Na manhã desta terça-feira (1º), a Comissão Especial da Cannabis Medicinal na Câmara dos Deputados realizou a primeira parte da audiência pública que debate o Projeto de Lei 399/2015. Estiveram presentes médicos, cientistas e representantes da sociedade civil para debater o assunto antes da apresentação do relatório.
O deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP), presidente da Comissão, coordenou e abriu o evento, realizado virtualmente e transmitido nas redes sociais. Ele mais uma vez lembrou a importância do projeto, apoiado na demanda da própria sociedade brasileira por um medicamento eficaz para diversas doenças. Explicou que o PL 399/2015 levou em consideração as melhores legislações mundiais, afirmando que o tema não é político nem ideológico. “Deputados do PTB, do DEM, do Podemos, do PP, do Novo, do Cidadania, do PSDB, do PSB, do PSOL, do PT e do PDT apoiam o projeto”, disse Teixeira.
O evento prosseguiu com a participação do relator da PL 399/2015, o deputado federal Luciano Ducci (PSB-PR), que apresentou um vídeo com depoimentos de pacientes e de médicos, relatando os benefícios da Cannabis. Posteriormente, trouxe uma apresentação com um resumo do PL 399/2015, que trata do cultivo nacional para pesquisa e produção de medicamentos feitos com Cannabis. Ducci resumiu: “estamos falando de remédio, de saúde e não de droga”.
No evento, o trabalho de ambos os deputados foi elogiado pelo ex-diretor da Anvisa, William Dib: “conseguiram juntar o que há de melhor na legislação mundial”. E concluiu, prevendo que “o Brasil terá uma outra história: antes e depois dessa legislação”.
Mães presentes
Após as falas de Dib e dos deputados federais, a audiência pública foi aberta aos principais interessados no projeto de lei: pacientes e mães de pacientes.
A primeira a falar foi Cidinha Carvalho, mãe de uma paciente com Síndrome de Dravet. Ela contou que a filha conseguiu reduzir em 80% as crises graças à Cannabis medicinal, melhorando a vida em diversos aspectos, cognitivo, motor, e até conseguindo se alfabetizar. “Sem a maconha, não sei se teria minha filha hoje”, disse Cidinha. Ela aproveitou para alertar que a Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace Esperança) não deveria ser parâmetro para as associações que estiverem começando agora. “É necessário flexibilizar a exigência dos padrões das associações”, argumentou. “Sem isso seria o mesmo que excluir as novas.”
Outra mãe de paciente com síndrome de Dravet, Liane Pereira, explicou que a Cannabis mudou a vida da filha Carol. E que a saúde é um direito básico, que os brasileiros não tem porque a planta não é regulamentada. Ela espera que, após a regulamentação, a Farmácia Viva – programa federal que produz fitoterápicos – tenha um papel fundamental, com o medicamento sendo distribuído pelo SUS.
Associações dão o exemplo no debate
Depois das mães, foi a vez das associações da sociedade civil. O primeiro a falar foi o diretor executivo da Abrace, Cassiano Teixeira, que comentou as alterações que a associação solicitou à Comissão para serem incluídas no projeto de lei. Como a revisão do percentual de 0,3% do THC, aumentando para 1%, levando em consideração o clima no Brasil.
Ele lembrou ainda lembrou da necessidade de incluir o uso animal, para que a Cannabis medicinal possa ser usada em animais. Teixeira conclui afirmando que vem sendo difamado pelo deputado federal Osmar Terra (MDB-RS), que faz oposição ao projeto de lei.
A coordenadora da Associação de Apoio à pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (APEPI), Margarete Brito, lembrou ainda da manipulação de informações sobre o PL 399/2015 .Ela, que tem uma filha que usa CBD, dirigiu sua fala para as mães que não entenderam o que é uso medicinal da Cannabis. E fez um convite: “Eu estou à disposição para que elas venham passar um dia na Apepi para ver a quantidade de pacientes precisando de acesso ao medicamento. Não é só criança, mas idosos.”
Margarete lembrou: “Se você é contra é porque não entendeu. Essa é uma luta por amor, é pelo outro.”
A regulamentação das associações
Apoiando o PL, mas com restrições, Pedro Zarur, diretor presidente da ABRACannabis apontou questões que lamenta não estarem no texto. O primeiro, é a falta do cultivo doméstico, que mantém a pessoa que cultiva para si na marginalidade, agravado por condição social e cor da pele. O segundo, a falta de regra clara diferenciando associações grandes e já estabelecidas das pequenas e mais novas, o que pode inviabilizar a atuação das pequenas. Por fim, a guerra constante às drogas, que afeta os mais vulneráveis. Para ele, “omitir a reparação às vítimas dessa guerra é omissão grave”. Apesar disso, Zarur finalizou reiterando “apoio crítico”.
A importância de regulamentar
A voluntária da ONG Amor Exigente (FEAE), que atende mais de um milhão de familiares de usuários de drogas, afirmou que a maioria entrou no mundo das drogas pela maconha. Contou que o filho tinha enxaqueca e amigos sugeriram que fumasse maconha para a dor.
Com surtos psicóticos, foi diagnosticado com esquizofrenia e passou a usar cocaína e crack porque a maconha já não surtia efeito. Vale lembrar que o canabidiol tem efeito antipsicótico. Ela afirma que se solidariza com as mães que pedem a legalização da maconha medicinal, mas acredita que: “No Brasil, as pessoas não estão preparadas para entender que a maconha medicinal será usada corretamente”.
