No teste do pezinho, Emanuelle foi diagnosticada com hipotireoidismo congênito, uma disfunção da tiroide. A mãe, Maristela Lucas, tinha apenas 22 anos e entendeu naquele momento que sua vida mudaria para sempre. Quatro meses depois, a bebê passou a ter espasmos. Ficou inchada, molinha e não interagia.
Aos seis meses, um segundo diagnóstico indicou esclerose tuberosa, uma doença genética rara que afeta vários órgãos. Manu tinha tumores no cérebro, coração e na pele, que eram visíveis por lesões. A jovem mãe teria um longo caminho pela frente, até finalmente descobrir a Cannabis medicinal.
Quando Lucas levou os exames para a pediatra, a médica recomendou que eles aceitassem a condição porque não havia nada a fazer. Apavorada, a mãe deixou o consultório sem se despedir. “Como vou aceitar isso?”, dizia, entre xingamentos indignados. Rejeitando a sentença médica, começou a pesquisar profissionais. Primeiro, um neurologista, que deu mais detalhes sobre a esclerose tuberosa e recomendou não procurar nada na internet para não se apavorar. Como tratamento, somente paliativos.
Novamente Lucas não se conteve, comprou um computador só para poder pesquisar. Era 2009, Manu não tinha nem um ano e as convulsões aumentavam. Durante o primeiro ano de vida da criança, Lucas e o marido consultaram três neurologistas, até encontrar um que entendesse um pouco de esclerose tuberosa. Foi um período de troca de remédios, aumento de convulsões e pouco desenvolvimento.
Lucas ainda lembra que, com onze meses, percebeu a primeira interação de Manu. Veio a esperança, o terceiro médico parecia ter acertado os remédios. Com um ano, Manu estava mais alerta, mas não conseguia ficar sentada sem apoio, eles percebiam fraqueza nas pernas e braços e a menina passava a maior parte do tempo dormindo.
Coma e 162 convulsões diárias
Quando fez um ano e meio, Manu foi internada com pneumonia e piora nas convulsões. Perto de dois anos, teve uma infecção respiratória e foi internada novamente. A pneumonia e as convulsões constantes a colocaram na UTI em coma induzido. Depois de três meses internada, Manu saiu com sonda nasal, não se alimentava mais, não aceitou mais o peito. Lucas percebeu que ela não tinha mais memória da família, não falava mais “baba, tete, papa” e estava desnutrida. A rotina deles era de dois dias em casa e dois dias no hospital, entre convulsões, pneumonia e infecções.
Lucas não desistiu de suas pesquisas, continuava buscando médicos que entendessem da doença, que dessem um alento e melhorassem a vida de Manu. Ela chegou a conseguir uma junta médica que discutia, buscava informações, mas sem muito sucesso. O que Lucas manteve foi a endocrinologista que atende Manu até hoje. Em 2013, a menina chegou a ter 162 convulsões em um dia, um misto de surtos rápidos, mais demorados, dos fracos aos mais fortes, um atrás do outro. Mesmo dormindo a menina tinha ataques.
Apesar de não poder ficar longe da filha, Lucas foi a Belo Horizonte num congresso da Associação Brasileira de Esclerose Tuberosa (ABET). Com os exames de Manu, Lucas conheceu várias mães e teve a indicação de um neurologista que conhecia a doença. Aliviada, ela marcou uma consulta no valor salgado de R$ 800. Lucas conta que o médico nem precisou avaliar todos os exames, Manu era uma “bonequinha de pano”, conforme conta a mãe. Apesar de fazer fisioterapia, ela não reagia, não fazia nada sozinha, não se mexia além das constantes convulsões. Novamente novos remédios e a esperança de melhorar a vida de Manu e da família.
Resistência médica
Em 2014, já com cinco anos, as convulsões voltaram a piorar, mais infecções, e novamente a UTI. Foi lá que Lucas viu a reportagem do Fantástico com o documentário Ilegal e a Cannabis medicinal.
Lá mesmo a mãe fez sua página no Facebook e buscou mães que a pudessem ajudar. Lucas conta que correu para consultar o neurologista para pedir tratamento com Cannabis. Ele disse que seria loucura. Mas ela insistiu: já sabia até o produto certo, a dosagem pequena para começar, como fazer o processo na Anvisa, onde comprar. Tudo o que o médico precisava fazer era receitar.
Naquele ponto, Manu já tinha usado de tudo, até remédios importados. A cada ano as ressonâncias vinham com mais calcificações e mais tumores benignos, que eles não retiravam devido ao risco de voltarem mais agressivos. Mas o médico não quis receitar. Teve medo de perder a licença, argumentou que não tinha experiência. Ele ainda disse que ela podia tentar, mas que ele não queria ter envolvimento.
