Depois de meses de silêncio, o Conselho Federal de Medicina responde questionamentos sobre a suspensão da Resolução CFM nº 2.324/2022, que restringe o uso medicinal da Cannabis no meio médico
Desde a suspensão temporária da Resolução nº 2.324/2022, que lista uma série de restrições à prescrição de produtos à base de Cannabis por médicos brasileiros, que o CFM evita falar sobre o tema.
O texto aprovado pela Sessão Plenária do CFM, no dia 11 de outubro de 2022, limitou ainda mais a prescrição de Canabidiol (CBD) – uma das moléculas presentes na Cannabis e até proibiu os profissionais de Medicina a ministrar palestras e cursos sobre o assunto.
Restringiu à três patologias
Com a nova Resolução os médicos poderiam prescrever fitocanabinoides (moléculas medicinais da Cannabis) apenas para três condições: Síndrome de Dravet, Lennox-Gastaut e no Complexo de Esclerose Tuberosa.
Na ocasião, a limitação gerou revolta entre pacientes e entidades que se mobilizaram em protesto na sede do Conselho Federal de Medicina, em Brasília, e nos Conselhos Regionais nos estados cobrando a revogação da norma.
Pressão social surtiu efeito
A pressão social e a repercussão na grande mídia surtiram efeito, e dias depois o CFM suspendeu a validade da Resolução CFM nº 2.324/2022, temporariamente.
Desde então, o Conselho de Classe dos Médicos segue sem regulação quando o assunto é o uso medicinal da Cannabis.
Resposta veio 6 meses depois
No ano passado, nós entramos em contato com o CFM para saber se havia novidades e atualizações sobre a Cannabis Medicinal. Quase seis meses depois, a resposta foi a seguinte:
“O CFM segue debatendo o tema internamente e também contribuindo para a discussão com a sociedade em ambientes externos, como na audiência pública realizada pela Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, no dia 20 de abril de 2023. Atualmente, a Resolução CFM nº 2.324/2022, segue suspensa”, diz a nota.
Alguma Resolução está em vigor?
Entre os questionamentos, também perguntamos se na suspensão da Resolução CFM nº 2.324/2022, voltaria a vigorar a Resolução CFM nº 2.113/2014, uma outra norma que também limita a prescrição de Canabidiol (CBD) apenas em casos de epilepsia refratária a demais medicações.
“A Resolução CFM nº 2.113/2014, que foi uma das primeiras no mundo, concedidas por uma entidade médica, a reconhecer as propriedades medicinais da Cannabis e autorizar o seu uso, perdeu a eficácia”, diz a Assessoria de Imprensa do órgão.
Muitas críticas
Assim como a resolução suspensa, a anterior também foi altamente criticada por especialistas e médicos por tentar limitar a prescrição da Cannabis apenas em último caso, exclusivamente, nas patologias que acarretam em epilepsia.
Na ocasião, a norma ainda restringiu a prescrição de Canabidiol (CBD) a três especialidades: psiquiatria, neurologia e neurocirurgia.
Desconsidera autonomia médica
Entre os críticos, ao editar uma norma tão limitante, o CFM desconsiderou a chamada autonomia médica que garante a liberdade irrestrita ao profissional da saúde, visando sempre o benefício e a segurança do paciente.
Prerrogativa prevista no Código de Ética da Medicina que assegura a liberdade do profissional, junto ao paciente e à família de escolher o tratamento mais adequado para o caso clínico.
Na contramão do interesse público
Na época, o neurologista Rubens Wajnsztejn, então presidente da Associação Pan-americana de Medicina Canabinoide (APMC) disse que as Resoluções do CFM estavam na contramão do interesse público.
“Como professor e pesquisador da Medicina Canabinoide, vemos inúmeros estudos científicos internacionais comprovando o uso medicinal da Cannabis para diversas patologias”, ressaltou Wajnsztejn.
Consulta pública
Diante das críticas, o CFM abriu uma consulta pública para receber contribuições. De acordo com a Assessoria de Imprensa do órgão, houve um total de 7.852 contribuições.
A maior parte das participações veio do público feminino (59,8%) e do estado de São Paulo que registrou a maioria das proposições 32,8%.
Limbo
O processo de consulta pública foi encerrado em dezembro de 2022 e até hoje não foi divulgado o resultado dessa coleta de informações. Sendo assim, médicos continuam no ‘limbo’ quando o assunto é a regulamentação da prescrição de Cannabis no Brasil.
