Quando Nathalia Carreiro passava rímel, os olhos doíam. Quando usava óculos, o rosto doía. Desde muito cedo, aprendeu a conviver com dores físicas e psicológicas, resultado de uma fibromialgia severa, que a deixava sensível a tudo: à luz, a cheiros, ao toque. Como médicos e familiares a acusavam de querer chamar atenção, ela se acostumou a testar seus limites, inclusive praticando todos os esportes que podia. Resultado: vivia com os braços punhos, pés e joelhos engessados. Durante quinze anos, a tala e o gesso foram seus companheiros.
Na época da faculdade de fonoaudiologia, as dores pioraram, começando na cabeça e descendo por todas as partes do corpo. Resolveu fazer escova progressiva para alisar os cabelos cacheados, mas o couro cabeludo doía demais. Tentou fazer o procedimento em casa, mas não aguentou a dor no braço e no cotovelo que o esforço trouxe. A família sugeriu terapia, uma vez que estavam convictos que o problema era psicológico.
Primeira crise
Perto de se formar na faculdade, um conjunto de fatores aumentou seu stress. Nesse período, o trabalho de conclusão de curso, um relacionamento abusivo e o falecimento do sogro a colocaram no hospital. Com mais dores do que o normal, foi internada e ainda assediada pelo médico. As dores eram incontroláveis. Cheiro de fritura a deixava nauseada – vomitava e tinha enxaqueca. A pele e todas as articulações doíam, a ponto de sofrer ao tomar banho devido ao contato da água.
De 2009 a 2013, tomou corticoides e morfina, com 30 comprimidos de remédios diferentes por dia, sem alívio satisfatório. Engordou 30 quilos por conta dos corticoides e buscou na dança a retomada do bem-estar. Mesmo emagrecendo, se sentindo melhor e mais confiante, os desconfortos ainda eram constantes. A transpiração depois das aulas faziam sua pele queimar, e a fadiga e dores nas articulações continuavam. Como estava psicologicamente melhor, Carreiro conseguiu desmamar de todos os remédios.
Em 2017, as dores incapacitantes se concentraram principalmente nas costas e ela ficou quatro meses internada. Fazendo ressonância, descobriu uma pequena hérnia de disco e operou a coluna. Ao invés de melhorar, piorou.
Diagnóstico
Foi apenas em 2019 que Carreiro teve o diagnóstico definitivo de fibromialgia. O reumatologista prescreveu CBD isolado, mas a melhora não foi significativa, pois ainda precisava de 24 comprimidos por dia e morfina de 12 em 12 horas. Mesmo assim, ou por isso mesmo, ela resolveu aceitar o convite de amigos que iam para uma chácara, para tentar se distrair. “Cada lombada era um grito”, conta, lembrando da dor da viagem.
Quando chegou, logo viu um pessoal fumando a flor da maconha. Os amigos, sabendo de seu sofrimento, convidaram que experimentasse. Carreiro lembra que nunca tinha fumado, tinha preconceito. Mas estava com tanta dor que resolveu: “Por que não? Não estou aguentando. Fumei”.
Apesar do enjoo, sentiu alívio. Lá mesmo, mandou mensagem para o reumatologista que tinha prescrito o isolado de CBD, contando do sucesso e perguntando se poderia continuar. Ele respondeu que, desde que ela estivesse à vontade com isso, seria ótimo, era só fazer um cigarro pequeno para fumar todos os dias à noite. Foi o que ela fez, mas não muito à vontade. A culpa de estar se drogando ainda pesava.
Óleo e baseado
Foi quando a esposa de Maurício Verderame, amiga de infância de Carreiro, a chamou para matar a saudade. Na conversa, a amiga sugeriu o marido prescritor de Cannabis e um óleo integral. Mesmo antes da consulta com Verderame, Carreiro já tinha desmamado todos os analgésicos novamente graças ao alívio com o baseado. Com o óleo 6%, ela alcançou mais um alívio, mas continuava sem conseguir fazer coisas como ir ao supermercado, ficar em pé por muito tempo e andar por vinte minutos. Foi apenas com um óleo 20% que ela conseguiu controlar as dores, há quatro meses. Quando tinha uma crise, fumava.
Para ela, usar o óleo estava certo, era um remédio, mas a maconha trazia a culpa de estar se drogando. “Lutei comigo mesma para tirar isso da cabeça”, diz, contando que deixava a crise chegar para fumar, quando poderia usar antes e prevenir a crise. “Hoje quando percebo que vou entrar em crise, dou dois pegas e consigo não entrar em crise”.
Para vencer preconceitos sobre a Cannabis e sobre si mesma, Carreiro conta que a psicoterapia e os remédios para depressão e ansiedade foram cruciais. Há dois meses medicada, mas com doses menores por conta da Cannabis, ela sente seu corpo se reorganizando. Pôde voltar a andar de bicicleta, vai ao mercado, consegue dirigir carro manual e está chegando a meia hora de caminhada. Já emagreceu 25 quilos e consegue atender seus pacientes em domicílio, ficando em pé por pelo menos 30 minutos.
Autoconhecimento
Depois de ter passado por pelo menos 30 médicos, cuja maioria apontava que seu problema era emocional, Carreiro aprendeu a se conhecer. Sabe quando uma crise vai começar porque fica atrapalhada e com dificuldade para entender as coisas. Também aprendeu a aceitar e impor seus limites: entende o que deve evitar e quando precisa parar uma atividade para evitar crises.
“Sempre tenho que ponderar antes de fazer alguma coisa”, diz, feliz porque conseguiu ir votar sem usar bengala e ficar na fila da lotérica com dez pessoas. Ela não tem mais as dores agudas, só se abusar. E, para Carreiro, o abuso é diferente: se vai ao mercado, não vai conseguir guardar as coisas no mesmo dia. Lavar louça tudo bem, mas arear panela não dá. “As pessoas geralmente pensam que a gente é fraca. Mas com a terapia, descobri que sou forte”, diz. “A fibromialgia é o processo mais difícil na minha vida, mas é também o mais enriquecedor.”