O sistema endocanabinoide possui canais e enzimas do receptor potencial transitório (TRP), que interagem com o CBD e THC, compostos encontrados na planta da Cannabis. Um experimento analisou os efeitos de outros 11 canabinoides puros e extratos botânicos de variedades selecionadas da planta nas lipases (enzimas que atuam sobre lipidos).
Foram catalisadas algumas reações químicas que estas moléculas possam sofrer – lipase de diacilglicerol recombinante humana (DAGLa) e lipase de monoacilglicerol de células COS (MAGL), e na amida hidrolase de ácido graxo do cérebro de modelo animal (FAAH) – proteína envolvida em diversos processos biológicos cuja inibição mostrou-se eficaz no tratamento da dor crônica, dor aguda, dor neuropática, ansiedade, depressão, comportamentos de alimentação, distúrbios de movimento, glaucoma, doença de neuroproteção e cardiovascular.
Estudou-se a amida hidrolase ácida de N-aciletanolamina (NAAA) – amida de ácidos graxos que atuam em receptores e enzimas, modulando processos fisiopatolóficos – a captação da anandamida (substância produzida no nosso cérebro que pode ter efeitos analgésicos, ansiolíticos e antidepressivos, semelhantes aos do THC) usando ensaios de cálcio à base de fluorescência em células transfectadas e ensaios enzimáticos à base de substrato radiomarcados.
Além desses compostos, cannabinol (CBN), cannabichromene (CBC), os ácidos (CBDA, CBGA, THCA) e homólogos de propila (CBDV, CBGV, THCV) do CBD, Canabigerol (CBG), THC e ácido tetra-hidrocanabivarina (THCVA) também foram testados.
Para quase todos os canabinoides testados, o estudo também avaliou as atividades dos extratos de canabinoides correspondentes, os BDS. A comparação entre os efeitos observados com canabinoides puros e o BDS correspondente pode revelar a presença de efeitos sinérgicos potencialmente importantes que podem ser úteis ao seu uso medicinal.
Foi constatado que vários canabinoides interferiram em concentrações médias de mM, com enzimas que catalisam a biossíntese de 2-AG – agonista do Cb2 no sistema endocanabinoide – via DAGLa, ou com inativação da anandamida, via transportador de membrana putativo ou FAAH.
Em certos casos, os extratos BDS foram usados em ações farmacológicas próprias no local alvo de investigação, como no caso dos efeitos inibitórios observados em MAGL e NAAA, ou com capacidade de inibir a absorção de anandamida, antagonizar o TRPM8 ou ativar o TRPA1 mais forte aos seus canabinoides puros correspondentes.
Pela primeira vez, foi-se investigado a atividade de quatro alvos de todos os canabinoides puros de plantas e de todos os extratos correspondentes (BDS) disponíveis até o momento, permitindo assim uma estudo de relação estrutura-atividade dos efeitos desses compostos naturais nos canais TRP.
Além disso, as avaliações não foram feitas usando técnicas de patch clamp, assim, os efeitos dos compostos foram exercidos diretamente sobre os canais. Todos esses efeitos nos canais TRP conhecidos até o momento para canabinoides vegetais e sintéticos, também ocorreram em gânglios da raiz dorsal, e deve-se à ativação direta dos BDS.
Os resultados principais da pesquisa demonstraram que:
- CBD, CBG, CBGV e THCV estimularam e dessensibilizaram o TRPV1 humano.
- CBC, CBD e CBN eram potentes agonistas e dessensibilizadores de TRPA1 em modelos animais, mas o THCV-BDS foi o composto mais potente nesse alvo.
- CBG-BDS e THCV-BDS foram os mais antagonistas de TRPM8 em modelos animais
- potentes.
- O CBDV e todos os ácidos inibiram o DAGLa.
- Alguns BDS, mas não os compostos puros, inibiram o MAGL.
- CBD foi o único composto para inibir a FAAH, enquanto o BDS de CBC> CBG> CBGV
- inibiu o NAAA.
- CBC = CBG> CBD inibiu a anadamida, assim como os extratos correspondentes de
- THCVA, CBGV, CBDA e THCA, sendo os últimos extratos os seus inibidores mais potentes.
