Veja um pouco do que rolou de melhor no segundo dia do Congresso Brasileiro de Cannabis Medicinal, parte da Medical Cannabis Fair
O segundo dia do Congresso Brasileiro de Cannabis Medicinal, o primeiro com realização 100% presencial, seguiu focado nas propriedades medicinais dos fitocanabinoides – o terceiro e quarto dias serão dedicados aos negócios da Cannabis. Confira um resumo das sete palestras que concluíram as discussões sobre saúde no principal evento do setor no Brasil.
Clique aqui para um resumo do primeiro dia do Congresso Brasileiro de Cannabis Medicinal.
Os riscos de adição da Cannabis: o que você deve saber
O vício foi o tema da palestra de abertura proferida pelo psiquiatra Wilson Lessa, professor de pós-graduação em Cannabis Medicinal. O médico explicou que quando com o devido acompanhamento, os fitocanabinoides são seguros com baixíssimo risco de adição quando comparado com outros medicamentos, como benzodiazepínicos e opioides.
Quando se trata do uso adulto, a questão muda, mas pouco. A Cannabis fumada geralmente é selecionada para concentrar a maior quantidade de THC possível. Essa substância, responsável pelo efeito euforizante, quando em excesso, pode causar uma dissociação e, quando associada a desestruturação da vida pessoal, criar dependência.
Qualquer substância em excesso traz riscos e, quando vista em perspectiva, a Cannabis traz riscos comparáveis aos da cafeína, bem menos que a nicotina e o álcool, por exemplo. Apesar das amplas evidências históricas e científicas dos benefícios do uso da Cannabis, o temor em relação à planta se deve mais a questões ideológicas que científicas. Lessa usou os EUA como exemplo.
O Controlled Substance Act (CSA), que classifica o risco e benefício das substâncias controladas no país norte-americano, colocou a Cannabis na lista 1, junto às substâncias com alto potencial de abuso e sem uso médico, como a heroína. Quando criado, em 1970, congressistas e sociedades médicas pediram uma comissão específica sobre a “marijuana”.
O ex-promotor e governador da Pensilvânia foi convidado por Richard Nixon, então presidente, a presidir a comissão. O perfil conservador de Raymond Shafer não foi o suficiente para refutar as evidências apresentada pelos especialistas e o relatório elaborado ao longo de dois anos sugeriu a retirada da lista 1, além da descriminalização da posse e uso pessoal.
Nixon não gostou da conclusão e engavetou. Até hoje os canabinoides incluem a mesma Lista 1. Já o Dronabinol, canabidiol sintético, está na Lista 3, embora evidências científicas digam que ele traz mais riscos e menos benefícios que seu análogo natural.
“Querem discutir sobre o assunto, quem tem uma posição muito contrária, tragam argumentos. Tragam ciência, porque só preconceito hoje em dia não dá mais”, disse. “Nós vivemos o negócio que o Jorge Forbes, um psiquiatra que eu estimo muito, chama de Terra 2. Na Terra 2, o conhecimento não é mais vertical. O conhecimento é horizontal. As pessoas têm acesso.”
“Maquiavel tem uma frase que eu gosto muito: ‘o preconceito tem mais raízes que os princípios’”, concluiu. “Eu não vou gastar meu tempo tentando mudar o princípio de ninguém, porque isso vem de berço e, se a pessoa já é madura, não tem muito o que fazer. Preconceito já é mais possível.”
O uso de canabinoides na infância e adolescência
A neurologista infantil, Daniela Bezerra, é coordenadora do ambulatório de Epilepsia Infantil da Faculdade de Medicina do ABC, especializado em epilepsia de difícil controle, e tem a Cannabis medicinal como parte importante de seu arsenal.
Em sua palestra, trouxe dois casos clínicos de crianças com frequentes crises, cujo prognóstico, desenvolvimento, e qualidade de vida foram transformados pelo tratamento com fitocanabinoides.
