Médicos especializados em dor se preocupam quando o paciente quer aumentar a dose do opioide. Há o risco do vício. Por isso, foi com espanto que o anestesista paraense Mauro Araújo ouviu, há cinco anos, um pedido diferente: o paciente queria reduzir pela metade o uso de metadona. Intrigado, ele investigou. E descobriu o medicamento que transformaria a sua carreira e a visão que tinha da medicina.
Araújo é algiologista, uma especialização ainda não reconhecida como tal pela Associação Médica Brasileira (AMB). Nessa especialidade, ele dedica sua vida a levar alívio a pacientes com dores crônicas. Somente quatro especialidades podem ser algiologistas: neurocirurgiões, neuro clínicos, reumatologistas e anestesistas.
Vinte anos atrás, quando quis sua certificação em dor, Araújo precisou rodar vários serviços que existiam no Brasil. Passou pelo hospital AC Camargo em São Paulo, pela Unesp em Botucatu e pela Escola Paulista de Medicina. Quando a Sociedade Brasileira de Anestesiologia criou regras para a certificação, ele pôde fazer a prova. “Na época, nos ambulatórios ninguém conhecia a área, não era referendada. Hoje o controle da dor está mais embasado e difundido”, ele conta.
Hoje, faz parte do Comitê de Cannabis na Sociedade Brasileira de Estudo da Dor (SBED) e é responsável pela Câmara Técnica de Fibromialgia da Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis (SBEC). Participando dessas duas organizações, ele faz a ponte entre o mundo da Cannabis e pacientes, estudantes, cientistas e médicos da área da dor.
Descobrindo a Cannabis
Segundo Araújo, todo médico que trabalha com dor crônica está acostumado a prescrever opioides, como morfina, metadona, oxicodona, fentanil. “No exterior tem até pirulito de fentanil para crianças com dores crônicas”. Em 2015, como de praxe, deu ao paciente a dose exata de metadona. É uma maneira de evitar o uso abusivo do medicamento.
Só que, quando o paciente voltou, ele pediu apenas uma caixa e não duas. Sem entender, Araújo perguntou o motivo, já que o que o comum era o paciente pedir mais. “É que estou usando uma coisa importada, e agora só preciso de metade da dose da metadona”, foi a resposta. O medicamento era à base de Cannabis. Araújo ficou preocupado e cheio de dúvidas, mas respeitou a opinião do paciente.
Este foi só o primeiro caso. Como mora em Belém, recebeu muitos pacientes que vinham de Miami e traziam o Mevatyl, fármaco com CBD e THC. Ele acompanhou os resultados nos positivos pacientes e se animou com a Cannabis. Mas ainda não podia prescrever. Há três anos, quando a Anvisa autorizou a importação de produtos à base de Cannabis, houve uma avalanche de empresas entrando no país: “Se antes tínhamos duas marcas, hoje tem várias”. E, assim, pode estudá-los.
Variedades não faltam – tanto de usos terapêuticos, quanto de produtos. Nos grupos de Whatsapp de médicos, segundo Araújo, a cada dois dias algum colega posta um produto novo, óleos artesanais de associações e casos de habeas corpus para uso pessoal. A partir de 2017, passou a receber trabalhos das empresas que importam os medicamentos. Aprendeu, então, a prescrever. “Com a informação na mão, a experiência é o diferencial”, conta.
Benefícios da Cannabis para tratamento da dor
Araújo explica que, na dor crônica, o controle não é fácil: “Por mais que haja remédios, cirurgias e tratamentos como radiofrequência, não há, na maioria das vezes, controle adequado da dor”. Há também a dificuldade de acesso a especialistas.
Ainda soma-se o fato de que as medicações usadas hoje são adjuvantes. Ou seja, não foram criados para esse fim, mas têm eficácia no controle da dor. São os casos dos antidepressivos, anticonvulsivantes, corticóides e relaxantes musculares. Mas nem sempre funcionam tão bem. “Se tenho dez pacientes, trago alívio a apenas cinco, e desses, controlo 70%, 80% da dor”.
Quando os remédios convencionais não dão conta, Araújo indica a Cannabis. E recuperam a vida normal, com relacionamentos saudáveis, retorno ao trabalho. Além disso, diminuem o consumo de opioides.
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Por ser o único médico prescritor de Cannabis no Pará, ele recebe muitos pacientes atrás do tratamento. Se não forem da área da dor, ele indica especialistas pelo Brasil, prática que foi facilitada pela Telemedicina: médicos de outros estados podem atender e prescrever à distância.
