O uso medicinal do THC, molécula presente na Cannabis, tem se destacado devido às suas propriedades terapêuticas que podem beneficiar pacientes com uma variedade de condições de saúde. Porém, apesar desse crescente reconhecimento do potencial terapêutico do THC, muitos ainda têm dúvidas sobre a dosagem segura, a legalidade e o acesso a produtos com altos teores de THC no Brasil.
Por isso, conversamos com o médico Dr. Ricardo Ferreira, para esclarecer as principais dúvidas sobre esta substância potencialmente benéfica.
Entenda a diferença entre concentração, teor e dosagem de THC
Concentração
Uma das confusões mais comuns entre pacientes é a distinção entre dosagem e concentração. É importante esclarecer que a concentração refere-se à quantidade de THC presente em um produto, geralmente expressa em mg/ml, no caso de produtos líquidos, ou mg/g, para produtos sólidos, como gomas.
“A concentração também pode ser apresentada em forma de porcentagem. Por exemplo, um produto líquido com 1% de THC equivale a 10 mg de THC por ml, ou seja, THC 10 mg/ml. Essa informação é fundamental para entender a potência do produto e planejar sua utilização de forma adequada”.
Proporção de THC
A proporção, por sua vez, representa a relação entre a quantidade de THC e outros canabinoides, especialmente o CBD.
“Por exemplo, um produto contendo 10 mg/ml de THC e 10 mg/ml de CBD tem uma proporção de 1:1. Já um produto com 20 mg/ml de CBD e 1 mg/ml de THC apresenta uma proporção de 20:1. Essa relação é crucial, pois a sinergia entre os canabinoides influencia significativamente tanto os efeitos terapêuticos quanto os possíveis efeitos adversos. Proporções diferentes podem alterar drasticamente os resultados clínicos, dependendo das necessidades do paciente e da condição tratada”, pontua o médico.
Dosagem de THC
A dosagem refere-se à quantidade total de THC administrada a uma pessoa conforme a condição médica e o efeito desejado.
“Para calcular a dosagem de forma precisa, é necessário conhecer a concentração do THC no produto e a quantidade de produto administrada (em volume ou peso). Esse cálculo é essencial para garantir a eficácia e estabilidade do tratamento, evitando efeitos adversos relacionados ao uso inadequado”.
Conforme explica Dr. Ricardo, no contexto clínico, dosagem e proporção são fatores fundamentais para controlar os efeitos terapêuticos dos canabinoides. Pois os efeitos do THC são dose-dependentes, ou seja, eles estão diretamente relacionados à quantidade, ao tempo e à frequência de uso.
Além disso, o médico salienta que a interação entre diferentes canabinoides, determinada por suas proporções, pode gerar respostas terapêuticas distintas, mesmo com concentrações idênticas de THC.
É justamente por este motivo que é imprescindível a importância de um planejamento individualizado, ajustando concentração, proporção e dosagem de maneira personalizada para maximizar os benefícios terapêuticos e minimizar potenciais efeitos adversos.
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Como a interação entre o THC e o sistema endocanabinoide influencia os efeitos terapêuticos no tratamento de diferentes condições?
O Sistema Endocanabinoide, também conhecido como SEC, tem um papel fundamental na regulação do equilíbrio fisiológico do corpo, influenciando funções essenciais como a dor, o humor, o sono, o apetite e a resposta imunológica.
A ativação do SEC, especialmente através da interação com fitocanabinoides como o THC, demonstra um grande potencial para aliviar os sintomas de várias condições e minimizar o impacto negativo que essas doenças têm na vida diária dos pacientes.
Para o médico, a interação do THC com o SEC demonstra um potencial terapêutico amplo e versátil, permitindo o manejo eficaz de sintomas em diversas condições clínicas. Esse efeito multimodal é resultado tanto de sua atuação nos receptores canabinoides quanto de sua influência em outros sistemas regulatórios do organismo, reforçando seu papel como uma ferramenta importante no arsenal terapêutico moderno.
THC para dor crônica e inflamação
No caso da dor crônica e da inflamação, o Dr. Ricardo destaca que o THC desempenha um papel relevante ao ativar os receptores CB1 no sistema nervoso central, “reduzindo a transmissão de sinais nociceptivos responsáveis pela sensação de dor”.