“Falando especificamente da Cannabis nas crianças e nos adolescentes, existia uma preocupação muito grande. O que é importante? Nesse momento (da prescrição da Cannabis para as pacientes), os estudos ainda não eram muito robustos, mas indicava que sim, tinha segurança para prescrever, e pode decidir uma vida. Você pode ficar na dúvida sobre tentar uma coisa que, empiricamente, alguns acreditam ou não, mas quando vai prescrever para seu filho, um sobrinho, não é bem assim. Existe todo um contexto.”
Em seguida, apresentou estudos com evidências dos benefícios da Cannabis para crianças e adolescentes no tratamento de câncer hematológico, espasticidade, autismo, além da epilepsia, como forma de demonstrar com ciências que a Cannabis é segura e eficaz.
Mas fez ressalvas. “Na Sociedade Brasileira de Pediatria, existe uma preocupação muito grande com o uso do THC no desenvolvimento do cérebro. Os estudos hoje têm uma contradição muito grande, mas a gente tenta, dentro da legislação, na pediatria, usar o THC quando é fundamental.”
“Chega mais para mim epilepsia, porque eu tenho mais afinidade, mas eu já dou uma mirada em outras coisas. Ter um olhar integral que faz a diferença. Eu não posso olhar mais só para epilepsia. Eu tenho que olhar para tudo esse indivíduo como um todo, inclusive para casa dele, pra família dele, pra qualidade de vida de todo mundo.”
Psicodélicos: a próxima fronteira da medicina?
O congresso é sobre Cannabis, mas por pouco mais de meia hora o foco se expandiu para outras substâncias cujos benefícios medicinais são desperdiçados por conta da proibição. A farmacêutica Renata Monteiro, que havia falado sobre interações medicamentosas no primeiro dia do evento, retornou ao palco para compartilhar sua experiência pessoal com psicodélicos.
Em um contexto de uso recreativo, comeu cogumelos alucinógenos com os amigos. Sem qualquer informação de qualidade, exagerou na dose e os efeitos perduraram por dias, a ponto de achar que estava ficando louca. Passou a ler livros indicados por uma amiga, como a Teoria da Evolução do etnobotânico Terence Makena, e começou a “compreender que realmente existia algo muito mais além do que aquilo que a gente poderia ver ou tocar.”
Alguns anos depois, conheceu a Ayahuasca. “A primeira vez que realmente eu fiz (uso de psicodélicos) dentro de uma sessão. Um trabalho direcionado e isso mudou minha vida. Já recebi uma grande cura, uma grande transformação, e recebo até hoje. A gente vai evoluindo sempre. Me abriu então as portas da percepção e eu comecei a compreender muita coisa dentro daquele mergulho interior.”
Seu pai, psiquiatra, ficou preocupado e lhe passou livros sobre esquizofrenia. O resultado foi o oposto, quando percebeu que os medicamentos antipsicóticos modernos trabalham na modulação da serotonina, cuja molécula tem estrutura semelhante à de psicodélicos como DMT, psilocibina e LSD.
Entendeu que precisava estudar mais. De início, focou na Ayahuasca e seu princípio ativo, a Dimetiltriptamina, ou DMT, uma substância que também é produzida naturalmente pelo cérebro, na glândula pineal. Logo estendeu seus estudos para o ácido lisérgico (LSD), a metilendioximetanfetamina (MDMA) e a psilocibina, encontrada nos cogumelos, entre outros.
Após concluir uma especialização em ciências psicodélicas, fundou um instituto de pesquisa e ensino das terapias ancestrais. O nome, Jurema, emprestou uma árvore nativa do Brasil utilizada ritualísticamente por comunidades indígenas.
Ela alerta para a necessidade do devido preparo do participante, abordando suas condições físicas, psicológicas, patológicas, sociais e culturais, além de contexto físico adequado e da certeza da origem e dose da substância para garantir a segurança. Os benefícios terapêuticos das sessões compensam o cuidado.
A Cannabis e os psicodélicos são perturbadores do Sistema Nervoso Central. Apesar do nome, elas agem modulando seu funcionamento. Se ainda faltam estudos sobre a Cannabis, em relação aos psicodélicos a lacuna é ainda maior.
