O canabidiol já é um aliado para os atletas, sobretudo os de esporte de alto impacto. Em 2021, a Agência Mundial Antidoping reduzirá a pena para uso social de Cannabis. Competidores, no entanto, buscam também a liberação do THC e demais canabinoides – dentro do período de competição.
O canabidiol (CBD), umas das substâncias extraídas da Cannabis sativa, têm se mostrado um eficiente analgésico no tratamento de contusões em atletas de esportes de alto impacto, além de um substituto saudável e não viciante aos opioides. Em 2018, ele foi excluído da Lista de Substâncias Proibidas da WADA (a Agência Mundial Antidoping). Já o THC, embora siga vetado, teve a tolerância aumentada em 10 vezes. E em janeiro 2021, o uso de maconha fora do período de competição não será mais punido pela agência.
Nos Estados Unidos, ligas esportivas estão fazendo as pazes com a planta. Enquanto isso, no Brasil, atletas que querem aproveitar seus benefícios terapêuticos enfrentam falta de informação, além de problemas com a imagem e até mesmo com a polícia.
Em fevereiro de 2020, o UFC, maior organização de artes marciais mistas do mundo, anunciou uma parceria global com uma gigante canadense da Cannabis para desenvolver pesquisas e medicamentos derivados da planta na recuperação de atletas. A liga de futebol americano (NFL) também decidiu investir em pesquisas com o canabidiol depois de ver muitos de seus atletas se aposentarem antes dos 30 por conta das insuportáveis lesões causadas em campo.
Mas por lá, o debate vive outro momento: 33 estados mais o Distrito Federal já regulamentaram a maconha medicinal, e a nível federal o CBD é legal desde 2018, considerado um suplemento alimentar. E a campanha continua: 150 atletas e ex-atletas americanos, que compõem a organização Athletes for Care, escreveram em 2019 uma carta aberta à Wada pedindo a retirada da Cannabis da lista de substâncias banidas. Mike Tyson e Frank Shamrock são alguns dos esportistas que assinam o documento.
No Brasil, o que acontece é um paradoxo, pois a Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD) segue a lista da Wada; porém o CBD é permitido aqui apenas para fins medicinais, mediante receita médica, não tendo uso previsto aos atletas. Já produtos com THC superior a 0,2% só poderão ser prescritos a pacientes terminais ou esgotadas as alternativas terapêuticas.
Esportistas flagrados no doping por maconha tiveram sua reputação questionada, como o Giba do vôlei e o skatista Pedro Barros. Já o lutador de jiu-jitsu Relson Gracie foi preso por tráfico após ser flagrado numa rodovia do RJ transportando frascos de óleos e pomadas com CBD. Então como proceder? O ideal seria o atleta conseguir uma receita médica e adquirir um produto legal e seguro. Contudo, não é o que acontece na prática.
“Ou trazem clandestino (de outro país), ou compram pela internet. O problema é que a maioria desses produtos (da web) são fracos e sem qualquer segurança. Já é difícil a pessoa com doença grave conseguir um remédio, imagina o atleta!”, relata o professor de educação física e atleta faixa preta de jiu-jitsu Raul Thame.
Entre os principais títulos do lutador, está um vice campenato de jiu-jitsu sem kimono no Naga Championship de Atlanta (EUA). Thame possui uma relação muito próxima com a Cannabis: a mãe dele tem câncer no cérebro é uma das pacientes brasileiras autorizadas pela Justiça a cultivar Cannabis para fins medicinais. Hoje, Thame é conselheiro da Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis e luta pela legalização da planta no esporte – não só o CBD: “que suposta vantagem a maconha traz? Ela ajuda, sim, na recuperação muscular, mas não aumenta o desempenho nem a força, como um esteróide, por exemplo”.
É a posição que sustenta o Dr. Remo Rotella Jr, psiquiatra especialista em dor. O médico destaca que o canabidiol possui um elemento importantíssimo que é a propriedade cicatrizante. Mas que, na verdade, é a atuação de todos os canabinoides, em ação conjunta, que garante um efeito mais amplo no combate às dores musculares.
“Juntos, eles têm uma excelente função anti-inflamatória. Um cérebro inflamado, quando você dá essas gotinhas, ele vai se desinflamando, e a pessoa volta a ter suas funções cognitivas. E quando a gente vai para o tecido muscular, depois de cada exercício, sempre tem uma ruptura de fibras. Essa ruptura é o que causa inflamação e gera dor. O extrato da Cannabis desinflama esse local, favorecendo a desinflamação. Isso faz com que você tenha uma analgesia e uma recuperação tecidual”.
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Uma possibilidade para uso de THC sem risco de doping
Apesar de proibidos pela Wada, existe uma prerrogativa que pode liberar o uso de demais canabinoides, incluindo aí o THC, aos atletas brasileiros, sem risco de punição. Tatiana Mesquita Nunes, presidente do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem da ABCD, orienta:
“O atleta, não só em relação a essa substância, mas qualquer outra que conste na lista de substância proibidas da Wada, deve pedir uma Autorização de Uso Terapêutico, uma AUT. Essa autorização depende de uma necessidade médica, vai ser avaliada por uma comissão formada por médicos no âmbito da ABCD, e essa comissão irá avaliar, não só se há de fato aquela condição médica que faz necessário o uso da substância, como a proporcionalidade do uso da substância e a possibilidade de um tratamento alternativo que não seja contra as regras antidopagem”.
