A relação da educadora ambiental Fernanda Peixoto com a Cannabis medicinal começou há quase duas décadas, quando vivia nos EUA. Seu filho foi diagnosticado com uma patologia no coração identificada como taquicardia supraventricular. Seu caso era delicado, com crises de convulsões febris. Caso ocorressem de forma simultânea (taquicardia e convulsões), o risco de óbito seria grande. Controlar a convulsão era urgente, e o óleo e Cannabis medicinal cumpriu o papel. “Os resultados foram excelentes”, lembra Fernanda.
O tempo passou, seu filho cresceu. Uma cirurgia amenizou o problema no coração da criança, as convulsões deixaram de acontecer e, o tratamento com Cannabis deixou de ser necessário. Já no Brasil, Fernanda se casou com Márcio Pereira, então torneiro mecânico, e, juntos, abriram uma escolinha de educação ambiental.
A volta da Cannabis
A Cannabis tinha deixado de fazer parte do cotidiano da Fernanda por quase uma década, até que se deparou com a notícia da Claudia. Uma mãe de sua cidade, Marília, no interior de São Paulo, que lutava na justiça pelo acesso ao remédio à base de Cannabis para seu filho. Portador de síndrome de West, Mateus tinha até 80 convulsões por dia, mas viu o número cair pela metade com o uso de um medicamento importado à base de Cannabis. O alto custo, cerca de R$ 3,5 mil, na época, impedia o acesso ao medicamento.
Por empatia e compaixão, Fernanda quis ajudar. “Nesse mesmo período, minha cunhada desenvolveu um câncer, um linfoma bem agressivo. Nesse momento eu decidi plantar a Cannabis, fazer a extração, e dar o medicamento para o Mateus, para minha cunhada. A gente não tinha outra opção. Não ia ter como comprar”, conta.
“Minha cunhada tinha 35 anos, uma neném de um aninho e pouco. Parou de trabalhar para tratar o câncer, como ia pagar três mil reais de um medicamento por mês? Fora todo restante do tratamento.”
Nos tempos que atendia seu filho, Fernanda pode estudar sobre o cultivo, extração e variedades de Cannabis. Associado com seu conhecimento em sistemas agroflorestais e cultivo de outras plantas medicinais, produziu o óleo.
“Quando a gente conseguiu a produção, tivemos um excelente resultado na minha cunhada. No Mateus, em quatro dias, conseguimos zerar as convulsões dele. Até hoje tem convulsão, mas é um episódio perdido no mês. A qualidade de vida é totalmente diferente.”
Nascimento da associação
Foi nesse momento o primeiro contato de Márcio com a Cannabis medicinal. Junto à esposa, e diante a possibilidade de entregar uma melhor qualidade de vida à quem necessita, decidiram criar uma associação que pudesse auxiliar um número maior de pessoas.
No meio do processo de regularização, com pedido de habeas corpus que garante um salvo conduto para o plantio, chegou o fim de 2018. Decidiram se aventurar de carro, de Marília até Capixaba, no Acre, onde vivia o padrinho de sua segunda filha. Recém-operado de um câncer de próstata, possuía receita médica e permissão para adquirir o remédio importado, mas tampouco tinha dinheiro para comprar. Fernanda e Márcio decidiram ajudar, levando consigo oito vidros de 20 mililitros, com o medicamento de Cannabis diluído em azeite. Eram 95% de azeite para 5% do extrato, além de pouco mais de cem gramas de flores para que seus amigos do Acre pudessem fazer a própria extração.
Caso de polícia
Já em Rondônia, na estrada, a duas horas de Porto Velho, a tentativa de ajudar virou caso de polícia. Foram abordados e presos por tráfico de drogas. Na sentença, consideraram o óleo com 5% de Cannabis como “maconha líquida” (algo que não existe). Pesaram os vidros, não apenas o líquido, e chegaram a 900 gramas de maconha, que consta na sentença. Réus primários, sem qualquer indício de associação criminosa, nada adiantou. Condenados em primeira e segunda instância a 7 anos e 7 meses de prisão.
Por sorte, Fernanda ficou apenas quatro dias presa. Por ter uma filha menor de 12 anos, foi mandada para cumprir prisão domiciliar na audiência de custódia. Pouco depois, porém, recebeu o alvará de soltura. “O objetivo é que eu cumpra minha sentença, em regime fechado, quando ela completar os 12 anos”, afirma Fernanda.
“O padrinho, alguns meses depois da prisão, faleceu. Isso está no processo, atestado de óbito, exames, receita, e nada disso, em nenhum momento, é analisado. A corte se quer cita a existência do paciente, do uso medicinal, nada.”
Dois anos após, Márcio segue preso em Porto Velho. “Ele conta que é um experiência transformadora. Ele vê muita injustiça, violência da polícia, mas muita humanidade entre os que estão presos junto com ele. São pessoas que erraram, mas que enfrentam um processo de tortura. Quatorze pessoas em uma cela, em condições desumanas. Não é fácil”, conta.
“Hoje as pessoas lá conhecem nossa história. Os próprios agentes penitenciários, diretores, conhecem. Então, se ele não tem nenhum tratamento diferenciado, pelo menos não está mais apanhando, sofrendo tortura, violência.”
Maléli
Nada, porém, que consiga quebrar o espírito de Márcio. A dura realidade não significa ausência e vitórias. Pois, após a prisão, a luta continuou. Hoje o embrião da associação cresceu, dando origem à Maléli – Associação Cannábica, que consegue viabilizar o tratamento com Cannabis medicinal, de forma regularizada, para 300 pacientes.
“Ele sente que a luta deu algum resultado. Ele diz que tudo tem uma razão nessa vida, e ele tá de cabeça bem firme. Ele tá calmo. Aguardando sair, mas tá calmo.”
A previsão é que, em junho, quando completa um quinto da pena, possa enfim retornar para Marília, em regime de prisão domiciliar. A boa notícia, porém, não devolve os 2,5 anos que foram arrancados de quem só tentava levar remédio a um idoso. Nada disso basta. Fernanda quer justiça. Justiça que só começa quando enfim Márcio estiver livre.