Prescrição personalizada
Ele receita tanto óleos de associações quanto importados, dependendo da necessidade e condição econômica do paciente. Ele alerta que o óleo de associação rende menos que o produto importado de qualidade: “1ml de óleo artesanal vai equivaler a 1/10 do importado”.
Avalia o efeito de cada óleo em cada paciente. Da mesma forma que a planta tem tantas variações, também a resposta de cada organismo será diferente. Por exemplo: dois pacientes com neuropatia causada por diabetes, com mesmo peso, mesma idade, mesmo sexo terão respostas diferentes à Cannabis, pois o desequilíbrio do sistema endocanabinoide depende de cada pessoa.
“Com Cannabis, a regra básica no mundo todo é: comece devagar, progrida devagar. Seja sempre humilde”. Araújo alerta que esse cuidado é importante para evitar efeitos colaterais e obter a resposta desejada, que pode demorar. “Essa é a diferença entre os produtos de Cannabis”.
Sobre a consulta em si, Araújo explica que a prescrição dificilmente acontecerá no dia em que o médico conheceu o paciente. Ele precisa obter várias informações: hábitos de sono, relação com a família, níveis de estresse e ansiedade, uso de medicamentos, objetivos com o tratamento. “Um médico com moderada experiência precisa se isolar, pegar o prontuário, estudar e só depois prescrever”.
E vai além: aposta no tratamento multidisciplinar em pacientes com dor crônica. Acredita ser necessário trabalhar em conjunto com o que for necessário em cada caso: fisioterapeuta, neurologista, psicólogo, psiquiatra ou outra especialidade.
Pé no freio
Apesar de tantos benefícios, Araújo não receita Cannabis a todos os pacientes. Só para os refratários, conforme orientação do Conselho Federal de Medicina (CFM). É o chamado uso compulsório. Ele gostaria de poder receitar em mais casos, mas não quer ir contra seu conselho.
Com o colega Ricardo Ferreira, foi ao CFM para apelar pela mudança dessa resolução, que só permite a prescrição da Cannabis por neurocirurgiões, neuroclínicos e psiquiatras. Numa reunião em Brasília, solicitaram a possibilidade de prescrição para dores crônicas por médicos credenciados. O CFM argumentou que só poderia entrar com a solicitação no Ministério Público se todos os médicos da área da dor concordassem. Como a maioria destes é contra a Cannabis, a contenda precisou ser encerrada.
Por isso ele receita apenas para os pacientes refratários. “Tem colega que me chama de medroso”, se diverte. Apesar de propagandista da Cannabis, ele se entende conservador na prescrição. Lembra que mora em Belém e que, apesar de ser uma capital, “não tem muro”. Por ser um médico referendado, sabe que o que prescreve pode virar notícia caso haja efeitos colaterais. E que pode sofrer sanções do CFM caso algum paciente reclame.
Mas isso não o desanima, porque já ajuda 25% de pacientes refratários que podem receber alívio, conforto e esperança com a Cannabis. Ele lembra dos que agradecem a eles por estarem vivos.
Elo entre dois mundos
Na SBED, que é vinculada à International Association for the Study of Pain (IASP), Araújo faz parte do comitê de Cannabis. Na SBEC, onde é responsável pela Câmara Técnica de Fibromialgia, comanda cursos e discussões voltadas para quem já vive a Cannabis.
Nas duas entidades, ele se dedica a levar conhecimento a profissionais de sua área que ainda não têm a Cannabis em seu arsenal terapêutico.
Ele conta que, das mais de mil faculdades de medicina no Brasil, apenas três oferecem ao estudante o conhecimento sobre o sistema endocanabinoide e de como ele atua no organismo. Com tantos estudos novos na área, Araújo lamenta a falta desse ensinamento na graduação. E, por isso, se empenha no que chama de sua militância: levar esse conhecimento aos médicos da área da dor, não só os algiologistas como ele.
Na SBED, ele levou colegas a congressos no exterior. E atende todo associado que queira orientação sobre o produto: indica artigos, dá palestras: dá o caminho das pedras. Também atendem médicos cheios de dúvidas, mas que querem prescrever. “Cannabis não tem efeitos colaterais importantes” – é o que ressalta sempre. Recomenda leitura de sites, artigos, pesquisas, que eles pensem e tomem seu tempo. “Comece devagar e siga devagar”, recomenda.
Além disso, também dá aulas na Câmara Técnica da SBED. E também se informa e se atualiza: fará o segundo curso (o primeiro foi o do Padre Ticão pela UNESP), que contará com certificação e projeto de conclusão, uma pós-graduação em medicina canábica.