Não se compreende exatamente seus mecanismos de ação, mas pesquisas demonstram que eles induzem uma dessincronização cortical. Uma espécie de onda cerebral no córtex relacionada à expansão da consciência.
Isso produz uma aumento na produção de serotonina e intensifica a atuação do sistema serotoninérgico, induzindo a uma regulação das percepções, emoções, humor, cognição, motora e da capacidade associativa do cérebro.
“A indústria farmacêutica não se interessa pois, muitas vezes, basta uma sessão para a pessoa apresentar melhora. Não precisa ficar tomando remédio, e isso não interessa para eles.”
Como os canabinoides podem ajudar na saúde da mulher?
Thania Rossi é neurocirurgiã especialista em dor, medicina integrativa e canábica, mas focou na saúde da mulher na quarta palestra do dia. As primeiras evidências do uso que apresentou foram arqueológicas, com indícios de que a Cannabis já era utilizada para cuidar de alterações ginecológicas, cólicas menstruais, sintomas de TPM, dor de cabeça e fibromialgia há milhares de anos.
Não faltaram, porém, evidências da medicina moderna. “As mulheres são as que mais vão ter alterações de ansiedade ao longo da vida, muito mais frequente do que no homem. Algumas patologias também são muito mais frequentes na mulher, como a fibromialgia, enxaqueca, síndrome intestino irritado. Pesquisadores avaliaram nesses grupos de pacientes a quantidade de endocanabinoides no sangue e no líquor e viram que houve uma diminuição nesses grupos”, afirmou. “
“Fazendo tratamento no sistema endocanabinoide, trabalha dentro de um universo que pode levar a uma melhora clínica dessas pacientes, tanto nos sintomas dolorosos como nos não-dolorosos.”
Ela também destacou o papel do THCV (tetrahidrocanabivarina) na redução do apetite e do canabidiol na dismenorreia e nos sintomas da menopausa, como distúrbios de sono, fogacho e problemas de memória. Além dos benefícios na saúde sexual da mulher.
“A gente pode utilizar de uma forma recreativa. Tem mulheres que utilizam a Cannabis, que pode ser tanto em óleo nas partes íntimas antes do sexo ou na forma de supositório vaginal, para aumentar o prazer pois estibmula o fluxo de sangue na região. Atua em vários receptores levando também a uma analgesia para quem tem dor no ato sexual, que é
muito frequente nas mulheres de endometriose.”
“Uma pesquisa brasileira demonstrou que as mulheres que utilizam Cannabis recreativamente aumentam os níveis de desejo, exitação, lubrificação, orgasmo, satisfação, diminui a dor”, concluiu. “O uso de forma crônica diminui 21% as chances dessas mulheres
evoluíram com alguma disfunção sexual ao longo da vida.”
Manejo dos canabinoides na medicina esportiva
O médico Ricardo Ferreira é especialista no tratamento de doenças da coluna e manejo da dor, com mais de 7 anos de experiência no acompanhamento de pacientes em uso de cannabis como medicamento no Brasil. Sua experiência fez com que um novo grupo de pacientes passassem a procurá-lo: os atletas.
“Uma demanda que tá acontecendo pela não proibição do canabidiol. Estamos vendo um boom de atletas que estão buscando com seus médicos informações a respeito para melhorarem seus resultados. Qual a forma segura, tanto na questão da melhora da recuperação quando joga e para lesões, mas também na questão da ansiedade.”
Além das propriedades analgésicas e anti-inflamatórias da Cannabis, Ferreira destacou o papel no combate aos radicais livres. São moléculas de oxigênio que perderam um átomo produzidas como subproduto da respiração. Sem esse elétron, ela busca algo para se ligar. Pode ser a membrana celular, uma proteína ou até o DNA.
Isso causa uma lesão na célula e está ligado ao processo de envelhecimento. Nosso organismo e alguns alimentos ingeridos possuem capacidade antioxidante. Ou seja, fornecem o elétron que falta do radical livre e assim ele não se liga a uma célula.
