Na abertura da noite desta quinta-feira, 13, Beatriz Carlini, pesquisadora do Instituto de Abuso de Álcool e Drogas, professora e diretora da Universidade de Washington, Ph.D. MPH, Gonzalo Vecina Neto, o médico e ex-presidente da Anvisa, e Maria José Delgado Fagundes, advogada especialista em Saúde Pública, Direito Privado e Healthcare Compliance conversaram sobre as questões regulatórias.
Os convidados falaram sobre as diferenças entre as legislações americanas e a atual situação brasileira. Destacaram ainda o papel das associações. Saiba como foi:
Beatriz Carlini
Erros e acertos
“EUA é colcha de retalho em termos de Cannabis. Começou em um Estado, depois em outro. É importante entender como se espalharam e viraram mais norma do que exceção. A aprovação do uso de Cannabis para uso não medicinal, que ocorreu em 2012, teve acertos, no sentido de parar de criminalizar pessoas que usavam uma substância para vários fins, mas não era uma ameaça à sociedade.
E aí vem os erros. Erro: forçar uma integração de algo que não dá pra integrar – uso médico, do não médico.
Historicamente, o movimento pela legalização da Cannabis para uso medicinal veio da mobilização popular. Veio por conta dessa pressão e do aumento absurdo da população carcerária americana. Estavam penalizado as pessoas mais pobres, de minorias étnicas e raciais que aí começavam uma ficha criminal, o que os impedia ter emprego, bolsas de estudo e ascensão social. Foram duas políticas muito diferentes na retórica e na origem. Acho importante ter essa distinção aqui no Brasil também.
Quando teve a segunda legislação, de fazer uso para qualquer fim, não acho que teve benefícios aos pacientes. Embora essa questão racial de justiça criminal seja importante, os pacientes, pelo menos aqui em Washington, foram muito prejudicados. Antigos dispensário que cultivavam para fins medicinais fecharam as portas para se unir com os estabelecimentos comerciais que vendiam a Cannabis outros fins.
Isso atropelou o direito dos pacientes e os colocou em uma situação embaraçosa, hoje eles têm de adquirir sua medicação no estabelecimento comercial, que não é ambiente propicio para paciente, que muitas vezes usam cadeira de rodas, comprar sua medicação.”
Cultivo
“Novamente, é uma colcha de retalhos. Eu diria façam tudo diferente do que é feito aqui em relação a plantio e qualidade.
Vivemos uma concorrência com bastante dinheiro envolvido em que o controle de qualidade é muito pequeno e isso se deve ao fato de que, do ponto de vista federal, a Cannabis continua na classificação 1. Ou seja, uma substância sem qualquer fins terapêuticos e de grande risco as pessoas que utilizam.
Então, todo o conhecimento de controle de qualidade desses produtos agrícolas que acontecem sob supervisão de órgãos federais não está acontecendo, se recusam a dar qualquer tipo de orientação em termos de produção e plantação. Estados se esforçam, mas o lucro e a competição são maiores. Temos uma crise pesticia e contaminantes, inclusive de metais pesados.
Temos também medidas erradas do conteúdo canabinoide nos produtos – exagero no THC, para vender mais quando se trata do uso não medicinal. E exagero no canabidiol quando é para vender como medicamento.”
Pesquisas
“Pacientes muitas vezes precisam mostrar ao médico que esse medicamento faz efeito positivo. Isso não é muito diferente aqui nos EUA também.
Isso porque 80% das pesquisas de saúde produzidas no globo são financiadas pelo National Institute of Health. E é muito complicado fazer estudos de Cannabis. Não posso pegar aquela Cannabis vendida no estabelecimento comercial e fazer pesquisa, porque as universidades dependem de financiamento federal.
Se eu toco na Cannabis que não é legalizada do ponto de vista federal, a minha universidade pode perder o financiamento.
Há como fazer uma via para pesquisar, mas isso demora uns 4 ou 5 anos, com várias petições. É muito burocrático. E de onde vem a Cannabis para estudo? Da Universidade do Mississipi, que tem produção de Cannabis desde os anos 60. Mas não reflete a Cannabis que tá hoje no mercado. É uma situação profundamente surreal e perversa, não conseguimos avançar com a Cannabis nos estudos clássicos de medicamento.”
Gonzalo Vecina Neto
Cenário atual
“A sociedade precisa se movimentar. Se ela não o fizer, vamos continuar com essa visão com atrasada em relação à Cannabis medicinal. Tem que pressionar o Congresso, levar essa necessidade, trazer essa discussão.
Ou vamos continuar considerando que a Cannabis é uma droga recreativa e deve ser proibida. Essa é a visão que o estado brasileiro tem, não adianta a gente querer escamotear isso. É muita atrasada a visão que temos em relação a essa droga.
Neste atual governo, o Executivo, de visão militarizada de tudo, duvido que tenham a sensibilidade para pensar diferente.”
Judicialização da saúde
“Eu acho que temos que convencer o judiciário que o caminho adotado é errado. Boa parte tem essa visão equivocada e policialesca. Este erro, este equívoco também tá sendo cometido no judiciário.
E aí a judicialização é um problema que faz parte da solução. Na medida em que conseguirmos aumentar a judicialização, isso vai ser percebido como um problema e vão procurar outra saída. O judiciário está preocupado e incomodado com a judicialização de uma forma geral, porque alimenta crítica essa judiciário, de ativismo jurídico.
Há essa tendência em evitar a judicialização, mas precisa crescer. O aumento desse volume vai empurrar o judiciário no sentido de buscar uma alternativa mais inteligente. São várias frentes e essa é uma delas – tem que continuar. Mães e pais devem incomodar o judiciário.”
Maria José Delgado
Situação brasileira
“Desde 2006, o Brasil disse que o uso da cannabis medicinal poderia ocorrer, desde que fosse regulamentado. Como aqui as coisas andam um pouco mais devagar, após quase 9 anos, esse movimento voltou puxado pelo Congresso e pela sociedade. As mães foram atrás da condição para que o uso pudesse ficar mais sistematizado e o uso continuado mais seguro.
Há no Congresso o PL 399, com comissão especial fazendo audiências públicas, viagens internacionais para conhecer experiências importantes, reuniões virtuais. Deputado Luciano DUcci está incansavelmente trabalhando nessa alternativa para levar o PL ao Senado.
Lá existem outras três propostas. Uma sugestão passou por muita dificuldades para ser aprovada, no ano passado. Isso ser visto como um termômetro como o Senado vai lidar com os três andamentos legislativos daquela casa e com esse que virá da Câmara.”
Associações
“As associações de pacientes vêm buscando no Judiciário uma proteção para aquilo que o Estado não entregou, por meio dos HCs.
Onde o estado falha, o cidadão e a humanidade buscam saída no processo criativo do ser humano. E esses mecanismos estão no judiciário.
Universidades têm sido muito parceiras das associações, fazendo o controle mínimo para saber que tem naquele produto feito artesanalmente em casa. São as saídas que temos agora para que tenhamos resultados imediatos e sem danos. As associações no mundo todo fazem esse papel.
No Brasil, nos últimos dois anos deram uma guinada para trabalhar cada vez melhor na defesa dos pacientes.
Se as questões legais não forem resolvidas, o modelo usado hoje, que as associações chamam de desobediência civil pacífica, vai continuar. Vão plantar, extrair ou buscar na boca de fumo, porque é o único jeito do indivíduo ter melhoria de qualidade de vida. A regulação precisa estar atenta a esse cenário. “