Em pleno 2024 ser uma pessoa transgênero no Brasil ainda apresenta uma série de desafios e riscos, devido à persistência de preconceito, discriminação e violência contra essa comunidade. Há 15 anos o Brasil ocupa o posto de ser o país que mais mata pessoas trans no mundo.
Neste Dia Internacional da Visibilidade Transgênero conversamos com a psiquiatra Dra. Cintia Braga e com a psicóloga Julia Pereira Bueno, travesti, mestra em psicologia que trabalha com redução de danos e atualmente organiza um curso voltado à comunidade transgênero sobre redução de danos.
“Viver com medo, por si só, já gera sintomas ansiosos e depressivos. Mesmo que não tenha transtornos diagnosticados. Viver apreensivo não permite que a pessoa tenha saúde mental. Não ter segurança para circular, ou seja, esta violência impacta demais na saúde mental de qualquer pessoa. E se a gente pensar que a população trans vive com medo a gente entende o porquê é tão comum a ocorrência de transtornos ansiosos, depressivos e sofrimento mental de uma maneira geral”, explica Dra. Cintia.
Segundo a Associação Nacional de Travestis e transexuais (Antra), rede de organização política de pessoas trans, em 2023, houve um amento de mais de 10% nos casos de assassinatos de pessoas trans em relação a 2022
“Destacando o fato de o país figurar novamente como o que mais consome pornografia trans nas plataformas de conteúdo adulto no mesmo momento em que o Brasil seguiu como o país que mais assassinou pessoas trans pelo 15º ano consecutivo. Se manteve a política estatal de subnotificação da violência lgbtifóbica. Entre as mortes em 2023, foram 155 casos, sendo 145 casos de assassinatos e 10 pessoas trans suicidadas. A mais jovem trans assassinada tinha 13 anos, e vimos a persistência de uma patrulha contra crianças e adolescentes trans”, delata a Antra neste post recente de sua rede social onde apresenta a sétima edição do “Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023”.
Em junho de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) equiparou a discriminação de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais ao crime de racismo. Além disso, desde 2022, uma decisão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) também deve ser aplicada aos casos de violência doméstica ou familiar contra mulheres transgênero.
Porém, sabe-se que relatos de agressões, ataques e assassinatos de pessoas trans são frequentes, refletindo uma cultura, que ainda persiste, de intolerância e ódio. E é neste contexto que se torna imprescindível o cuidado com a saúde mental.
“A população trans está submetida a toda sorte de violência e muitas pessoas têm medo de entrar em contato com a questão da identidade de gênero. Com certeza este número poderia ser bem maior e as pessoas poderiam ser mais felizes tendo a sua identidade de gênero respeitada”, avalia Dra. Cintia.
É urgente falar sobre saúde mental entre pessoas trans
Neste contexto, a psicóloga Julia Pereira Bueno, travesti, mestra em psicologia defende que é absolutamente fundamental falar sobre a saúde mental das pessoas trans. Já estas enfrentam desafios únicos relacionados à sua identidade de gênero, que podem afetar sua saúde mental de várias maneiras.
“Não existe um projeto de saúde mental que funcione para nós. Nem um debate sobre isso. É o que acontece quando a gente vive em uma sociedade onde muitas vezes nem nossa família nos apoia, onde não temos segurança de alugar uma casa, pois muitas vezes as pessoas têm medo. Não temos uma assistência da sociedade como um todo. Como psicóloga muitas vezes acabo acessando pessoas trans no consultório que vivem em uma condição que podem, de certa forma, cuidar a saúde mental. Mas quando a gente vai falar da população geral de pessoas trans que não tem emprego, que não tem assistência, este projeto de saúde mental é muito falho. Nós temos um índice imenso de depressão e suicídio dentro da comunidade trans“, explica Julia.
Cannabis no cuidado da ansiedade, estresse e depressão
“Uso produtos à base de Cannabis desde a pandemia. Foi quando tive fortes indícios de ansiedade e depressão. Tem sido muito importante, me ajuda a me centralizar e consegui avançar, defender e terminar o meu mestrado. Pois os efeitos colaterais de outros medicamentos ainda são muito complicados. E os óleos de Cannabis não têm estes efeitos colaterais”, relatou Julia.
“Gosto muito dos produtos à base de Cannabis para a obtenção de uma saúde mental. A pessoa dormir bem, ela dá conta de lidar com situações da vida. A Cannabis é muito bem-vinda. Situações comuns de pessoas trans passarem como quadros de estresse pós-traumático, por exemplo. Tenho muito bons resultados. Pode ajudar nos processo de sofrimentos psíquicos que as pessoas têm”, explica Dra. Cintia.
Gênero fluido e a aceitação do corpo: como a Cannabis pode ajudar
Conforme a Dra. Janaína Barboza a Cannabis atua positivamente ao ajudar no equilíbrio psicológico de pessoas que transitam por identidades de gênero: “Não importa no que a pessoa irá se transformar. O que importa é realizar um ser humano que não se reconhece naquele corpo e hoje ele tem ajuda de profissionais para que ele consiga se adequar melhor. Então é um casamento novo entre a psicologia e o corpo físico. E a Cannabis pode ajudar nessa adaptação, neste momento, sem a gente utilizar medicamentos de tarja preta que normalmente são utilizados”.