O experimento também evidenciou estimulantes canabinoides em TRPA1, TRPV1 e TRPV2 que são capazes de dessensibilizar esses canais. É improvável que esses efeitos sejam devidos a uma ação antagonista, como no caso do TRPM8, e não por dessensibilização, porém, o potencial para determinado canabinoide nem sempre foi proporcional à sua potência como agonista.
O potencial dos agonistas de TRP de também dessensibilizar esses canais depende, não apenas de sua potência, mas também em sua lipofilicidade – habilidade de se dissolver em lipídios -, e na facilidade de penetrar e atravessar a membrana plasmática.
A dessensibilização pode ter consequências importantes para o uso terapêutico dos canabinoides em distúrbios nos quais esses quatro canais têm mostrado empenhar um papel permissivo, como a dor crônica, a dor inflamatória e o câncer.
Os canabinoides sintéticos que ativam os receptores de canabinoides, exercem efeitos antinociceptivos. Eles anulam ou reduzem a percepção e transmissão de estímulos que causam dor – parcialmente através da dessensibilização por TRPA1. Os CBDV, CBDA, CBGA, THCA e CBDVA em DAGLa, possuem ações inibitórias que podem ter efeitos terapêuticos importantes.
Recentemente, foi verificado que a inibição de DAGLa, com um inibidor sintético seletivo, inibe a ingestão de alimento palatável comparado à comida normal em modelos animais, e níveis excessivos de 2-AG foram associados a obesidade abdominal e às suas consequências metabólicas, tais como a dislipidemia e a intolerância à glicose.
Logo, se esses canabinoides também forem encontrado para inibir o DAGLa in vivo, demonstrando levar a uma redução nos níveis excessivos de 2-AG que acompanham hiperfagia e obesidade abdominal, pode-se propor testes em modelos animais com obesidade e, eventualmente, em ensaios clínicos em indivíduos obesos.
Recentemente, foi encontrado um inibidor potente da MAGL a partir da observação do THCA puro, CBDA e CBG, significativamente menos potentes quando inativos, inibindo essa enzima. No entanto, ao testar um “livre de CBG”, o CBG-BDS, foi-se descoberto que esse composto é menos ativo que seu extrato correspondente, sugerindo que componentes canabinoides e não canabinoides dos extratos da planta possam colaborar na inibição da enzima.
Isso indica que esses extratos possam ser usados para inibir doenças crônicas e dores inflamatórias, e uma possibilidade semelhante também pode existir para CBC-BDS e CBGV-BDS como inibidores de NAAA, como compostos sintéticos capazes de inibir essa enzima, e subsequentemente de prolongar a vida útil do mediador endocanabinoide endógeno anti-inflamatório.
O uso de vários canabinoides como analgésicos também é sugerido por seus efeitos inibitórios na inativação endocanabinóide mediada por FAAH ou anandamida, por recaptação celular. Curiosamente, vários BDS e compostos mostraram inibição a anadamida, mesmo na ausência de efeitos sobre a FAAH, sendo a favor da possibilidade de que a recaptação de endocanabinoides não ocorra exclusivamente via difusão conduzida por FAAH através da membrana plasmática.
Em suma, não só canabinoides diferentes, como também extratos da planta enriquecidos em tais compostos, podem ser utilizados no futuro como potenciais agentes terapêuticos, especialmente se os procedimentos para extração de materiais vegetais e a seleção das cepas apropriadas forem padronizados.
Esses produtos naturais podem interagir com proteínas do sistema endocanabinoide, bem como com seus canais avaliados. Os resultados desse estudo também reforçam a sugestão de que os canais avaliados, juntamente com seu papel como sensores de estímulos térmicos, inflamatórios, mecânicos e químicos, devem ser considerados como receptores ionotrópicos de canabinoides.
Referência: Luciano De Petrocellis. Effects of cannabinoids and cannabinoid-enriched Cannabis extracts on TRP channels and endocannabinoid metabolic enzymes. British Journal of Pharmacology. 2010
© Copyright, todos os direitos reservados a Ana Gabriela Baptista – Imagem e conteúdo de autoria intelectual, não podendo ser copiadas. 2020.