Alexandre Kaup já está com tudo pronto para recrutar os participantes da pesquisa clínica que fará em 2021. Serão 110 pacientes de enxaqueca crônica que ajudarão a avaliar a eficácia da Cannabis. Apesar de só ter tido conhecimento da planta em 2019, o neurologista já ministra cursos com os colegas do Hospital Israelita Albert Einstein e prescreve a pacientes refratários.
Graduado em 1995 na Universidade de Santo Amaro (Unisa), com residência na Unifesp, Kaup se especializou em cefaleias, enxaquecas, distonias e espasticidade. Na sequência, fez um doutorado sanduíche entre São Paulo e Texas, sobre enxaqueca crônica.
De volta ao Brasil, entrou no corpo clínico do Hospital Israelita Albert Einstein e como pesquisador no Centro de Bloqueio Neuroquímico em 2001. Também voltou à Unisa atuando como professor adjunto de Neurologia e montando o serviço de cefaleia no hospital público da universidade. Foi ele quem treinou seus colegas quando o hospital entrou no processo para conseguir uma certificação como Centro de AVC.
A chegada da Cannabis medicinal
Kaup só descobriu os benefícios da Cannabis em 2019. A convite de Jaime Ozi, vice-presidente da OnixCann, Kaup viajou ao Peru para participar do 1o. Encuentro de Profesionales Expertos en Fitocannabinoides. De lá, saiu entendendo o sistema endocanabinoide, as linhas gerais da prescrição, o que era remédio e o que não era e com noções de regulamentação.
Não parou mais de pesquisar. Em abril daquele ano, foi a um workshop no Canadá, onde pôde discutir aspectos clínicos da planta com profissionais experientes. “O que fascina é a quantidade de conhecimento novo”, conta Kaup. Ele encorpou a bagagem na área de forma natural, com pacientes, estudos, papers ou com colegas curiosos. Tanto conhecimento o habilitou a ser professor em uma disciplina optativa de Cannabis medicinal.
Além disso, Kaup desenhou uma pesquisa que já tem orçamento e aprovação da Anvisa e do Abert Einstein. Serão 110 pacientes com enxaqueca crônica, já sendo tratados convencionalmente. Eles serão randomizados em dois grupos, onde um receberá CBD e THC, e o outro, placebo. O duplo cego já está em fase de recrutamento de voluntários e será iniciado já em 2021.
Lá, também ministra o curso optativo na faculdade de medicina sobre Cannabis medicinal. São dez aulas de duas horas cada, cujas inscrições se esgotam sempre em menos de uma semana.
Aprendizado e prescrição
Kaup prescreve aos pacientes no Albert Einstein que não tiveram resultados satisfatórios com os medicamentos convencionais. Como ele trata casos neurológicos, a maioria das doenças são crônicas e incapacitantes. Para se ter ideia, Kaup explica que, para chegar ao diagnóstico de enxaqueca crônica, a pessoa precisa sentir dor de cabeça por 15 dias, por pelo menos três meses.
Esses pacientes são polimedicados, sofrem com insônia e ansiedade. Ou seja, candidatos perfeitos para uso de Cannabis. Começou com cuidado, apenas com CBD isolado. Foi o suficiente para ver melhoras em alguns deles. As dores e crises diminuíram e eles se tornaram mais funcionais – até os sinais da depressão ficaram para trás.
Recentemente, começou a introduzir THC em alguns pacientes com espasticidade, lesão medular, esclerose múltipla. Aos pacientes com epilepsia, alterações de desenvolvimento e crises opta pelo CBD, que ajuda no controle das dores.
Mas ele não prescreve Cannabis para todos, apenas para 10% dos pacientes. Os que já têm tratamentos convencionais e respondem bem, seguem com o tratamento tradicional com alopáticos: “A chance é maior usando o que já é efetivo do que com o canabinoide. Este eu prescrevo quando cabe”.
Ele tem visto um aumento de interesse de pacientes oncológicos, como os tumores do sistema nervoso central – médicos o procuram para tratamentos paliativos em pacientes terminais. “Mas às vezes o paciente chega num estágio em que não tem muita coisa para ajudar”, lamenta.
Cannabis e câncer
Por isso, pede aos oncologistas para trazerem os pacientes com mais antecedência. Em julho deste ano, no board review da oncologia, ele deu aula de canabinoides para tratamento anti tumor, paliativo, tratamento de crise, náuseas. Quer evitar casos como o de uma paciente com tumor no cérebro que já tinha ultrapassado a sobrevida em dois anos.
Ela só chegou a Kaup cinco meses antes de falecer, muito debilitada, sonolenta, sem interação verbal. Receitou CBD para diminuir as crises convulsivas. E os efeitos foram positivos: ela voltou a se comunicar melhor, com mais foco, e a dizer quando sentia dor. Até os sedativos foram reduzidos. Com o câncer avançado, no entanto, a paciente aproveitou pouco os benefícios da Cannabis e logo faleceu.
Apesar da triste história, ele se anima com estudos em roedores e cultura de células que mostram que o CBD interfere no metabolismo de tumores. Ainda é cedo para ofertar a seus pacientes, mas ele aposta: “É uma grande oportunidade no arsenal terapêutico”.
Mas como adjuvante (medicamento que potencializa a ação de outros) em tratamentos de epilepsia, dor crônica e enxaqueca refratárias, ele reporta benefícios significativos, sem piora e sem efeitos colaterais: “Na neurologia, muitos medicamentos podem ter interação com o canabidiol”, Kaup comenta.
Não sente qualquer preconceito dos colegas, que surgem curiosos e com vontade de aprender. Ainda falta muito conhecimento a eles. Para se ter ideia, só em 2019 ministrou cinco aulas no hospital para vários grupos de especialidades distintas, como neuro oncologia, reabilitação, oncologia e grupo de dor.
Complemento e cautela
A consulta de Kaup é de 50 minutos. O paciente sai de lá com o diagnóstico e prescrição de vários remédios, não apenas de Cannabis. Ele usa todo o arsenal à disposição – a Cannabis não figura como a grande ou única estrela no tratamento. O retorno acontece em quatro semanas.
Kaup é cauteloso nas prescrições: “medicina não é baseada na minha experiência”. Por isso, somente prescreve óleos importados ou o Mevatyl, que é vendido nas farmácias brasileiras. Ele conta que até recebe representantes de vendas ofertando produtos, mas sempre dá preferência a marcas com certificação, e de empresas de referência.
Outro motivo para isso é a dificuldade de prescrição quando não há excelência na produção. Um exemplo o marcou: um senhor de 70 anos chegou em seu consultório sem diagnóstico (algo comum na neurologia) com recomendação médica para fumar maconha. Ele não concorda com esse tipo de conduta, com produtos de procedência desconhecida e sem controle de qualidade. E nem recomenda uma troca por Cannabis aos pacientes com bons resultados aos medicamentos alopáticos. “Só porque eu acho legal e fantástica, não tenho como esperar que a planta resolva tudo”.
Medical Cannabis Summit
Sobre sua participação na segunda edição no Medical Cannabis Summit, que acontece em novembro, o neurologista antecipa que pretende falar sobre o desenho da pesquisa que está preparando, das indicações da Cannabis na neurologia e da importância da geração de evidências de eficácia da planta como tratamento.
Kaup acredita no evento como fonte de informação embasada e com pessoas que falam da prática, que é muito diferente de opinião: “Educar faz muita diferença, o nível das palestras foi muito bom na primeira edição do evento”.