A 4ª edição do Cannabis Thinking, evento realizado em São Paulo nos dias 16 e 17 de setembro, teve como tema o “legado”, pois discutir Cannabis medicinal vai muito além do acesso à terapêutica.
As drogas são o principal fator que leva ao encarceramento no Brasil, majoritariamente da população preta e pobre, e a regulamentação da Cannabis se apresenta como uma oportunidade de criar um legado positivo no combate ao racismo estrutural.
“O que estamos fazendo aqui é a construção de um futuro. Essa agenda tem a complexidade de fazer repensar e fomentar questões importantes que são colocadas como necessidades e urgências da sociedade”, afirmou durante a abertura do segundo dia do evento o reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, José Vicente.
“Um espaço de reflexão profunda para a gente discutir, sobretudo, os efeitos desse racismo estrutural. Ser negro e morar em alguma localidade que esteja em alguma medida subordinada a ação das drogas e depois transitar em outros espaços tipifica uma culpabilidade antecipada e uma estigmatização que divide os cidadãos.”
“Uma criminalização, desconfiança e suspeição que permite que no olhar e distinga quem pode e quem não pode ter acesso ao direito de ter um tratamento formal, correto e legal dentro do próprio sistema de justiça.”
“A gente vai ver o resultado de tudo isso quando a gente pega as estatísticas do sistema criminal. Quem são aqueles que estão recluidos? Por quais motivos? Quais são as classes de provas que mantêm essa retenção? Vamos ver que essas formalizações são ineficientes, mas suficientes para promover um genocídio da população negra.”
“Se a gente conseguir transformar esse interesse me que nos une em uma ação propositiva dentro do malefício que nos desune, e produz violência de toda natureza, poderíamos iniciar um processo que possa significar a mutação de uma demonização para um reconhecimento e valorização positivada dessa ação.”
“São meninos pobres e negros que compõe o grande exército do tráfico ilegal de drogas de toda natureza. Se quisermos garantir suas vidas e que eles possam realizar seus sonhos como cidadãos, nós vamos ter que construir um caminho novo e diferenciado.”
“Falar em combater o crime e promover uma inclusão e socialização sem pensar na periferia, vamos de novo repetir o que foram todas as políticas, que acabam por concentrar nas mãos de alguns os benefícios e privilegiar os brancos de olhos azuis.”
“Estamos falando de uma galáxia a ser descoberta, potencialidades extraordinárias para serem diagnosticadas, trabalhadas e apropriadas que possam transformar tudo isso em uma ação econômica, social e política transformadora.”
“Plantar saúde para colher futuro”
Para dar sequência a temática, o evento convidou Lúcia Cabral para contribuir com o ponto de vista de quem assiste de perto as consequências da guerra às drogas.
Professora, assistente social e dirigente do Educap ( Espaço Democrático De União, Convivência, Aprendizagem e Prevenção no Complexo do Alemão), atua junto a movimentos sociais desde os 12 anos, mas mergulhou de cabeça no tema segurança pública em 2007, quando uma operação da polícia matou 21 pessoas.
“Quando a gente milita dentro da favela, é por tudo. Todos os acessos. Acabei me envolvendo em um trabalho muito focado no direito da família desses jovens. A gente quer dar um basta a esta guerra contra as drogas que só traz morte, e segurança pública não é isso.”
“Segurança pública é educação, saúde, cultura, lazer, e não essa matança. Uma guerra que só enxuga gelo, pois não consegue exterminar essa situação. Dentro da favela, o problema de violência é o poder do estado que extermina a vida de inocentes.”
Dentro dessa militância, Cabral chegou à questão da Cannabis medicinal no auxílio a uma moradora com um filho portador de autismo. “A gente passa a lutar contra o preconceito dentro da favela para fazer a população entender que não é o cigarro, a maconha, mas uma erva que tem potencial de promover saúde e qualidade de vida.”
“Maconha é um nome pejorativo que se utiliza na guerra contra as drogas. Uma erva que é usada pela segurança pública para criminalizar a população da favela. A gente precisa desmistificar essa história da Cannabis, que dentro da favela é usada como desculpa para matar.”
“A gente está em um País que cria histórias para manter o status de quem tem um capital maior. O capitalismo faz isso com uma erva que pode curar e trazer qualidade de vida para uma população. Trazer riqueza.”
“A gente luta e resiste. Nosso trabalho é lutar contra o preconceito, racismo, e todas as atrocidades que o governo e o neoliberalismo impõe. Essa cultura que o povo da favela deve receber tiro, porrada e bomba, não saúde, educação, lazer e cultura. Esse é um momento de luta para enxergar que a gente precisa plantar saúde para colher futuro.”
Acolhe
A última mesa de debate do dia também abordou o racismo, dentro de uma perspectiva de reparação histórica. “A Zumbi dos Palmares concentra todo um olhar para a população negra para além da representatividade, mas para a educação e como a gente valoriza os negros nessa cidade”, disse Simone Eduardo, professora e pesquisadora da Universidade Zumbi dos Palmares.
Eduardo apresentou a plataforma Acolhe, que, por meio do WhatsApp e chat online, proporciona o acolhimento de pessoas vítimas de racismo com assistência psicossocial e jurídica. “A plataforma é para que as pessoas tenham alguma reparação.”
“Que não tenha que passar por outra vitimização para além daquilo que já sofreu. É proporcionar um acesso rápido a um espaço de compreensão, onde não vão perguntar se a vítima ‘entendeu errado”. Uma plataforma que vai dizer: ‘infelizmente você passou por isso, mas não está sozinho’.
“O racismo causa problemas de saúde mental. Se sentindo desumanizado, não acreditar mais em si, angústia, depressão, falta de sono. Proporcionamos o atendimento jurídico, pois se trata de um crime, mas psicológico também.”
É aí que a Cannabis medicinal entra na história, em um exemplo prático de reparação histórica. A partir do ano que vem, o projeto visa oferecer tratamento com canabidiol aos pacientes que desenvolveram questões de saúde mental como consequência do racismo.
“Vítimas de racismo tem um trauma que vem com vários sintomas, como o estresse pós-traumático. Pensando em trazer acessibilidade à Cannabis, que pode ser utilizada para tratar diversas condições de saúde mental, estamos lançando essa pesquisa”, revelou Júlia Zaccarelli, pesquisadora que atua junto ao projeto.
Cannabis Thinking
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