O neurocientista italiano Daniele Piomelli vive e realiza seus estudos nos EUA. Seu interesse por Cannabis medicinal começou em 1992, quando viu a pesquisa publicada por Will Devane e Raphael Mechoulam identificando a anandamida.
Para ele, a nova molécula trouxe uma nova era e um novo sistema de sinalização no cérebro que era desconhecido. Estudou como os endocanabinoides eram produzidos no corpo sob uma perspectiva química: como afetavam a função cerebral e como poderia modular a função deles usando o componente farmacológico apropriado.
Sistema endocanabinoide
O sistema endocanabinoide é jovem comparado aos demais, como o dopaminérgico e os hormonais clássicos. Por isso, Piomelli acredita que a ciência ainda pode levar algum tempo para se consolidar no tema. “O sistema endocanabinoide é muito abrangente, trabalha não só no cérebro, mas em outros sistemas de órgãos fora do cérebro, regulando, de forma sutil mas importante, a nossa fisiologia”, diz.
Para o cientista, a existência e funcionamento do sistema é muito sólida e indiscutível, mas há um atraso entre o que os cientistas fazem e o que a tecnologia corrobora. “Esse atraso tem que ser preenchido, é um tema que tem que ser falado em faculdades médicas”, diz.
Segundo ele, sem se considerar o sistema endocanabinoide, até os sistemas clássicos são mais difíceis de entender. Cada sinapse tem uma ou outra forma de sinalização endocanabinoide que regula alguns aspectos da fisiologia, e ele acha até estranho que ainda não faça parte do material didático. Apesar disso, alguns livros já estão colocando alguns parágrafos a respeito. Por ser um sistema que tem tantas funções e é usado pela Cannabis para entrar no nosso corpo, Piomelli acredita que os médicos precisam saber que o THC funciona se ligando a esse sistema: “é importante em fisiologia, em farmacologia e particularmente na farmacologia da Cannabis”.
Dificuldade para pesquisar
Para Piomelli, o cenário legal atual dificulta as pesquisas em Cannabis. Pesquisadores podem estudar muitas substâncias psicoativas fortes sem problema, como cocaína, metanfetaminas, anfetaminas, até opioides. Elas são controladas, mas não na classificação 1. Drogas na classificação 1, são as que, de acordo com a lei, não possuem qualquer valor medicinal e têm alto potencial para abuso e dependência. Nessa classificação, há poucas substâncias, e a Cannabis está entre elas.
Ele conta que, até para conseguir pequenas quantidades para estudos em animais, é preciso uma licença, o que requer vários meses, até um ano. É um protocolo específico e, quando aprovado, qualquer modificação também precisa ser revista.
Piomelli descreve uma pesquisa de forma simples: “fazemos um experimento, olhamos os dados, tomamos decisões, tiramos do experimento. É um processo muito dinâmico. Ter que parar sempre que precisamos mudar 1mg de THC dificulta muito”. Ele dá o exemplo da diferença entre comprar para uso próprio ou para pesquisa: para uso próprio, ele pode ir ao dispensário mais próximo e comprar Cannabis com 1g de THC. Mas, se for 1mg (mil vezes menos) para pesquisa, leva vários meses. A lei atual de 1970 de Controle de Substâncias nos EUA impede mais a pesquisa do que o uso, ilegal ou ilegal, tornando mais difícil estudar os benefícios e riscos.
Desconhecimento antigo
Esta lei dos EUA tem similares por todo o mundo. A França também criminalizou a Cannabis completamente em 1970. Por não haver muitos estudos, surgiu a ideia de que a Cannabis não tinha qualquer benefício médico. A classificação não é só sobre drogas perigosas. Opioides como a morfina ou sintéticos como fentanil são difíceis de usar, são perigosos e causam dependência e podem ser letais, porque uma overdose pode causar parada ou insuficiência respiratória e matar. Piomelli reforça: “A Cannabis não faz isso”. Só que os opioides têm o uso medicinal muito reconhecido.
Segundo ele, a medicina não viveria sem opioides: não haveria cirurgias e vários procedimentos não poderiam ser feitos. Com a Cannabis, essa conversa não está amadurecida. Por exemplo, sabemos que os canabinoides são úteis para tratar náusea, particularmente induzida por quimioterapia ou tratamentos para HIV. Mas isso não mudou a oposição legal para a classificação. Mesmo o THC sendo usado no Marinol para náusea, continua na classificação 1.
Outro ponto é a dependência que pode ser causada pela Cannabis. Piomelli não acredita que o THC ou a Cannabis tem a mesma capacidade de dependência que outras drogas como nicotina, cocaína e álcool. “É ilógico e esquizofrênico que uma planta de potencial viciante menor que estas seja tratada como mais viciante”, lamenta. Mas ele reforça: “Não quer dizer que ela seja inofensiva, ela tem substâncias químicas e têm que ser tratadas com respeito. Mas é difícil matar com THC e impossível com Cannabis”.
Cannabis e dependência
Piomelli alerta que a toxicidade aguda da Cannabis é baixa, mas a crônica é diferente. “Ainda não entendemos bem os efeitos de uso de longo prazo, que podem ser ruins, dependendo do tempo de uso”. Lembrou ainda que não há comprovação suficiente para afirmar que a Cannabis seja eficiente para combater a dependência de outras drogas. O que se sabe é que, nos estados em que a Cannabis é legal, diminui o uso de opioides, parece que está substituindo.
