Efigênia Rocha é mãe de Júlio Autran e passou 25 anos tentando controlar suas crises violentas. Ele tem autismo severo. Quando pequeno, ficava isolado das outras crianças, era hiperativo e tinha dificuldades de aprendizado. Conforme crescia, tornava-se agressivo e se automutilava. Na adolescência, passou a bater na mãe e a destruir a casa. Só em 2020 Heffy, como é conhecida entre outras mães de autistas, conseguiu estabilizar o comportamento de Júlio com a dose e o tipo certo de Cannabis medicinal.
Júlio nasceu em 1995 com falta de oxigenação no cérebro, e Heffy já sabia que ele teria deficiência intelectual. Com dois anos, apareceram diferenças de desenvolvimento em outros aspectos: não fazia contato visual, não falava, não gostava de colo. Por outro lado, era hiperativo, ficava minutos girando como pião, escalava os móveis da casa e deixava a mãe o tempo todo com medo de que caísse. Não se concentrava, o aprendizado era mínimo e à noite ficava se revirando, passando noites sem dormir.
O mundo das crianças especiais
Em 1998, Júlio foi para a escolinha. Como ainda não falava, só balbuciava, a mãe apostou na interação com crianças da mesma idade, queria que ele fizesse amigos. Foi chamada ainda na primeira semana. Ele não fazia as atividades, não dava a mão aos coleguinhas, nem interagia. Só queria correr, subir nas coisas e ficar fora da sala de aula. “Fiquei triste que ele não quisesse brincar com as outras crianças”, diz Heffy.
Depois de mais alguns dias, a escola a chamou novamente: Júlio comia coisas como os lápis e a massinha de modelar (o cocô dele estava colorido). Eles disseram que era perigoso e que ele precisaria de orientação especial e de neuropediatra. “Foi só aí que entrei no mundo das crianças especiais”, conta a mãe.
Perda e piora
Júlio entrou em uma para crianças especiais, onde passava toda as manhãs. Em 2001, a avó iniciou o desfralde, acompanhava o neto na privada para que ele se acostumasse. Mas um infarto interrompeu o processo. E Júlio reagiu à perda. Não aceitava mais sentar na privada e ficou violento: gritava, chutava e batia. Heffy estava grávida do segundo filho e temia que um dos chutes atingisse sua barriga. Quando Jonas nasceu, a sobrecarga foi grande. O avô, que já estava com 70 anos, não aceitava cuidar das duas crianças. Heffy pediu para que a cunhada criasse Jonas.
Em 2007, já pré-adolescente, duas mudanças mexeram novamente com a rotina deles: a morte do avô e a volta de Jonas para a casa da mãe. Houve nova piora e Júlio passou a destruir o que visse pela frente. “Ele tinha muita força. Eu tentava enfrentar de maneira errada, não tive apoio psicológico”, lamenta Heffy. Ela estava sozinha tentando cuidar de dois filhos. Jonas ainda ficou dois anos com eles, mas precisou voltar para a casa da tia: Júlio ficava mais agitado na presença do irmão.
Aos 13 anos aconteceu a primeira de muitas internações. A mãe temia pela própria segurança.
Esperança e perseverança
Heffy tinha perdido a esperança na época que Júlio completou 22 anos. Eram remédios demais, causavam coceira, vômitos, problemas intestinais. Foi quando ela viu a reportagem sobre Rodrigo Bardon, o primeiro brasileiro a conseguir habeas corpus para plantar e produzir seu óleo de Cannabis. Entrou em grupos no Facebook, quase caiu em golpe de óleo falso, buscou orientação com outras mães. O primeiro óleo não deu certo, apesar de ter começado com poucas gotas.
No final de 2017, Bardon, que tinha se tornado um amigo, indicou Pedro da Costa Mello, médico prescritor de Sergipe. Com a receita mas com pouco dinheiro, foram várias tentativas de óleos e de habeas corpus. Quando conseguiam alguma melhora no comportamento e no sono, o produto era descontinuado ou vinha com alterações de cepas, e mais pioras se seguiam. Júlio chegava à automutilação, se cortava com qualquer coisa que encontrasse.
Resultado
Foi somente em 2020 que Mello conseguiu ajustar o óleo. “Agora ele está bem”, diz a mãe aliviada. O menino inquieto já é um homem de 25 anos, e depois do ajuste final, consegue passar horas fazendo uma atividade só. Heffy conta, feliz, que não é mais agredida: “Eu estava com medo, ele quase me matou”.
A mudança foi geral: apesar de não ser de sua natureza ser carinhoso, a mãe se contenta em poder cortar o cabelo do filho com segurança e sentar ao seu lado em paz. Antes os cuidadores ou terapeutas não ficavam, pois tinham medo de apanhar de Júlio.
Desde agosto deste ano, eles puderam contratar um profissional que o acompanha em caminhadas e passeios de ônibus. A automutilação não desapareceu por completo, mas a melhora de 70% é uma vitória.
Autistas segregados
Com a recém conquistada paz, Heffy luta pela assistência a autistas adultos. Na frente de sua casa existe uma escola de Educação de Jovens Adultos (EJA), mas não serve para Júlio. Se ele entrar com colegas de mesma idade, não vai acompanhar as aulas, que só são à noite. Para seu nível de desenvolvimento, ele precisaria frequentar uma escola especial, e não existem escolas públicas especiais para adultos. Então, como ajudar no desenvolvimento e integração de um autista severo que chega à idade adulta?
Heffy lamenta que os autistas pobres estejam em casa segregados por falta de atividades. “Adultos autistas são jogados ao léu no Brasil”, diz a mãe, que conhece escolas especiais só para crianças e gostaria de receber apoio do estado para o filho adulto. Psicopedagogos e terapeutas ocupacionais seriam uma resposta para essa parcela da população. Para divulgar sua luta, ela é muito ativa nas redes sociais e tem um canal no Youtube falando de temas de interesse de outras mães.
Conforme Júlio melhora e se estabiliza depois de 25 anos de luta, a mãe confia que agora é questão de ajuste e de mais desmame. Graças a Mello e à associação Acolher, o objetivo da equipe é manter apenas um remédio alopático. Enquanto não conseguem melhores terapias para autistas adultos, Heffy incentiva o veio artístico do filho, que passa horas pintando quadros.