A única solução
Lucas decidiu arriscar. Sem receita, comprou de outra mãe uma pasta de Cannabis com CBD e baixo THC. Ela conta que, quando o remédio chegou pelo correio, ela ainda ficou dois meses com medo de dar a Manu. Temia dar à filha a droga que ela aprendeu que tinha que manter distância, temia ser processada: “o medo era grande”, conta.
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Finalmente, num dia em que Manu convulsionou mais do que de hábito, Lucas tomou a decisão: “É hoje”. Ela seguiu a orientação que recebeu no grupo de pais de pacientes e colocou a pasta de Cannabis na sonda de Manu. O tamanho era menor que um grão de arroz. No dia seguinte, Lucas levou um susto: a menina que dormia o dia todo estava de olhos arregalados. “Não acreditei, chamei todo mundo para ver”, conta.
Com o passar dos dias, Manu mexeu o corpo depois de um ano sem movimentos voluntários. As convulsões acabaram. Os olhos abertos eram as “bolitas” que encantavam a mãe. Lucas aumentou a dose para duas vezes diárias, colecionando pequenas vitórias. Manu chorava, mas depois do choro, ria. A mãe não se preocupou, era um sinal de vida, que os amigos explicavam ser reação normal do corpo acordando.
Médico eufórico
Lucas voltou ao neurologista que se recusara a prescrever. O médico ficou eufórico com a melhora de Manu. Pediu para ver os exames, fez cópias, quis entender todo o processo. Para o próximo tubo de Cannabis, acompanhou o processo na Anvisa, cuja autorização levou apenas 15 dias para chegar, e forneceu a receita.
Em janeiro de 2015, eles já partiram para judicializar o tratamento de Manu, com vídeos, laudos, exames e os relatos de melhora. Nesse processo, ela conheceu mais crianças que precisavam do medicamento, e entendeu como a Cannabis é importante para tanta gente.
Durante o ano, eles só viam melhoras: sem nenhuma convulsão, Manu pôde voltar a fazer fisioterapia e não teve mais infecções respiratórias graves.
Desde 2014, Manu estava na fila de espera do SUS para retirar alguns dos tumores na cabeça. Neste meio tempo, o neurologista tentou tirar a Cannabis do tratamento da menina, mas Lucas recusou. Dos cinco anticonvulsivantes que Manu tomava, tinham ficado apenas três, e ela preferiu trocar de médico a tirar a Cannabis.
Em 2016, encontrou Alessandra Pereira, a neurologista que permanece com Manu até hoje. Ela tinha conhecimento da doença e era prescritora de Cannabis. Pereira mexeu novamente nos remédios. Em 2017, as convulsões voltaram. Experiente, a médica ajustou os remédios novamente, tentou usar um isolado de CBD. Não funcionou, elas voltaram ao composto de THC e CBD, mas de outra marca. Quando Manu voltou a piorar, sua vez chegou na fila da cirurgia do SUS. Lucas conta que a cirurgia foi um sucesso, e ela e a neurologista caminham juntas aprendendo mais sobre a doença a cada dia.
Interação entre família e médico
Hoje, Manu está com onze anos, contrariando expectativa de vida e de desenvolvimento dos médicos pelos quais passou. Já pega coisas, reclama, sorri, entende as pessoas, mostra quando gosta – ou não gosta – de alguém. Ela voltou a se alimentar, mas o trato intestinal ainda exige cuidados. Com nutricionista, endocrinologista, fonoaudiólogo, pediatra, ortopedista, Manu conta com uma junta médica pronta para os desafios que o desenvolvimento dela sempre vai trazer.
Lucas fez pequenos ajustes com a ajuda de Pereira. “É incrível como é importante que ajudemos o médico”, diz, lembrando das diversas vezes que precisa chamar a médica para reportar sinais de algum desajuste. Experiente, Lucas já sabe quando é algo passageiro e quando precisa mesmo avisar Pereira.
Como Manu precisa tomar imunossupressores para conter o crescimento dos tumores, a Cannabis é sempre a base para que a mãe e a médica comandem os ajustes da “quimioterapia oral”, como define a mãe. Lucas não se sente sozinha nem em casa: a mãe, a irmã e o marido dão todo o apoio para cuidar e observar Manu.
Lucas nem se importa tanto com os parentes e amigos que perdeu para o preconceito. A família deixou de ser convidada para festas de familiares e até os padrinhos de Manu se distanciaram. Lucas se alegra, sim, com as novas amizades que fez em sua caminhada. Foram mães e pais que lutaram com ela pela saúde de seus filhos. Lucas passa a mensagem que repercute entre seus novos amigos: “a interação entre família e médico é onde o tratamento se inicia. Sem isso, não haverá tratamento certo”.