Na atividade física em alta-intensidade, porém, os atletas respiram mais profundo e rápido, os antioxidantes são consumidos todos e há um acúmulo de radicais livres. Dificulta a recuperação dos músculos e aumenta a suscetibilidade de sofrer lesões. É o chamado estresse oxidativo. Estudos demonstram que o CBD age regulando a produção de antioxidantes por demanda, ajudando a combater os radicais livres.
A Cannabis para atletas demonstrou também que ajuda no combate à ansiedade por gatilhos. Ou seja, o jogador de futebol tende a sentir menos o impacto diante uma cobrança de pênalti, por exemplo, o que acaba melhorando o desempenho.
Diversas federações e órgãos organizadores do esporte já liberam o uso do canabidiol, o THC, porém, ainda enfrenta restrições. Ferreira alerta para a necessidade de conhecer a formulação do medicamento para que não ultrapasse os limites máximos tolerados pela legislação para que sanções sejam evitadas.
“É importante que as federações percebam o valor que a Cannabis pode proporcionar ao desempenho dos atletas.”
As aplicações dos canabinoides na odontologia
Com 32 anos de experiência como cirurgiã dentista, Cynthia De Carlo abordou os organizadores do Congresso Brasileiro de Cannabis Medicinal, em sua primeira edição, com uma demanda específica: as aplicações na odontologia deveriam ser abordadas.
Membro da Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis, pode ver atendida a demanda com sua própria palestra durante a terceira edição. “Faz um mês, mais ou menos, que o Conselho Federal de Odontologia reconheceu pela primeira vez o potencial da Cannabis nas patologias odontológicas. Pra gente é uma vitória.”
Ela apontou os benefícios da Cannabis para o tratamento de dor, tão temida nas visitas aos dentistas, como também à patologias associadas à condições neurológicas, como bruxismo ou Síndrome da Ardência Bucal.
De Carlo apresentou o quadro clínico de uma mulher que viu sua vida interrompida com as dores provocadas pelo bruxismo. Em 25 dias de tratamento, estava de volta. “Ela voltou a ter uma qualidade de vida que tinha perdido. Não há qualidade de vida em paciente com dor e a gente conseguir isso não tem presente maior. Não tem reconhecimento maior para o profissional.”
Indicações do uso de canabinoides na veterinária
A palestra de encerramento da temática de saúde do Congresso Brasileiro de Cannabis Medicinal extrapolou os humanos. O professor da disciplina de endocanabinologia em medicina veterinária, Erik Amazonas explicou que possuir um sistema endocanabinoide não é privilégio humano. Todos os vertebrados compartilham esse mecanismo responsável por regular a homeostasia das células. Ou seja, que trabalha para que as células, e o organismo, mantenham sempre seu estado ótimo de funcionamento. “Não há qualquer célula que não seja atingida pela Cannabis e o sistema endocanabinoide. A Cannabis é sempre um tratamento sistêmico.”
No entanto, ele não pôde seguir o que foi proposto no tema da palestra e não forneceu nenhuma indicação de uso de canabinoides na medicina. Não por falta de evidências científicas, já que antes de chegar aos humanos o medicamento foi testado em animais de laboratórios. Mas devido à falta de reconhecimento por parte do Conselho Federal de Medicina Veterinária e, caso indicasse o uso, poderia sofrer sanções.
Como pesquisador, porém, nada o impede de demonstrar estudos que demonstram os possíveis benefícios da Cannabis medicinal em animais. Com mais estudos, mais evidências. A Cannabis pode ter efeito anti-inflamatório, analgésico, anticonvulsivo, antitumoral, antimetástase, antioxidante, além de ajudar a regular o apetite, a ansiedade e a insônia. Condições semelhantes à dos humanos.
Ele também destacou os poucos efeitos colaterais aos animais. Embora eles existam, não é nada que um veterinário tenha dificuldade de controlar. “Não se preocupem com os efeitos indesejados.”
Além de lembrar que as sementes da Cannabis, ricas em nutrientes, poderiam ser uma opção viável e acessível para a alimentação animal, caso não fosse limitada pela legislação.
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