Para quem prescreve, usa ou acompanha pacientes que fazem uso de canabinoides com finalidade terapêutica o start low and go slow – comece com baixas doses e suba lentamente – é muito conhecido e quase um mantra. Na verdade, esse é o melhor protocolo atual para tratamento da imensa maioria de enfermidades que podem ser tratadas com derivados da Cannabis. Em virtude do potencial terapêutico da Cannabis, seja através de publicações de estudos usando animais, através de relatos anedóticos ou publicações com humanos como case reports e estudos observacionais, e da falta de estudos clínicos amplos e controlados, o start low and go slow é seguramente a maneira mais prudente e correta de se utilizar estes produtos no momento.
O que quero trazer para discussão neste texto não é uma oposição a este protocolo, mas indicar ou sugerir que este protocolo deverá ser superado para que a medicina canabinoide avance, se desenvolva e ganhe mais robustez científica e confiabilidade de médicos e pacientes.
A medicina canabinoide é uma medicina personalizada e devemos encontrar a dose ideal para cada paciente!. Sim, todos dizem isso e também concordo. Porém, quero fazer alguns contrapontos. Creio que à medida que iremos avançando em experiência de uso clínico e com mais estudos, chegaremos a doses que poderão ser úteis para grande parte dos pacientes. Ah, mas o sistema canabinoide de cada paciente tem um tônus diferente!. Sim, mas centenas de outros medicamentos também atuam em outros sistemas endógenos que também diferem em tônus entre os pacientes, como o sistema colinérgico, serotoninérgico, adrenérgico e tantos outros. Antihipertensivos que atuam sobre o sistema noradrenérgicos e antidepressivos que atuam sobre o serotoninérgicos também precisam ser ajustados no que se refere a dose, para ficarmos apenas em dois exemplos. O sistema endocanabinoide é complexo e super amplo, talvez até mais que todos os já conhecidos há mais tempo, mas ainda assim é um sistema que opera bioquimicamente e depende de reações químicas entre canabinoides e seus receptores e outros alvos para ser modulado. Não é psicoterapia, é quimica, e química depende da dose, embora sim, podemos ter os efeitos em curva U invertida na maioria dos casos e uma ampla variedade de doses efetivas, mas ainda assim, canabinoides são substâncias químicas, e química é uma ciência exata que influencia de maneira não exata nossa fisiologia.
Um exemplo muito interessante ocorreu com uma psiquiatra de nosso grupo de pesquisa. Ela estava tratando duas pacientes idosas com depressão, ambas com personalidades e perfil de depressão parecidos. O protocolo seguiu o start low and go slow com extratos ricos em CBD. Iniciando com 50 mg por dia lentamente a médica foi subindo as doses enquanto não se encontravam efeitos clínicos benéficos. Ao final de 4 meses nenhuma paciente ainda reportava nenhum ganho clínico e estavam na dose de 150 mg de CBD/dia. Neste momento, uma paciente abandonou o tratamento pois achou que o CBD “não era para ela”. A outra paciente seguiu e próximo ao sétimo mês na dose de 250 mg CBD/dia ela começou a se sentir bem melhor e creditou-se este efeito ao CBD na dose diária de 250 mg. Depois, disso, outros pacientes com depressão atendidos pela mesma médica começaram a ser tratados já inicialmente com a dose de 250 mg. Isso resultou em melhores e mais rápidos resultados com esta terapia. Vejam, que este “estudo” com duas pacientes durante 7 meses com doses baixas e avanço lento foi que proporcionou a ela hoje ter o seu próprio protocolo, com doses que partem de alguma base e são mais específicas para determinada população e doença.
Outro ponto que podemos abordar, é sobre a segurança destes fármacos. Sabemos que os canabinoides são imensamente seguros. O CBD até centenas de mg ou próxima de 1 g para adultos. O THC é bastante seguro até 10 ou 15 mg por administração. Diferentemente, com outras drogas que estão há décadas no mercado com potencial danoso muito maior não costumamos ter muitas vezes o cuidado de start low and go slow. Obviamente, mesmo sabendo que são super seguros e sem risco de morte ou intoxicação grave, a precaução é importante, mas também deverá ser minimizada quando tivermos mais resultados clínicos de médio e longo prazo, outra vez, precisamos mais estudos.
Como já deixei claro acima, a falta de estudos clínicos é a principal razão para o abrangente espaço para o start low and go slow. Estudos com boa base metodológica poderão responder de forma assertiva se para uma determinada doença: a) canabinoides são seguros; b) canabinoides são efetivos; e c) qual dose e proporção de canabinoides deveriam ser utilizados. Ora, para qualquer medicamento encontrado na farmácia, temos indicação (doença alvo) e dose (s) sugeridas, ou seja, um protocolo muito definido. Neste momento, apenas para epilepsias, tratamento paliativo para câncer e alguns tipos de dores temos isso razoavelmente bem definido para canabinoides. No caso do Brasil especificamente, a RDC 327 de 2019 não exige ensaio clínico ou indicação para produtos canabinoides, desta forma, estamos utilizando estes produtos de forma compassiva praticamente sem protocolos de formulação e posologia. Após 5 anos de registro sob a 327, estes produtos necessitarão apresentar segurança, eficácia e posologia (formulação e dose) para permanecer no mercado de forma definitiva, e aí sim, estaremos avançando nesta direção, atingindo seguramente uma porcentagem muito maior de efetividade em nossos tratamentos, além de redução de prazos e custos de tratamento.
Por último, a favor do protocolo start low and go slow, precisamos mencionar a diversidade dos perfis de cada paciente mesmo dentro do mesmo diagnóstico. Ainda mais em doenças do transtorno do espectro autista (TEA), Parkinson ou dor crônica, por exemplo. Claro, que sempre teremos muitas particularidades de cada paciente e que em pacientes com TEA, por exemplo, um médico pode ter centenas de pacientes e cada um poderá se encaixar melhor numa dose/formulação. Porém, creio que precisamos avançar muito em pesquisas para termos protocolos mais assertivos e específicos para diferentes doenças e pacientes, para aumentarmos a qualidade dos tratamentos à base de canabinoides aos nossos pacientes.
Espero que em 5 ou 10 anos já tenhamos evoluído muito neste quesito e tenhamos dezenas de protocolos mais direcionados, para que a medicina canabinoide possa crescer, reproduzir resultados e gerar confiabilidade para mais profissionais e pacientes. Assim, creio que evitaremos que outros pacientes que possam ser tratados com Cannabis abandonem o tratamento devido a uma aparente falta de eficácia, como no caso da paciente com depressão da minha amiga psiquiatra.