“Se for o caso”, orienta Tatiana, “havendo uma resposta positiva da comissão, o atleta recebe a AUT e, caso ele caia no controle de dopagem por conta dessa substância, ele vai conseguir demonstrar que estava usando de acordo com os termos da AUT, doses e prazos previstos, afastando qualquer punição”.
Caso não tenha em mãos esse documento, ainda existem outras possibilidades. A Secretaria Nacional do Esporte explica que, nos casos específicos em que o atleta conseguir comprovar que o consumo do THC ocorreu fora de competição e “que tal consumo não se correlacionou com a melhora no desempenho esportivo, ele poderá ter a pena reduzida de dois anos para três meses de suspensão (inelegibilidade), podendo ser abrandada para um mês se o atleta aderir ao tratamento terapêutico aprovado pela organização antidopagem nacional”.
A agência antidoping dos EUA lembra, porém que muito difícil obter um extrato ou óleo puro de CBD da Cannabis. Qualquer pessoa que compre um óleo, extrato ou outro produto de CBD deve estar ciente de que pode ser uma mistura de CBD e outros canabinóides. E que as demais substâncias podem permanecer no corpo muito tempo após utilizadas.
Cabe destacar que ainda não existem pesquisas conclusivas sobre o impacto dos canabinóides na recuperação pós-treino em seres humanos. Um estudo publicado no Clinical Journal of Sport Medicine em 2018 examinou a maconha e seus efeitos no desempenho de atletas entre 18 e 65 anos, incluindo freqüência cardíaca, pressão arterial e duração do exercício. A conclusão foi de que os efeitos da planta na performance atlética permanecem incertos.
Uma opção melhor que opioides
O médico Remo Rotella, no entanto, defende o uso da Cannabis no esporte como primeira opção com relação aos derivados químicos do ópio, como o Fentanil e Oxicodona.
“Os opioides têm efeitos colaterais terríveis, você fica mole, com visão dupla, prisão de ventre, enjoo. Já o CBD não dá nada disso. Se ele der efeito colateral é sonolência. Eu digo por mim, eu fiz uma cirurgia de ombro e tomei um opioide pesado chamado Oxicontin. Você fica doidão. Aí eu queria trabalhar e não conseguia. Então eu tomei o CBD e foi de boa; com muita pouca dor. Quer dizer: vale a pena. A verdade é que o opioide dá muito mais barato que a Cannabis, você perde o filtro”.
A Wada, contudo, pensa diferente. No artigo científico “Cannabis no esporte: uma perspectiva antidoping”, a agência sustenta que o THC e a Cannabis dão, sim, vantagem, pois aumentam as respostas impulsivas dos atletas, “levando a mais comportamentos de risco, mas sem afetar a tomada de decisões”. A agência entende que a planta reduz a ansiedade, oferecendo aos atletas “melhor desempenho sob pressão e um alívio no estresse antes e durante a competição”. Para o órgão, “atletas que passaram por eventos traumáticos em sua carreira esportiva poderiam se beneficiar” da planta.
Um estudo de 1978 publicado no British Journal of Clinical Pharmacology sobre o efeito broncodilatador do THC defende que a substância facilita a respiração durante os treinos e jogos. Essa pesquisa é usada pela Wada como referência para indicar vantagem competitiva, embora tenha sido realizada com pacientes asmáticos e não atletas.
A relação de atrito entre a agência antidoping e a maconha começou após as Olimpíadas de Inverno de 1998, no Japão, quando o canadense Ross Rebagliati conquistou ouro no snowboard, medalha cassada após ele ser reprovado no doping pela droga. O atleta sustentou, contudo, que fez uso passivo e que, mesmo assim, a planta não estava no índice de substâncias proibidas à época. Ele teve a medalha recuperada na Corte Arbitral do Esporte.
No ano seguinte, porém, a droga entrou para a temida lista. Quatro anos depois, a proibição dos canabinoides foi ampliada a todos os esportes. Porém, o limite para THC na urina aumentou consideravelmente, passando de 15 nanogramas por ml para 150. Essa maior tolerância foi para evitar que atletas sejam flagrados por uso passivo ou por uso pessoal fora do período de competições. A ideia aqui é simples: o que o esportista faz fora do seu período de competição não compete à Wada.
“Desde que comecei a treinar jiu-jitsu, em 1999, sempre foi muito comum o uso de Cannabis, fumada mesmo, por atletas. Se sabia que ajudava na recuperação, diminua as dores. Mais recente, conforme foi se legalizando o uso, surgiram novas opções, como vaporizado in natura, que não tem fumaça e portanto não é nociva, até os comestíveis e óleo. Eu posso comprovar pessoalmente a eficácia do óleo para diversas dores no jiu-jitsu”, relata o lutador Raul Thame.
Pena branda para uso social
A partir de janeiro de 2021, atletas pegos no antidoping com substâncias proibidas que não melhorem diretamente seus desempenhos receberão punições mais brandas. É o que prevê o novo código mundial antidoping. A mudança beneficiará competidores que testarem positivo em drogas sociais, como maconha e cocaína, por exemplo, desde que se prove que ele não tenha sido beneficiado esportivamente.
Segundo as regras atuais da Wada, os atletas, nesses casos, podem ser punidos com até quatro anos de suspensão do esporte. Com a alteração, as sanções poderão ser reduzidas até a menos de um mês.