“Se é bom ou ruim, não sabemos, precisa ter mais estudos. Parece bom: opioides matam, Cannabis não, parece que não é tão ruim quanto morrer”, diz. E continua dizendo que, nos laboratórios, sob uma perspectiva científica e não epidemiológica, descobriu-se que há uma sinergia de efeitos da Cannabis.
“Olhando para pessoas e animais, descobrimos que, ao combinar opioide (como analgésico) com canabinoide, a analgesia é potencializada, mas os efeitos colaterais não”. Essa sinergia permite mais efeito com menor dose e menos efeitos colaterais como vício, constipação e parada respiratória. “Acredito que esse uso vai ser um dos primeiros efeitos a ser reconhecido cientificamente”, diz.
Fitoterápicos e tratamentos alternativos
Para Piomelli, cientistas e médicos trabalham sempre com a forma com que vemos o corpo humano e buscamos corrigir desequilíbrios. Como o objetivo é sempre trazer saúde, todos os pontos de vista são bons, todos estão tentando resolver os problemas. “Achar que um médico alopata está querendo ajudar a indústria farmacêutica é errado”, afirma. Ele acredita que tenhamos capacidade de melhorar nossa situação inventividade, olhando para a natureza. “Ela é o grande laboratório químico das plantas e animais e aplicarmos conhecimento para melhorar nossa qualidade de vida”.
Segundo ele, tentar melhorar a natureza não é errado, porque a natureza não é perfeita, e nem a condição humana. “Meu trabalho como pesquisador é aprender com a natureza, fazê-la melhor, com tentativa e erro. A Cannabis é um presente da natureza. É um maravilhoso aspecto da biologia, e agora podemos aprender com isso e como usar esse conhecimento para fazer melhor. Cannabis não é uma droga perfeita, não podemos pensar que não há nada que possa ser melhorado, Eu não quero ter essa posição. Precisamos de ciência porque somos curiosos, queremos saber mais porque queremos melhorar a nossa situação e a dos que amamos”.
Futuro
Pensando no futuro da medicina canabinoide, Piomelli aponta o que já é consenso: que a Cannabis funciona em náuseas. Ele acredita que a próxima aplicação a ser comprovada é a dor crônica em adultos, que já têm estudos bem desenhados que sugerem fortemente. Mas ele reforça: mais estudos têm que acontecer. Ele aposta que, em até cinco anos e com esforço de pesquisadores, haverá uma resposta clara.
“Não acredito em algo que a Cannabis possa ser usada para tratar tudo, não acredito em panaceia. Por isso não farei uma longa lista”, diz.
Por fim, ele reflete sobre o sistema endocanabinoide. Estudos acerca do sistema vão trazer a esperança de novos remédios que possam aumentar ou diminuir a ação do sistema. Para Piomelli, as doenças de tratamentos mais promissores são ansiedade, depressão e obesidade.
Outros painéis
O momento em que a Cannabis venceu o preconceito
O primeiro painel de 11 de novembro trouxe a história de dois pacientes. Marcada pelo preconceito e pela vitória sobre ele, o Coronel Israel Moura e Filipe Suzin contaram como foi mudar ideias preconcebidas.
Israel Moura
Militar e pai de Gabi, que tem microcefalia, síndrome de Dandy Walker e autismo, o coronel Israel Moura passou vinte anos combatendo a maconha e prendendo usuários recreativos. Professor de direitos humanos, ele diz que “Polícia não existe para dar na cara de ninguém, ela existe para garantir o direito do cidadão. Polícia que agride o cidadão não é polícia”.
Moura contou sua trajetória de aprendizado sobre a filha e a Cannabis medicinal. Falou sobre a dificuldade de encontrar médico prescritor, os ajustes que precisaram fazer até chegar na dose certa e como Gabi está há mais de um ano e 3 meses sem crises convulsivas e colecionando avanços de desenvolvimento. Cheio de esperança, ele se despediu: “No próximo evento, ela vai estar andando”.
Filipe Suzin
Paciente com leucemia, Filipe Suzin falou da caminhada com seu pai, Ivo, diagnosticado com Alzheimer. Desde a dificuldade do diagnóstico, passando pela solidão de buscar tratamento com Cannabis e conviver com o preconceito e desconhecimento de médicos e de sua mãe, ele lamenta não ter tido a oportunidade de tratar o pai antes: “Se eu tivesse começado em 2013 eu teria meu pai e não uma criança de 2 anos”. Apesar disso, ele se alegra com a melhora de qualidade de vida que a Cannabis deu a ele e à família, e milita pelo uso medicinal e direito de autocultivo.
Pesquisa científica: o tratamento da enxaqueca com canabinoides
O segundo painel de ontem trouxe o neurologista especializado em enxaqueca, Alexandre Kaup, que fará uma pesquisa clínica em 2021. Serão 110 pacientes de enxaqueca crônica que ajudarão a avaliar a eficácia da Cannabis. Ele também ministra cursos com os colegas do Hospital Israelita Albert Einstein e prescreve a pacientes refratários.
Durante o painel, Kaup deu uma aula sobre o mecanismo da enxaqueca e como o sistema endocanabinoide parece permear esse mecanismo. Seu objetivo com o estudo é entender como esse mecanismo funciona: “com tanta evidência do intrincamento fisiológico entre sistema produtor e regulador da enxaqueca e o sistema endocanabinóide, não podemos perder a oportunidade de estudar e eventualmente mudar o conhecimento”.
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