Para fechar com chave de ouro 2022 a entrevista exclusiva é com o Diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Alex Machado Campos. Nesse bate-papo, o Diretor da Anvisa falou sobre a recente decisão, de sua relatoria, que autorizou pela primeira vez o cultivo da Cannabis no Brasil para o desenvolvimento de pesquisas na área neurológica e psiquiátrica. Para Campos, a autorização concedida à Universidade Federal do Grande do Norte é uma vitória para a comunidade científica e fortalece a pesquisa no país, além de abrir um precedente para que outras instituições possam estudar a Cannabis de forma controlada e legal. Campos também falou sobre o vácuo jurídico para o uso terapêutico da Cannabis em animais no Brasil, as restrições para produção de outros derivados da planta sem efeitos psicoativos como os cosméticos, e também deu sinais das direções que podem tomar a revisão da Resolução da Diretoria Colegiada 327/2019, que regulamenta a venda de produtos à base de Cannabis nas drogarias. Quer saber ainda o que o diretor da Anvisa pensa sobre a regulamentação do cânhamo industrial e como o assunto pode avançar nos próximos anos? Não deixe de ler a reportagem completa!
Recentemente, a Anvisa autorizou – de forma histórica – o cultivo da Cannabis para fins de pesquisa na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. A sua relatoria foi seguida de forma unânime pelo colegiado, não é?
A decisão foi unânime, construída ao longo de um ano inteiro. É importante essa oportunidade, agradeço ao canal a chance de poder explicar melhor a decisão, para trazer ao conhecimento público as razões que justificaram essa opção que a Anvisa fez nesse momento. Em síntese, havia um recurso aviado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte contra uma decisão da própria Agência, que incialmente indeferiu o pedido para autorização de cultivo para pesquisa. Em especial, a possibilidade de importar sementes e promover o plantio de maneira controlada.
Ao avaliar o trabalho de pesquisa que vem sendo realizado na área de neurociência pelo Instituto do Cérebro, que é um departamento do âmbito da UFRN – eu tive a chance de visitar pessoalmente – pude entender que se trata de ciência. Essa é a palavra que define a decisão da Anvisa.
Dar condições dentro das competências da Agência para que uma instituição de pesquisa e ensino – voltada ao estudo da Cannabis – pudesse desenvolver ciência, da maneira mais ampliada possível, obviamente estabelecendo uma série de critérios, uma série de requisitos, de forma controlada. Eu acho que essa é a sua mensagem mais importante da decisão.
No seu voto você defendeu a pesquisa em solo brasileiro para não ficar refém de importação. Essa decisão abre precedente para que outras instituições de pesquisa e ensino também possam fazer o mesmo pleito para obter autorização de cultivo aqui no país?
Sem dúvida tem um caráter motivacional. A Universidade Federal do Rio Grande do Norte vai tocar quatro projetos de pesquisas com a Cannabis Sativa. É importante esclarecer o antes e o depois. Veja, até aqui, a UFRN – por meio do Instituto do Cérebro – estabelece essas pesquisas com importação de produtos já formulados, praticamente, de uma única molécula, que é o CBD. Quem conhece do tema sabe que a Cannabis é capaz de produzir mais de uma centena de moléculas. Há centenas de fitocanabinoides! E o que o Instituto vai fazer? Agora, dispondo da possibilidade de plantar, de cultivar indoor – de maneira controlada – dentro de um ambiente de laboratório, numa quantidade que também vai ser acompanhada pela Anvisa, eles vão poder estabelecer interações entre as diversas moléculas. Interações entre as moléculas e outros compostos afim de estudar a eficácia e a segurança da Cannabis e desses fitocanabinoides em perspectivas de eficácia e segurança na área neurológica e psiquiátrica. Então, dos projetos que me vem à cabeça, que consta no meu voto, um é na área de epilepsia para estudar as interações com os aspectos convulsivantes da doença, outro na área de autismo e de tinnitus, zumbido. Então, sem dúvida, essa decisão gera um precedente importante.
É bom esclarecer que, anteriormente, a Anvisa já tinha inaugurado esse debate sobre o cultivo. Mas, tinha sido num ambiente onde a discussão era voltada ao cultivo em escala de produção, em escala comercial. A gente entende que esse debate precisa ampliar, porque precisa envolver outros atores sociais, outros atores governamentais, inclusive a Polícia Federal. Nós sabemos que a Cannabis é um produto com alta capacidade de desvio. E essa é uma dimensão que a gente tem que entender. Mas isso não pode ser um obstáculo aos avanços que a Cannabis representa, principalmente para os pacientes.
