Eu me lembro, vividamente, da primeira vez que vi um medicamento sendo vendido com aspecto similar a uma balinha. E olha que Isso aconteceu há mais de 15 anos durante uma visita a uma grande rede de drogarias nos Estados Unidos. Recordo que achei bastante interessante, principalmente por tratar-se de um suplemento vitamínico elaborado com dosagem específica para as necessidades do público infantil.
Como na época eu já era pai, pensei: legal, tenho certeza que meu filho e outras crianças aceitarão medicamentos com esta apresentação de modo muito mais fácil do que de na forma líquida ou macerada. Afinal, quem já teve que medicar uma criança pequena sabe que eles em geral não curtem muito a ideia de tomar remédios.
E se este ursinho tiver um sabor incrível?
Entretanto, quase no mesmo instante veio a minha mente a voracidade do meu então pequeno Dudu para com balas, doces e guloseimas em geral. Daí pensei: Ok, este formato em bala de ursinho de gelatina certamente fará meu filho aceitar melhor o uso de medicamentos, mas como fazer ele parar após tomar o primeiro? Como fazer uma criança acostumada a consumir uma ou duas mãozinhas cheias de balas a fazer uso de apenas uma única balinha? E se este ursinho tiver um sabor incrível? Como convencer o meu pequeno monstrinho a tomar apenas uma unidade por dia?
De qualquer forma, em um primeiro momento eu fiquei bastante tranquilo, uma vez que aquele produto era especificamente composto apenas por vitaminas, e que o rótulo da embalagem afirmava que dosagem por cada unidade representava apenas uma fração das necessidades diárias de cada elemento para as crianças – Não havendo então risco à saúde no consumo de 10 unidades ou pouco mais que isso. Por outro lado, o produto em questão vinha em um potão com 200 ursinhos de gelatina colorido; típico do exagero dos americanos.
Como todo bom turista curioso, acabei comprando e colocando na mala o bendito mega pote de ursinhos turbinados tamanho família… Mas, quando voltei ao Brasil, para frustrar minha expectativa, ao provar uma destas balinhas, lembro muito bem que apesar dos ursinhos terem aspecto idêntico a balas de gelatina tradicionais, seu sabor ficava bem perto de ser considerado como repugnante – tipo óleo de peixe. Esta experiência bem desagradável fez este belo pote decorar nossa cozinha por alguns anos, até ser jogado fora com quase todos os 200 ursinhos originais.
Algum tempo depois comecei a entender que o gosto ruim dos ursinhos em questão poderia ter uma razão – inibir o consumo em excesso daquele produto, com consequente superdosagem e possibilidade de efeitos negativos. Saquei que apesar da aparência de bala, como se tratava de um suplemento com dose potencialmente danosa, houve uma preocupação por parte do produtor para com o público consumidor a fim de evitar o risco de indução a algo prejudicial. E olha que estamos falando de vitaminas! Moléculas sabidamente seguras, uma vez que para gerar efeitos negativos precisam ser consumidas em quantidades assombrosas.
Agora, quando estamos lidando com canabinoides ou qualquer medicamento, a coisa precisa ser levada de forma ainda mais cuidadosa
Não nego, muito pelo contrário, que já fui convencido há muito tempo que os componentes da Cannabis tem grande potencial para aliviar vários sintomas e condições médicas de muitas pessoas. Entretanto, como qualquer ferramenta poderosa, é necessário definir o momento de uso, público e dosagem capaz de promover alívio, sem deixar de lado a segurança daqueles que a utilizam.
Assim, apresentações antes denominadas como “não convencionais” como em no formato de gummies, balas, minhocas, peixinhos, aviõezinhos, chocolates, bebidas, caramelos, pirulitos, comestíveis em geral ou até lubrificantes íntimos, trazem inquestionavelmente maior risco de utilização em dosagens prejudiciais e, consumo inadvertido por pessoas e animais que sejam atraídos por formatos similares a produtos outrora não relacionados com medicamentos ou suplementos alimentares.
Esta preocupação deve ser ainda maior quando os produtos contenham componentes com potencial psicoativo como THC, CBN e canabinoides semi sintéticos como os Delta 8, 9 e 10-THC derivados do CBD
Mas na real, temos que concordar que qualquer ativo de valor medicinal, seja para controlar a pressão arterial, glicose ou qualquer outra condição clínica, deva ser utilizado de forma racional com base em eficácia e segurança. E isso significa: para quem necessita, na dosagem e frequência capaz de promover o efeito esperado com o menor risco de efeitos colaterais a curto, médio e longo prazo.
Não que eu seja contrário a estas apresentações, mas precisa estar claro que estes tipos de produtos podem levar ao consumo inadvertido tanto em relação a quem está consumindo, mas também em relação à dosagem, e horário de utilização
É óbvio que a utilização de qualquer substância ou medicamento capaz de interferir em qualquer processo fisiológico de uma criança só deve ser feito com o máximo de convicção que o uso é absolutamente necessário e seguro – Se isso não for consenso, que venha o meteoro e acabe com tudo. Mas a preocupação com segurança alimentar e farmacológica vai além da obviedade, há de ser considerando o risco de consumo não intencional não só por crianças mas também por animais, idosos, jovens e adultos que por alguma razão possam ser induzidos ao uso danoso de alguma substância ou produto.
E como minimizar estes riscos?
Em casos como este, uma estratégia inteligente seria observar como locais que já tiveram problemas com estas apresentações evoluíram as suas regulamentações buscando a segurança da sua população; e sem a simples proibição. Assim, relaciono exemplos de regras vigentes em estados americanos como Colorado, Washington, Califórnia e em todo o Canadá; seja para uso adulto/recreacional ou medicinal de derivados de Cannabis em apresentações comestíveis:
- Definir dosagens máximas de THC por unidade ou fração de um produto comestível de Cannabis (a maior parte dos locais limitaram a dosagem máxima a 10 mg de THC, mas outros canabinoides potencialmente psicoativos também deveriam ter sua quantidade limitada por unidade);
- Deixar claro na embalagem dos produtos a presença de THC, e outros canabinoides psicoativos, através algum selo ou alerta visual de fácil identificação;
- Utilizar embalagens que tornem difícil a abertura para crianças e animais;
- Não permitir a utilização de embalagens que possam levar a confusão de produtos canabicos com petiscos, doces ou outros alimentos e bebidas.
- Divulgação nos dispensários (locais de venda dos produtos de Cannabis), folders, outdoors e outras mídias quanto ao uso responsável dos derivados da cannabis a respeito de dose e momento – “Start low and go slow” = comece com doses baixas e aumente devagar;
- Alertar e capacitar profissionais de saúde dos pronto atendimentos/emergências a diagnosticar e manejar possíveis intoxicações agudas com canabinoides.
Como eu relatei no início deste texto, assim como os fatídicos ursinhos vitaminados que comprei, também acredito que o produto não ter sabor agradável seja uma tática importante para desestimular o consumo exagerado de produtos com finalidade terapêutica.
Hoje, mesmo tendo o meu amado Duduko se tornado um estudante de medicina de 1 metro e noventa e me enchendo de orgulho, a minha preocupação com a sua segurança com medicamentos, com ele e com meus outros filhos, não mudou.
E assim como eu me preocupo com a minha família, acredito que esta atenção deva ser estendida a todas as pessoas em todos os lares.