Já pensou em construir uma casa apenas com a fibra da Cannabis? O cânhamo na construção civil já é realidade em vários países da Europa e da África, mas no Brasil esse tipo de arquitetura sustentável ainda é um sonho distante.
A construção civil é um dos setores que mais impactam negativamente no meio ambiente, seja de forma direta ou indireta. Números do Ministério das Cidades estimam que de 51% a 70% dos resíduos sólidos urbanos são descartados ao longo da cadeia produtiva da construção civil e demolição. Para reverter os efeitos em cascata desse tipo de poluição, a engenharia e arquitetura estão em busca de insumos cada vez mais sustentáveis.
O uso de materiais cultiváveis na construção civil é tendência na arquitetura sustentável e ganha adeptos em escala global, e o destaque é a fibra da Cannabis.
“Múltiplas obras já têm sido feitas com o cânhamo. A sua eficácia e praticidade já foram comprovadas. É difícil acreditar nas múltiplas vantagens desse material. Esse é um desafio que temos pela frente, mas é tão incrível que parece um milagre da natureza”, descreve o arquiteto Francisco Fonseca, proprietário da Oficina Pêdrez Arquitetura em Porto (Portugal), especializada nesse tipo de construção.
Cânhamo – material ecologicamente correto
A utilização de materiais cultiváveis na construção civil tem por base o emprego de fibras vegetais ao longo do processo.
“Quando digo fibras vegetais falo, por exemplo, da madeira, do vime e do cânhamo. O cânhamo é altamente sustentável porque, logo de partida, estamos a falar de uma pegada de carbono mais positiva, de uma construção mais leve, de uma construção reciclável e de um sistema construtivo com características sustentáveis.
Quando se constrói, não se constrói com um material único, nós trabalhamos com famílias de materiais, e, quando usamos o cânhamo, estamos normalmente a apontar para uma família que é, toda ela, sustentável e é aí que está o principal benefício desse tipo de arquitetura sustentável”, descreve Francisco.
De acordo com o pesquisador, o hempcrete é um material completo porque agrega sustentabilidade à eficiência arquitetônica.
“Esse sistema nos permite fazer paredes de 25 cm completamente seguras e que cumprem os regulamentos de incêndios. Até certa medida, conseguimos cumprir com as exigências de um material de fachada e exigências estéticas de acabamento no interior das paredes.
Na parte de sustentabilidade, é importante falar sobre o ciclo de vida do material. O cânhamo fixa carbono no solo e absorve mais CO2 do que qualquer outra planta. O cultivo ainda nos traz outros benefícios agrícolas como empregabilidade e capacidade de reestruturar solos esgotados e desertificados, por assim dizer”, explica Francisco Fonseca.
O arquiteto ensina que basta misturar a fibra do cânhamo, água, cal hidratada e minerais para produzir uma espécie de tijolo ou até mesmo cimento que pode ser empregado em diversos estágios da construção civil.
“O cânhamo é o ponto mais alto que conheci nesse universo de construção com materiais cultiváveis. Com essa fibra é possível fabricar painéis e móveis pré-moldados. Os tijolos de cânhamo são leves e têm custo baixo. Esse material também é superior em termos de qualidade acústica e térmica. Ainda podemos desenvolver com inúmeros elementos de pigmentações. O índigo, é um deles. Associado ao carvão ativado do cânhamo, o tijolo produzido com as fibras ainda é um purificador de ambiente excelente”, destaca o arquiteto.
Manifesto em defesa do cânhamo
Duarte Capa, arquiteto e manager da Hemp EcoSystems Portugal, é outro entusiasta em defesa do cânhamo na substituição de outros materiais tradicionais empregados na construção civil.
“Tenho muita estrada construindo com cânhamo. Em Portugal, conseguimos construir com materiais completamente naturais de maneira sistematizada. Para construir basta ter 100% fibra hemp, água, cal hidratada e o nosso aditivo rico em minerais que faz com que a mistura seque rápido. Esse material pode ser usado na parede, no acabamento da obra e até na estrutura. Hoje é possível construir uma casa completamente feita de cânhamo. É um material super sustentável e ecologicamente correto”, afirma Duarte.
O arquiteto conta que recentemente foi lançado em Portugal um manifesto em prol do uso industrial do cânhamo na construção civil. “A ideia é passar para a sociedade a mensagem de que o cânhamo é um material limpo, resistente, seguro, carbono positivo, que mantém a temperatura do ambiente sempre equilibrada. O preconceito e a falta de informação ainda é enorme. Esse material é fantástico! As pessoas precisam conhecer essa arquitetura limpa e caminhar para um desenvolvimento que não agrida o planeta”, prospecta o arquiteto.
Mas há desvantagens?
A principal desvantagem no emprego do cânhamo na construção de casas e apartamentos é a falta de regulamentação do cultivo em muitos países, como o Brasil, por exemplo. Nesse caso, o principal empecilho seria o trâmite e custo de importação da matéria-prima.
“O material ainda não está devidamente implantado, portanto, não está industrializado da mesma forma que os materiais tradicionais. Isso traz implicações negativas, porque falta conhecimento dos projetistas, falta oferta de mão-de-obra, fornecedores e aplicadores do material. Isso tudo inflaciona os preços, dificulta os calendários, e encarece a obra. O cânhamo ainda sofre com o valor praticado no mercado, por estar numa fase ainda imatura de desenvolvimento, pelo menos no que diz respeito à sua disseminação no mercado”, lamenta Fonseca.
O professor de arquitetura e urbanismo da Universidade de Brasília (UnB), Frederico Flósculo Pinheiro Barreto, afirma que faltam políticas públicas para impulsionar um desenvolvimento urbanístico mais sustentável.
“O Brasil, um país que tem nome de madeira, não usa madeira na construção civil. Madeira é o material mais renovável, mais resistente, mais cheio de beleza e nós agimos com total falta de desprezo e interesse. Essa questão das fibras, do cânhamo e da madeira, elas são centrais para o futuro do Brasil, e é uma forma de dar uma lição ao mundo em termos de sustentabilidade”, avalia o docente.
Para o professor da UnB, o Brasil é o país que tem a maior afinidade a processos naturais para implementar uma arquitetura ecológica, o que falta segundo ele, são diretrizes e políticas que foquem nesse tipo de desenvolvimento.
“Essa questão é fundamental e envolve uma abordagem filosófica de sustentabilidade. O cânhamo, por exemplo, é um excelente começo. É uma fibra que possui uma enorme gama de aplicações. Além de ter esse sabor polêmico, esse sabor que coloca o cânhamo na saúde e nas vestimentas. O Brasil tem que sair da trilha da imitação pura e simples de tecnologias que não são nacionais e que não são avaliadas pelo governo, francamente, não adaptadas ao nosso clima, ao nosso solo e à nossa natureza.
O governo não tem interesse em soluções inteligentes de boas práticas. Premia boas práticas, mas coloca na prateira, congela e não as difunde através de políticas públicas e normas técnicas. Sonho que algum dia a arquitetura, o urbanismo, a indústria e a construção civil mudem, de forma inteligente, para a real sustentabilidade que não passa, até o momento, de uma bela palavra”, conclui Barreto.