Além disso, por meio de sua interação com os receptores CB2, o THC inibe a liberação de mediadores pró-inflamatórios, mostrando-se especialmente eficaz em condições com forte componente inflamatório, como doenças autoimunes e degenerativas.
“Esse mecanismo anti-inflamatório é complementado pela capacidade do THC de influenciar outros sistemas, como o serotoninérgico e o GABAérgico. Essas interações promovem efeitos adicionais, incluindo relaxamento muscular, alívio da ansiedade, melhora do apetite e redução de náuseas, ampliando seu espectro terapêutico.
Em casos de espasticidade (contraturas musculares descontroladas e muitas vezes dolorosas), como os associados à esclerose múltipla, o THC atua reduzindo a excitabilidade dos neurônios motores, o que resulta em alívio da rigidez muscular e da espasticidade. Esse efeito permite uma melhora significativa na qualidade de vida dos pacientes com condições neurológicas que impactam a função motora”.
No Brasil, quais produtos à base de THC estão disponíveis?
No Brasil, a utilização de produtos à base de THC para fins medicinais tem avançado nos últimos anos. Para o médico, apesar do progresso em relação às formas de acesso, “ainda existem desafios importantes”. Ele avalia que a expansão dessas vias de acesso, aliada à regulamentação mais ampla e ao apoio ao paciente, são fatores fundamentais para garantir que os benefícios terapêuticos da Cannabis possam ser mais amplamente aproveitados.
“Atualmente, os pacientes brasileiros podem acessar produtos contendo THC de quatro maneiras principais, cada uma com suas particularidades e desafios. Uma das formas mais conhecidas é por meio de produtos registrados na ANVISA, como o Mevatyl® (Sativex na gringa). Esse medicamento, disponível em farmácias sob prescrição médica de controle especial, é um spray oral com proporção de THC e CBD, contendo aproximadamente 25 mg/ml de cada canabinoide. Ele é indicado oficialmente para tratar a espasticidade em pacientes com esclerose múltipla, mas frequentemente é utilizado off-label para outras condições clínicas, como dor crônica. Apesar de sua relevância terapêutica, o Mevatyl® enfrenta dificuldades de acesso recentemente, devido a aumentos expressivos de preço e problemas de disponibilidade. Além disso, os demais produtos disponíveis em farmácias brasileiras apresentam concentrações significativamente menores de THC, geralmente limitadas a 3 mg/ml, com proporções muito maiores de CBD em relação ao THC, frequentemente superiores a 20:1. Essas formulações com maior prevalência de CBD ajudam a evitam dissociativos, que podem ser desejados, mesmo quando o paciente utiliza volumes maiores”.
Importação de produtos com THC
“Outra forma de acesso relevante é por meio da importação individual de produtos canábicos sob prescrição médica. Essa modalidade permite que os pacientes obtenham óleos, gomas e outros produtos com altas concentrações de THC. Embora a importação exija autorização prévia da ANVISA, o processo tem se tornado mais acessível e menos oneroso nos últimos anos. Atualmente, essa via é amplamente utilizada por pacientes que necessitam de concentrações maiores de THC e proporções específicas entre os canabinoides, adaptadas às suas necessidades terapêuticas”.
Há segurança no uso do THC quando prescrito e acompanhado por um médico
Embora o uso medicinal do THC possa gerar preocupações, estudos e a experiência clínica demonstram que ele pode ser seguro e eficaz quando administrado sob a supervisão de um médico. “É importante destacar que, tanto a literatura científica quanto a prática clínica indicam que o risco de efeitos adversos graves com o uso de THC, quando administrado de forma controlada, é baixo. Portanto, com uma abordagem responsável e personalizada, o THC pode ser uma ferramenta terapêutica segura e eficaz para muitas condições clínicas”, observa.
Para garantir a segurança, Dr. Ricardo observa que algumas estratégias são fundamentais.
- Titulação da dose: é fundamental iniciar o tratamento com doses baixas e ajustando gradualmente conforme a tolerabilidade e a resposta clínica do paciente. Esse processo permite encontrar a dose ideal para maximizar os benefícios terapêuticos, minimizando o risco de efeitos adversos.
