Por Dra. Ana Gabriela Hounie, Médica Psiquiatra e Pós-Doutora pela FMUSP
Todos sabem que estou entre os pioneiros na prescrição da Cannabis como medicamento. A maioria dos pioneiros começou tendo experiência com óleos artesanais.
A Abrace Esperança foi a primeira associação a comercializar produtos à base de Cannabis, munidos de uma liminar judicial. Na segunda metade da década de 2010 havia poucas opções de extratos, e não se sabia muito bem a quantidade de canabinoides que eles continham, já que as análises eram feitas com espectrofotometria da planta e não do óleo.
A cromatografia líquida de alta performance (HPLC) somente chegou em 2019. Naquela época, os extratos eram menos conhecidos na sua composição em termos de fitocanabinoides, mas se sabia as cepas das quais provinham, o que já nos trazia informações sobre sua composição, inclusive de terpenos.
O efeito comitiva, ou seja, a sinergia entre canabinoides e terpenos e entre os diversos fitocanabinoides entre si não é mera retórica ou curiosidade botânica; reflete-se na prática clínica.
Quando havia mudança de cepa, havia mudança no resultado terapêutico. A cada lote notávamos diferenças nos resultados e precisávamos fazer ajustes. Era trabalhoso, mas funcionava.
Era a pura “medicina canabinoide”!
Quando chegou a tão esperada HPLC, a expectativa era de que saberíamos com maior precisão a quantidade de fitocanabinoides de cada lote. Isso repercutiria numa medicina mais precisa. Percebeu-se que extratos, como os da linha laranja (CBD>THC), tinham proporções entre 3:1 e 5:1 e que a linha verde continha mais CBD do que se imaginava.
Essa variabilidade lote a lote é um dos motivos da dificuldade de se conseguir o registro dos produtos na Anvisa.
Pois bem. Em um movimento em direção ao registro, houve uma modificação das linhas de extratos, tendo sido criada a linha “farmacêutica”, com teores fixos de CBD e THC, que podem ser 5, 10 ou 15 mg/ml. Por um lado, isso foi excelente, pois sabemos exatamente o que estamos dando ao paciente e precisamos fazer menos contas de ajuste de dose a cada lote que chega.
No entanto, perdemos as proporções anteriores, pois estes extratos podem conter no máximo 0,2% de THC ou CBD, a depender da linha. Quando o paciente precisa de mais THC, mas não tanto quanto há nos produtos 1:1, podemos associar o óleo verde (THC>CBD) e criar a proporção 3:1 ou outra qualquer.
E mais recentemente, houve uma mudança na técnica de extração e produção do extrato com maior filtragem dos componentes. Embora na teoria isso seja “bom”, pois teríamos um extrato mais “puro”, na prática clínica houve perda de benefício.
Pacientes usando a mesma quantidade da mesma linha de produto perderam o efeito terapêutico. Apesar da teoria ser de que apenas a clorofila é retirada, a realidade demonstra que isso não é verdade: se perde flavonoides e terpenos que fazem parte do fitocomplexo.
Curioso, não?
A tão almejada “industrialização” reduziu a qualidade do produto, e o motor propulsor é o registro na Anvisa, que pasmem, cobra R$ 400 mil para o registro de um único produto. A Abrace terá que desembolsar mais de R$ 5 milhões para poder registrar toda sua linha.
E o que podemos falar dos produtos industrializados?
Temos nas farmácias brasileiras algumas opções de CBD purificado, que têm indicações bastante limitadas, pois a grande maioria dos pacientes beneficia-se da presença do THC nas formulações. Algumas doenças exigem sua presença em maior ou menor grau. Caso da síndrome de Tourette e todas as patologias neurodegenerativas.
Assim, importamos os produtos que contém até 0,3% de THC com sucesso na maioria dos casos. Mas, havendo necessidade de mais THC, adicionamos um pouco mais até obter benefício terapêutico.
A mudança de lote a lote nos produtos importados é menor, e eles podem até ser mais baratos (pasmem!), pois o mg de CBD da Abrace custa quase 50 centavos enquanto o Tegra, por exemplo, custa 14 centavos. Já em relação aos produtos que contém mais THC, aí os da Abrace ainda são mais baratos.
Algumas empresas adicionam mais terpenos aos produtos, o que os encarece, mas otimiza a resposta terapêutica. Agora vejam o contrassenso: enquanto a Abrace está retirando os terpenos pela ultrafiltragem (e não os repondo, dado o custo), empresas estrangeiras os colocam de volta, pois sabem que isso otimiza o resultado terapêutico.
Artesanal ou importado?
E aí vem o motivo desta coluna: o que vale mais a pena? Produto artesanal nacional ou importado? Se estivéssemos em 2018, eu diria o nacional, sem dúvidas. Agora, pelo menos em relação aos produtos ricos em CBD, os importados, não só pelo valor, mas pelo efeito terapêutico, principalmente quando temos as cromatografias dos terpenos disponíveis, que muitas empresas não fornecem.
Finalmente, fica o registro aqui da importância da aprovação do Projeto de Lei 399/2015 no Brasil, para que possamos cultivar e produzir aqui os extratos e para que, especialmente, as associações possam cultivar e produzir e comercializar seus extratos, para que haja diversidade na possibilidade de prescrições, alternativas de preços para todas as camadas sociais, e para que não se perca a “alma” da medicina canabinoide, uma medicina individualizada, não massificada, e que apesar do trabalho que dá, é extremamente gratificante.
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