A Cannabis medicinal é uma realidade no Brasil e no mundo. A Cannabis sativa, quando contém até 0,3% de THC, é chamada de cânhamo, um anagrama de maconha. Vários estados dos Estados Unidos, assim como vários países da Europa, vendem os produtos full spectrum (extratos de cânhamo) como suplemento alimentar.
As duas substâncias terapêuticas da Cannabis mais estudadas são o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC). Aqui no Brasil, temos nas farmácias um produto industrializado com CBD puro e um produto com mais THC que CBD, o Mevatyl®, ambos vendidos a preços proibitivos.
Temos também duas associações de pacientes que adquiriram na Justiça o direito de cultivar, extrair o óleo e vendê-lo a seus associados, a Associação Brasileira de Apoio Cannabis e Esperança (ABRACE) e a Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (APEPI). A ABRACE já conta com mais de 4 mil associados em uso de produtos derivados da Cannabis, sejam óleos, pomadas ou sprays. Os exemplos de pacientes graves e intratáveis que se beneficiam com esses produtos são inúmeros e em ascensão.
Sabemos que o consumo crônico e de altas doses de Cannabis fumada pode precipitar quadros psicóticos e esquizofrenia, assim como a síndrome amotivacional. O desencadeamento de psicose se dá numa minoria dos pacientes que têm susceptibilidade genética. Temos, hoje, muito mais segurança em decidir a quem prescrever os produtos derivados da Cannabis.
Dispomos, ainda, de testes farmacogenéticos que permitem identificar populações de maior risco, contribuindo para melhor orientar a prescrição de produtos com THC. Temos muitas crianças com epilepsia, autismo, síndrome de Tourette, doenças neurodegenerativas diversas, entre outras, que se beneficiam desses produtos, com segurança e menos efeitos adversos do que a maioria das medicações psicotrópicas tradicionais.
Diante destes fatos, precisamos nos perguntar por que, enquanto o mundo está indo num sentido, uma parte do governo brasileiro, o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) estão indo no sentido oposto. A nota técnica da ABP de 24 de agosto de 2020 se refere ao uso in natura da Cannabis como fonte dos problemas acima expostos, mas não diferencia a Cannabis in natura dos compostos medicinais, assim como não diferencia a Cannabis do tráfico dos produtos medicinais, incluindo aqueles com baixos teores de THC. Não diferencia o cânhamo in natura da Cannabis sativa rica em THC in natura, ambos com propriedades terapêuticas, cabe salientar.
Recentemente, o TRF-1 acatou o pedido do Ministério Público de fornecer produtos derivados de Cannabis no SUS, indeferindo o recurso da União na Justiça Federal. Essa medida favorece apenas os dois produtos registrados na ANVISA citados acima, o que tem canabidiol puro disponível na farmácia a R$1.800,00 o frasco e o Mevatyl, com preço similar. Esse projeto é bem-vindo, mas precisamos de mais opções nas farmácias e a preços menores.
O projeto de Lei 399/2015 defende a comercialização de produtos derivados de Cannabis, não versando diretamente sobre o plantio de cânhamo no Brasil, mas não excluindo-o.
O substitutivo ao PL 399/2015 versa sobre cultivo, pesquisa, processamento e comercialização por pessoas jurídicas, ou seja, associações, indústria e instituições de pesquisa, de Cannabis para fins industriais e medicinais (humano e veterinário). O plantio em solo brasileiro alavancaria o nosso agronegócio e permitiria que mais produtos derivados da Cannabis estivessem disponíveis no Brasil a custo menor. Mais importante, reduziria a busca de extratos artesanais de origem desconhecida ou, mais temerário, advindas do tráfico ou de contrabando, por pais desesperados.
Entendemos que com a proibição do uso medicinal da Cannabis, beneficiam-se alguns setores da sociedade, a saber: a indústria farmacêutica, que perde mercado quando há expansão de produtos derivados de Cannabis; as clínicas de tratamento de dependentes de drogas; as comunidades terapêuticas mantidas em grande parte por evangélicos; os traficantes; os contrabandistas. Paralelamente, prejudicam milhares de pacientes que fazem uso de derivados da Cannabis.
É importante que esta discussão prossiga sem vieses ideológicos, políticos, religiosos ou de qualquer outra natureza, embasada apenas pelo conhecimento científico e visando à melhoria da saúde da população brasileira.