De certa forma, o alerta de Jane pode ser utilizado para argumentar a favor da regulamentação. Se bem feita, pode garantir um medicamento seguro e prescrito por médico capacitado, evitando assim o risco de surto psicótico e do uso de drogas provenientes do mercado ilegal.
Na sequência, a presidente da Associação Brasileira de Epilepsia, Maria Alice Susemihl, destacou o dado de pacientes refratários aos medicamentos hoje disponíveis serem 30% das pessoas com epilepsia. Em contraste, Maria Alice atestou que estudos com canabidiol demonstrou grande impacto em pacientes com, por exemplo, 50 crises por dia, onde cada uma tem um impacto de maratona.
“São pais com medo constante de perder os filhos”. Ela ainda deu outro exemplo: na associação, são 125 pacientes com Síndrome de Dravet, onde 65 usam tratamento com Cannabis, com mais de 100 habeas corpus para plantio caseiro. “Judicializar pode, plantar para produção e pesquisa não pode?”, questionou. “Cannabis é medicamento, pesquisa, esperança, progresso, vidas. É uma necessidade e exige cumprimento de pré-requisitos”.
Cultivo no Brasil
Leandro Stelitano, da Associação Cannab, de Salvador, hoje com 500 associados, falou sobre a importância de se dar ênfase no cultivo orgânico no Brasil. Isso porque, como ele lembrou, o Brasil é líder no uso de agrotóxicos. Para Stelitano, o cultivo do cânhamo trará avanços na indústria têxtil, cosmética, da construção, de bioplástico. E fecha com um chamado a quem faz oposição ao PL 339: “é egoísmo de quem não apoia o PL 339. Precisamos sair da utopia e vir para a realidade do nosso país. Desafio à oposição. Leiam o substitutivo. Seus argumentos demonstram que não leram ou não entenderam”.
Empatia e urgência
“Como dizer a um paciente que sua dor não é urgente?”. A pergunta foi de Felipe Farias, da associação Reconstruir do RN, que se dirigia à oposição ao projeto de lei. Ele apelou à ciência e ao entendimento e fechou contra argumentando uma das principais bandeiras de opositores: “Não podemos entrar no negacionismo científico. O CBD é antipsicótico. É usado para pacientes que fazem uso de drogas, como o álcool. Maconha é a porta de saída para drogas pesadas”.
As 55 associações de doenças raras, representadas na audiência pela Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras (Febrararas) na pessoa de sua diretora Lauda Santos, aprovam o PL 399/2015.Lauda ainda reforçou a necessidade de políticas públicas e apoio ao cultivo pessoal, uma vez que os passos hoje ainda dificultam o acesso para a maioria das pessoas. “A palavra é empatia. Quem é contra o PL 399/2015 não tem essa empatia”.
A voz dos parlamentares
O primeiro a falar foi o deputado federal Alex Manente (Cidadania-SP), que deu o tom que seria seguido pela maioria dos parlamentares na audiência pública. Ele apoiou o projeto e argumentou que hoje o acesso é restrito a quem tem poder aquisitivo. “Não estamos discutindo a regularização da maconha, mas o canabidiol medicinal”, enfatizou. “Essa separação é importante.”
As duas vozes dissonantes foram dos deputados federais Diego Garcia (Podemos-PR) e Osmar Terra (MDB-RS). Garcia alegou que o projeto trata de uso recreativo. E que também seria utilizado para o avanço da liberação de outras drogas, apesar do texto da PL 399/2015 só tratar de uso medicinal e de não citar outras substâncias. Por fim, ainda reclamou que alguns nomes teriam ficado de fora da audiência pública, como de representantes da CNBB e da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas.
Teve como resposta que a audiência pública foi anunciada há um mês e que havia abertura para inclusão de nomes até poucos dias, quando o número máximo de participantes foi atingido.
Terra, crítico do PL, seguiu uma linha semelhante. Ele rejeitou a necessidade de liberar o cultivo e até mesmo a de que a planta teria propriedades medicinais: “Maconha nunca foi remédio”. No geral, insistiu no uso da palavra maconha, com o argumento de que o uso recreativo causa dependência química e que seria porta de entrada para outras drogas. Os dois deputados não comentaram a questão medicinal, que era o objeto da discussão.
A intervenção dos dissonantes, em especial de Terra, acabou fazendo com que parte do tempo restante fosse gasto com desmentidos. Como da deputada federal Natália Bonavides (PT- RN), que achou importante alertar que a oposição dos dois não “representa essa comissão”. Ela apontou o benefício à saúde e segurança, além da importância do acesso e da orientação médica. “Não podemos deixar esses absurdos passarem como se fossem verdade”, pediu.
Contra a crueldade, razão e coração
Em sintonia com o tom geral da audiência, os últimos deputados elogiaram a atuação das famílias, das associações e o trabalho dos políticos. As intervenções ainda falaram de um texto possível para o momento, da urgência na aprovação do PL 399/2015, mesmo com as dificuldades da pandemia, e na crueldade de opositores.
Pedro Cunha Lima (PSDB-PB) reforçou que “aqui não tem bandeira partidária. Não precisamos polarizar esse tema entre partido de esquerda e direita. É crueldade não votar a urgência desse projeto”. Marcelo Calero (Cidadania – RJ) pediu pelo acesso mais fácil ao medicamento. “Não adianta só regulamentar, precisamos recordar a realidade econômica das famílias do país. Só permitir é crueldade”. Fechando o bloco, Fábio Mitidieri (PSD – SE), e também autor do projeto, reiterou seu apoio às falas de Natália Bonavides e Pedro Cunha na discordância a Osmar Terra. E concluiu: “Espero que prevaleça a razão e o coração”.