentes sistemas, que sobrepõem suas ações, de modo que podemos aceitar a inclusão do SEC como mais um mecanismo de regulação cardiovascular. (Irigoyen et al, 2008; 2016).
Diante dessa informação, o SEC deve ser interpretado como mais um sistema que interage e regula parâmetros cardiovasculares como frequência cardíaca, pressão arterial, tônus vascular e até a integridade endotelial. O consumo de maconha medicinal e recreativa vem crescendo nos últimos anos e muito ainda se tem que aprender sobre os efeitos cardiovasculares de cada fitocanabinóide da planta.
A presença do receptor CB1 em diversos núcleos do SNC responsáveis pelo controle cardiovascular e em vários componentes do sistema vascular, permite entender que os efeitos fisiológicos determinados por sua ativação, representam um somatório de efeitos neurogênicos e vasculares locais tanto sobre a contração cardíaca, como sobre a resistência vascular (Sierra, Luquin e Navarro – atamo, 2018).
Referências
1. Hounie AG, Viegas KA, Lacchini S, et al, 2022, Tratado de Cannabis Medicinal.
2. Kunos et al 2000, Endocannabinoids as cardiovascular modulators.
3. Kiccman e Toczek et al, 2020, The Effects of Cannabidiol, a Non-Intoxicating
Compound of Cannabis, on the Cardiovascular System in Health and Disease.
4. Hodcroft CJ, Rossiter MC, Buch A, 2014, Cannabis-associated myocardial
infarction in a young man with normal coronary arteries.
5. León OJ, Aguiar LG, Quevedo LA, Jara AB, 2018, Efectos cardiovasculares debido al consumo de cannabinoides