Para editar a Resolução, o CFM argumentou, na ocasião, que se baseia no artigo 7º da Lei nº12.842, de 10 de julho de 2013, que confere ao Conselho Federal de Medicina a competência para editar normas para definir o caráter experimental de procedimentos em Medicina no Brasil, autorizando ou vedando sua prática pelos médicos.
Remédio à base de Cannabis já estão nas farmácias
Só que medicamentos à base de Cannabis já estão disponíveis nas drogarias desde 2019, quando a própria Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) passou a permitir o comércio desses produtos nas prateleiras das farmácias de todo país.
Atualmente, 32 formulações à base de canabinoides já estão disponíveis nas drogarias por meio da RDC 327/2019 e sendo indicadas pelos médicos.
A Cannabis já está no SUS
Paralelamente, medicamentos à base de Cannabis também já estão disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS) para a população. Questionamos ao CFM de que forma o Conselho avalia o fornecimento desse tipo de remédio via SUS, agora com a lei estadual de São Paulo.
A resposta foi curta: “O CFM está ciente sobre a lei estadual de São Paulo e debate o tema internamente”, concluiu.
Além de São Paulo, quase metade dos estados brasileiros aprovaram leis semelhantes, e estão em processo regulamentação ou a legislação já estão em vigor.
O que dizem os especialistas?
Para o 1º secretário da AMBCANN (Associação Médica Brasileira de Endocanabinologia), o professor do curso de Medicina da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Wilson Lessa, esse silêncio do Conselho de Classe incomoda.
“Negar hoje em dia os efeitos medicinais dos canabinoides é, no mínimo, sinal de imperícia (desconhecimento), imprudência (propagar desinformação) e negligência (descaso) com os pacientes”, afirma o psiquiatra (CRM/PB 14914 e RQE-7408).
Mevatyl com THC aprovado desde 2017
Para o estudioso, outra consideração importante a ser feita é como o CFM ignora o Mevatyl, um medicamento aprovado desde 2017 para espasticidade na esclerose múltipla e que contém THC (Tetrahidrocanabinol) em sua formulação.
“Não está contemplada a prescrição desse medicamento pelo CFM. É como se ele não existisse. Porque o CFM quer esconder o fato de que o Mevatyl contém THC e que o THC tem um efeito medicinal comprovado”, denuncia o 1º secretário da AMBCANN.
Fator limitante: desconhecer o uso medicinal da Cannabis
Adicionalmente, o vice-presidente da Associação Pan-Americana de Medicina Canabinoide (APMC), o Dr. José Wilson Nunes Vieira de Andrade, diz que o fator limitante dentro do CFM é que o colegiado não conhece o uso medicinal da Cannabis e parece não querer estudar o assunto.
“Como você vai opinar sobre um assunto que você desconhece? O desconhecimento, normalmente, é a raiz do preconceito, que eu enxergo hoje na direção da classe médica, em relação aos canabinoides. Tanto que eles falam só sobre o Canabidiol (CBD), ele não sabem que têm mais de 170 fitocanabinoides diferentes, cada um com a sua função”, argumenta o médico.
Para o estudioso da planta, quem deveria participar de uma discussão tão importante como a possível regulação da prescrição entre a classe médica são os pesquisadores e quem se aprofunda no assunto. “Aqui no Brasil, felizmente, temos muitas pessoas sérias que podem contribuir imensamente para esse setor”, conclui Dr. José Wilson.
Relembre
Em entrevista ao portal Cannabis & Saúde no primeiro semestre de 2023, o vice-presidente do CFM, Dr. Emmanuel Fortes Silveira Cavalcanti, defendeu a autonomia médica e disse que o conselho já reconhece – oficialmente – a prescrição do Canabidiol (CBD) para tratar epilepsias de difícil controle.
“Eu fiz a proposição ao Conselho Federal de Medicina porque vi matérias no Youtube mostrando que as crianças que utilizaram Canabidiol tinham uma melhora expressiva. E, naturalmente, como médico e pai, me sensibilizei. E propus ao CFM um amplo estudo. A resolução foi amplamente debatida e estudada, fomos a todas as evidências que tínhamos naquela época e aprovamos o uso compassivo em 2014”, disse na ocasião da entrevista.
Entretanto, por agora, não há previsão de quando serão atualizadas das Resoluções sobre Cannabis no CFM.