- Escolha do produto adequado: “A proporção entre THC e outros canabinoides, especialmente o CBD, desempenha um papel crucial. O CBD, por exemplo, pode ajudar a equilibrar os efeitos psicoativos do THC, aumentando a tolerabilidade do tratamento e reduzindo o risco de reações indesejadas, como ansiedade ou paranoia. A seleção do produto deve ser feita com base nas necessidades específicas do paciente e nas características da condição a ser tratada”.
- Monitoramento: O acompanhamento médico regular (seja através do whatsApp) permite identificar precocemente quaisquer efeitos adversos, como sedação excessiva, alterações comportamentais, ansiedade ou outros sintomas negativos, possibilitando ajustes no tratamento quando necessário.
Quais condições médicas mais se beneficiam de concentrações mais altas de THC? Existem evidências científicas robustas para isso?
“Há evidências consistentes que respaldam o uso de THC em diversas condições clínicas, com destaque para dores neuropáticas e espasticidades, como as contraturas musculares associadas a lesões neurológicas, incluindo doenças desmielinizantes, distonias e condições com denervação. Nessas situações, o THC atua de maneira eficaz, reduzindo a intensidade dos sintomas e promovendo melhora na qualidade de vida”.
Tratamento de náuseas e vômitos em tratamentos oncológicos
“O THC também se mostra benéfico no manejo de náuseas e vômitos induzidos por tratamentos oncológicos, sendo uma opção relevante para pacientes submetidos à quimioterapia e outros procedimentos similares. Além disso, há evidências de sua utilidade no tratamento do glaucoma, ajudando a reduzir a pressão intraocular em determinados casos”.
Cuidados paliativos com THC: um alívio possível
“Para pacientes com patologias gravemente limitantes ou em estágios avançados do fim de vida, o efeito dissociativo do THC pode oferecer alívio significativo ao sofrimento emocional e físico. Esse efeito, ao desconectar parcialmente o indivíduo de uma percepção dolorosa da realidade, pode proporcionar conforto e reduzir o impacto do sofrimento em momentos críticos, contribuindo para um manejo mais humanizado e compassivo dessas condições”.
Como a proporção entre THC e CBD influencia os efeitos terapêuticos?
“A interação entre THC e CBD ilustra de forma clara o chamado efeito comitiva, ou “entourage effect”, que prefiro denominar efeito sinérgico. Esse conceito descreve como a combinação de diferentes moléculas, como os fitocanabinoides, gera efeitos que vão além do que cada composto seria capaz de produzir isoladamente. Essa sinergia permite um ajuste fino das propriedades terapêuticas, ampliando sua aplicabilidade clínica.
A proporção entre THC e CBD é um fator crucial para determinar o perfil terapêutico e a tolerabilidade de um produto. Por exemplo, uma proporção 1:1 de THC para CBD é amplamente utilizada no manejo da dor neuropática e da espasticidade. Nessa combinação, o CBD desempenha um papel modulador, reduzindo os efeitos psicoativos do THC e prolongando sua duração de ação, o que proporciona um alívio mais estável e equilibrado dos sintomas.
Por outro lado, produtos com uma proporção alta de CBD em relação ao THC, como 20:1, são indicados para pacientes que apresentam alta sensibilidade ao THC ou histórico de condições psiquiátricas. Nessa formulação, o CBD atua atenuando possíveis efeitos adversos do THC, como ansiedade ou paranoia, tornando o tratamento mais seguro para populações vulneráveis.
Já as proporções altas de THC, como 20:1, são mais utilizadas em condições severas, como dor refratária de alto impacto e náuseas intensas. Essas proporções são particularmente úteis para pacientes que toleram bem os efeitos psicoativos do THC ou que necessitam de uma ação terapêutica mais potente”.
Há evidências que sustentam combinações específicas para diferentes condições?
“Estudos também sugerem que o CBD pode prolongar a meia-vida do THC, aumentando sua eficácia sem amplificar os efeitos psicoativos. Esse mecanismo não apenas potencializa os benefícios terapêuticos do THC, mas também contribui para um perfil de segurança mais favorável, reforçando o papel do CBD como modulador essencial em formulações que incluem THC. Essa interação entre os dois canabinoides exemplifica a importância de considerar proporções individualizadas no planejamento terapêutico, garantindo resultados mais eficazes e toleráveis para cada paciente”.
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