Acho que é uma grande conquista! A comunidade científica comemorou a decisão. De fato, havia essa limitação de explorar a capacidade terapêutica da planta. Com essa decisão, não há dúvida, outras universidades e centros de pesquisa devem se socorrer desse precedente para inaugurar novas pesquisas com a Cannabis.
Já tem alguns pedidos na fila?
Acredito que não. A decisão ainda é muito recente. A própria Universidade Federal do Rio Grande do Norte deve submeter nesses próximos dias alguns documentos à Anvisa afim de que a gente possa certificar de que aqueles requisitos do voto serão alcançados pela Universidade. Mas a instituição já antecipou que atende a todos os requisitos.
E para o uso veterinário? Sabemos que há um vácuo jurídico. Assim como os humanos, os animais também possuem um Sistema Endocanabinoide e poderiam se beneficiar do uso medicinal da planta. É possível construir uma parceria entre a Anvisa e o Ministério da Agricultura e Pecuária em conjunto para regulamentar a matéria?
Essa é uma discussão que está no limbo do ponto de vista jurídico, porque há uma competência dada ao Ministério da Agricultura proeminente sobre o tema. A Anvisa não debate e não regula medicamentos e soluções terapêuticas para uso veterinário. Isso não é uma competência da Agência. Não há dúvida de que há espaço no âmbito para levar conhecimento, trazer a experiência da Agência. Se essa aplicação terapeuta beneficia o homem, os humanoides, os animais seguramente também podem se beneficiar. Mas essa não é uma discussão que pode ser liderada pela Anvisa. A Anvisa pode apoiar o debate e a Anvisa já faz isso envolvendo outros temas, inclusive o uso veterinário de medicamento do modo geral. A gente interage nesse debate, mas ele não é dirigido ou liderado pela Agência.
Com relação aos cosméticos. Essa é uma competência da Anvisa, não é? Marcas famosas como a Avon e a Garnier já estão lançando linhas de cosméticos da Cannabis fora do Brasil, inclusive, sem canabinoides, usando só óleo da semente que não tem qualquer psicoativo ou até efeito medicinal. A gente também pode esperar avanços nessa linha de cosméticos à base de Cannabis?
Esse é um debate que extrapola a Anvisa. A discussão que foi inaugurada nesse recurso tem um espaço legal bem definido. A própria lei que cria a Política Nacional de Drogas estabelece que os produtos proscritos, os produtos tidos como proibido de utilização, que são controlados também para efeitos de tráfico de drogas e percussões de ordem penal e segurança pública, eles têm uma disciplina própria pela Lei de Drogas. E nessa Lei existe um dispositivo específico, que em condições específicas pelo próprio Estado, é possível a utilização desses produtos para fins terapêuticos, para fins de pesquisa e para fins medicinais. Essa é uma discussão bem definida do ponto de vista de pesquisa.
Do ponto de utilização mais ampliada, eu não tenho dificuldade nenhuma de reconhecer a aplicação em vários setores da economia. A gente sabe do potencial do cânhamo, por exemplo. Isso já é algo conhecido, não há discussão quanto a isso. No entanto, a discussão quanto a essa aplicação extrapola a Agência, porque existe Lei específica que trata do tema de produtos controlados e a Cannabis está nesse contexto. Então, não é uma discussão ideológica nesse debate. A discussão é também de alcance técnico-jurídico.
Eu acho que esse debate, a Anvisa pode participar, mas tem uma amplitude que envolve Congresso Nacional, os órgãos do governo, para que encontre o local certo. Mas que isso não constitua um obstáculo ao desenvolvimento nacional.
É interessante que o cânhamo não contém substância controlada (há traços de THC, sem psicoatividade na sua composição). E a China, que é a maior produtora de cânhamo do mundo, tem uma política de drogas super restrita. A maconha lá é proibida e o cânhamo nunca foi negado, nunca foi proibido naquele país. Interessante essa cultura, não é?