Portanto, discutir e abordar a saúde mental das pessoas trans é essencial para garantir que recebam o apoio e os recursos de que precisam para prosperar e viver vidas saudáveis e felizes. Isso inclui políticas e práticas que promovam a inclusão, o acesso a cuidados de saúde culturalmente competentes.
Razões pelas quais é crucial abordar a saúde mental das pessoas trans
- Estigma e discriminação: As pessoas trans frequentemente enfrentam estigma, discriminação e rejeição social devido à sua identidade de gênero. Isso pode levar a um aumento do estresse, ansiedade, depressão e outros problemas de saúde mental.
- Acesso a cuidados de saúde: As pessoas trans muitas vezes enfrentam dificuldades no acesso a cuidados de saúde adequados, incluindo cuidados de saúde mental. Isso pode ser devido à falta de profissionais de saúde culturalmente competentes ou à discriminação dentro do sistema de saúde.
- Violência e abuso: As pessoas trans têm uma maior probabilidade de enfrentar violência e abuso, incluindo violência doméstica, bullying e agressão física. Essas experiências traumáticas podem ter um impacto profundo na saúde mental das pessoas trans.
- Isolamento social: Devido ao estigma e à discriminação, as pessoas trans podem enfrentar isolamento social e dificuldades para encontrar apoio e comunidade. O isolamento social é um fator de risco conhecido para problemas de saúde mental, incluindo depressão e ansiedade.
- Necessidade de afirmação de identidade: Para muitas pessoas trans, a busca por reconhecimento e afirmação de sua identidade de gênero é uma parte crucial de sua jornada de saúde mental. Isso pode incluir acesso a tratamentos médicos de transição, terapia de apoio e espaços seguros para expressar sua identidade de gênero.
O papel das pessoas trans na redução de danos
Em seu trabalho de mestrado, Julia apresentou como o histórico trabalho de pessoas trans se relaciona com ações de redução de danos:
“No meu trabalho de mestrado trago a visão de que a redução de danos começou com as pessoas trans. Apresento alguns relatos do que aconteceu ali nos anos 80 com a AIDS, e o primeiro centro para cuidar de pessoas trans com HIV foi construído pela Brenda Lee, uma travesti e ela foi a primeira pessoa a construir um equipamento em parceria com o estado para cuidar de pessoas com HIV. Então eu entendi como uma história dentro da redução de danos protagonizada pelas pessoas trans”.
IBGE vai estimar tamanho da população trans e travesti no Brasil: dados são essenciais para a elaboração de política públicas
As estatísticas oficiais sobre a população trans no Brasil devem ser divulgadas pelo IBGE somente no último trimestre de 2024. Já que desde 2023 incorporou a população trans, travesti e não binária na nova Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde, que começou a coleta de dados ano passado.
Mas sabe-se que o Brasil tem 4 milhões de pessoas trans e não binárias, segundo um estudo realizado pela Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em 2021. O estudo apontou 1,9% da população brasileira é de pessoas transgênero ou não binárias.
Reparação histórica
“O mercado canábico precisa agir e priorizar as reparações históricas! A Cannabis pode ser uma ferramenta para fortalecer a comunidade LGBTQIA+, fornecendo uma alternativa de renda e emprego para os membros dessa comunidade. Incentivar o empreendedorismo canábico entre os indivíduos LGBTQIA+ pode criar oportunidades econômicas e ajudar a diminuir as desigualdades sociais. A indústria da Cannabis pode estabelecer parcerias e colaborações com organizações e iniciativas LGBTQIA+, fortalecendo assim os laços entre os movimentos de direitos LGBTQIA+ e canábicos. Essas colaborações podem incluir a promoção de eventos conjuntos e a arrecadação de fundos para causas LGBTQIA+ e a criação de espaços seguros e inclusivos para os membros das duas comunidades”, escreveu Lívia Oliveira, a primeira trans a fazer parte do mercado canábico, como consultora, em uma matéria especial do portal Cannabis & Saúde no Dia Internacional de Luta contra a LGBTfobia.
Percepção sobre Cannabis e sobre o movimento LGBTQIA+
Com o passar do tempo, e à medida que as pautas conquistam visibilidade, a percepção da sociedade se transforma. E assim, mesmo que de maneira lenta, avançamos.
Hoje cada vez mais pessoas assumem sua sexualidade e militam pela causa. Artistas falam abertamente sobre opções sexuais dinâmicas e a responsabilidade de ter um gênero que é fluído.
Por outro lado, médicos e médicas publicam estudos sérios com comprovações científicas sobre os benefícios da Cannabis. Pessoas assumem tratamentos abertamente e relatam os benefícios da planta sem tabu. Para evoluir, é importante abrir as cortinas de fumaça com informações científicas. E com todo o respeito a si mesmo, e ao mundo que nos rodeia, sair com orgulho do armário, cada um à sua maneira.
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