É verdade. Nos últimos anos tivemos envolvidos com a pandemia. O Brasil acompanhou o desafio das autoridades de saúde, vacinas, medicamentos voltados à Covid, dispositivos médicos, máscaras…. Enfim todos os insumos que interagiram na pandemia, medicamentos antibióticos, relaxantes musculares para internações. Foram dois anos dedicados à pandemia. Ainda estamos no estado pandêmico, mas em outra situação, com vacinação ampliada, conhecendo melhor doença. Agora, alguns temas ganharam prioridade e energia. Um deles foi esse do recurso envolvendo a UFRN.
Não tenho dúvida que esse debate seguirá agora com muita força, em várias perspectivas. As próprias pesquisas que serão estabelecidas nos ambientes das instituições de ensino e pesquisa trarão atenção ao debate. E aquilo que precisa ser distinguido, separado do debate sob o controle de produtos que merecem esse tipo de controle. Inclusive no plano internacional, é bom lembrar que o Brasil faz parte de acordos internacionais, de tratados que estabelecem as relações entre os países quando se trata de produto controlado. Acho que o cânhamo é um debate que precisa avançar. O cânhamo acaba sofrendo com o preconceito em relação a Cannabis, mas eu acredito que isso vai avançar muito rapidamente, de maneira acelerada, porque não é possível conter inovação.
Sobre o PL 399/2015 – o que mais avançou até agora no Congresso. Como a Anvisa avalia o texto? E em quais legislações a Anvisa se ampara para editar as suas regulamentações?
Eu acabei citar a lei que estabelece a Política Nacional de Combate às Drogas e a Anvisa é o órgão central no estabelecimento das listas de produtos controlados. Essa lista, inclusive, pauta atuação da Polícia Federal em relação ao combate às drogas, ao tráfico de drogas, ao descaminho e a Anvisa, de fato, tem um papel central nesse debate. Mas é um papel que decorre dos requisitos legais. Nós acompanhamos o debate no Congresso sempre com muito respeito. Eu entendo que a Câmara e o Senado são as instituições que devem ampliar esse debate. São casas permeáveis a um debate mais aprofundado. As preocupações da Anvisa se circunscrevem às questões técnico-sanitárias.
Nós temos nos manifestado no sentido de que se a Agência for convocada a participar desse debate, dispomos de condições para contribuir.
A regulação tem que ser proporcional à realidade e sobretudo espelhar a vontade da população por novas soluções terapêuticas.
Então, esse recurso acaba sendo um contributo a esse debate. É importante distinguir o debate da utilização da Cannabis do ponto de vista terapêutico de todo debate de uso recreativo, que acaba contaminando aquilo que deve ser o lugar certo desse debate, que é pesquisa voltada ao conhecimento, e esse conhecimento voltado à novas soluções terapêuticas.
E agora para concluir, fazendo uma retrospectiva de 2022, qual é o saldo? 25 produtos à base de Cannabis já têm autorização para serem vendidos das farmácias. A Anvisa acaba de autorizar o cultivo para pesquisa. O saldo é positivo?
O saldo é muito positivo. Nós temos essa legislação que a Anvisa editou, que é uma legislação que ela precede um pouco o início da pandemia, RDC 327, que trouxe um marco jurídico importante na evolução do conhecimento sobre Cannabis. Uma regularização sanitária que é proporcional a esse conhecimento. A gente vê a pujança do mercado, ao reconhecer mais de 20 produtos regularizados na Agência no escopo da 327. Inclusive, essa RDC está sendo revista nesse momento. A Anvisa já fez uma primeira ausculta pública por intermédio da plataforma digital E-participa, onde as pessoas puderam contribuir de maneira aberta e transparente, respeitando a diversidade dos atores envolvidos. Contribuíram desde mães de pacientes até a indústria organizada.
Então acredito que a revisão da 327 vai permitir a ampliação do debate. Por exemplo, a questão da forma de administrar o produto a base de Cannabis. Hoje, só a modalidade oral é permitida. Mas está em estudo a questão do spray, utilização em pele, a própria interação venosa da substância. Há uma gama de possibilidades. A inovação sempre vai estar à frente da regulação. O regulador tem que de estar pronto para acompanhar esse dinamismo. Acredito que o saldo é muito positivo. Não apenas de 2022, mas sobretudo da evolução da 327.
E com o debate agora aberto – porque ele está aberto – eu acho que a gente vai consegui alcançar um outro nível de maturidade nos debates de Cannabis na Anvisa.E com o debate agora aberto – porque ele está aberto – eu acho que a gente vai consegui alcançar um outro nível de maturidade nos debates de Cannabis Anvisa, conclui Campos.