O carioca Otto Soares adora esportes, jogava futebol, beisebol, handebol, vôlei. Mas, em 2011, com apenas 30 anos, sentiu dores nas costas e foi ao hospital. Como o radiologista percebeu algo mais estranho na cervical, chamou o chefe de neurocirurgia. Soares tinha uma compressão medular do início da coluna até a C5: um espaço de menos de 1mm o separava da tetraplegia.
Ele não acreditou. Buscou uma segunda opinião. E a notícia só piorou: além da compressão medular, tinha uma invaginação da coluna. Em outras palavras, a coluna estava entrando no cérebro. Se isso acontecesse, Soares morreria. Teve de passar por uma cirurgia cirurgia delicada, chamada de artrodese de coluna cervical. Os médicos colocaram uma prótese ligando a coluna cervical (com três parafusos de cada lado) à base do crânio. A ideia era dar sustentação extra e impedir a compressão da medula.
Mesmo anestesiado, Soares saiu da cirurgia aos berros, sofrendo de dor. “Nosso corpo é como um computador, tem um limite que suporta. Quando eu chegava no limite da dor, eu desligava, desmaiava”, ele conta. Passou um mês no hospital na tentativa de controlar as dores. Com um colete cervical, desmaiava e tomava morfina sem parar.
Os anos seguintes foram de tratamentos e tentativas de uma vida normal: fisioterapia, hidroterapia, tomava uma lista de remédios de três folhas frente e verso (chegou a tomar onze medicamentos diferentes por dia). Sentia taquicardias, perdeu a visão temporariamente por conta de um relaxante muscular, tinha aftas, problemas de estômago, alucinações, estava 60 Kg acima do peso . “Tramal era como se fosse açúcar para mim”, conta. Com muito esforço e um histórico de alucinações durante as provas, conseguiu terminar a faculdade de programação de jogos.
Do preconceito à informação
Soares pensou na Cannabis quando recebeu a visita de um amigo.”‘Você é o cara mais inteligente que eu conheço. Por que nunca usou maconha?”, perguntou o amigo ao ver o sofrimento de Soares. Devolveu com preconceito: “Por isso mesmo, dizem que arrebenta neurônio”. Mas o amigo o convenceu a estudar melhor sobre a Cannabis. Ficou surpreso. “O que eu ouvi a vida toda é desconexo com a realidade”, conta.
Naquela época, assistiu ao documentário Ilegal – e à matéria do Fantástico a respeito do filme e da Cannabis medicinal. Conversou com Juliana Paolinelli (personagem do Ilegal, que sofre de dores crônicas), que explicou um pouco mais sobre a planta e como funcionava para adquirir de forma legal – uma das exigências de Soares. “Seria um erro duplo: eu estaria incentivando o tráfico e ingerindo produto tóxico”.
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Juliana indicou que ele conversasse com o ortopedista Ricardo Ferreira. Primeiro, o médico confirmou que Soares era mesmo refratário, se certificou onde era a fonte da neuropatia dele e resolveu tirar uma parte da prótese. Aí sim perguntou a Soares se estaria disposto a tentar um remédio importado: a Cannabis.
Entrada pelas associações
Neste ponto, Soares chegou à ABRACannabis, conheceu Pedro Zarur, seu diretor, e recebeu toda a orientação de que precisava: o cultivo, a genética da planta, formas de uso, vaporizadores, plantadores e assistência jurídica. Também pela ABRACannabis, conheceu a Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas (Reforma) e, com os advogados Ricardo Nemer e Emílio Figueiredo, conseguiu o primeiro habeas corpus para um adulto usar Cannabis no Brasil, em 2017.
Quando fez a cirurgia para retirada da parte da prótese que lesou o nervo, ele já tinha o HC e pôde usar o óleo ainda no hospital. Soares tomou cinco gotas, e, em 30 minutos estava chorando de alívio: fazia anos que sentia tão pouca dor.
Porém, ainda tinha um longo caminha a percorrer. Por dois anos, Soares se endividou para comprar o óleo importado. Como passou tanto tempo incapacitado, não conseguia trabalhar. Para piorar, o CBD que estava usando não era o suficiente para aliviar as dores, demorava de meia a uma hora para fazer efeito, e diminuía sua dor de nove pontos para sete.
O melhor tratamento
Ainda com a ajuda da ABRACannabis, ele fez contato com pessoas que plantavam Cannabis. Cheio de receio, fumou um cigarro de Cannabis pela primeira vez. “Eu tive um milagre, foi como uma coisa viesse e me fizesse um carinho, e a dor despencou”. A dor caiu para a metade, já não era mais incapacitante. A partir daí, Soares começou a testar flores diferentes, quais tinham resposta melhor ou mais rápida. Em todos os testes, nunca teve “barato” vaporizando.
Em um evento com várias associações de Cannabis, alguns dos presentes o convenceram a plantar, pois só assim conseguiria um habeas corpus para plantio. Foi o que fez. Conseguiu dois fenótipos de uma mesma genética, plantou e obteve o habeas corpus.
De lá para cá, já fez vários cursos, gosta de seguir o conceito do médico Ricardo Ferreira, de sempre estudar e se atualizar. “As pessoas se prendem muito ao THC e ao CBD, é um erro brutal” diz Soares, que aponta que os demais canabinoides tem efeitos diferentes para usos diferentes.
No último ano, acertou a variedade de Cannabis com a melhor genética para seu caso. Hoje, não tem efeito colateral nenhum e sente que a planta não só diminui a dor, como trata a lesão. No início do tratamento precisava vaporizar de cinco a sete vezes por dia, hoje, apenas uma vez. Já voltou a fazer exercícios leves, como caminhada e até corridas curtas, e voltou ao seu peso anterior.
A dor dos outros
Algum tempo depois, Soares concordou em mostrar sua história para ajudar a divulgar os benefícios da planta. O trabalho foi realizado com o jornalista Tarso de Araújo, o mesmo do documentário Ilegal, que produziu o curta-metragem de oito minutos “A Dor dos Outros”, lançado em julho do ano passado. Durante as gravações, Soares precisava se medicar, e conta que o fazia com medo de ser abordado. Depois da divulgação, ele diz que ainda há pessoas que o chamam de maconheiro.
Até sua cachorrinha participa. Durante as gravações do curta, Luna de 14 anos comeu algumas plantas, porque alguém esqueceu o portão aberto. “Eu dou as folhas para ela comer, e no dia seguinte ela fica super bem”.
Conscientização e agradecimento
Soares lamenta que não haja uma conscientização nacional, o que é um atraso para o Brasil, considerando que até a Organização Mundial do Câncer indica a eficácia do tratamento. “Se a pessoa conhece a Cannabis e não quer usar, ela quer morrer”. Ele aponta a necessidade de uma campanha de alcance nacional e usa exemplos de celebridades que usam, como Morgan Freeman, Ian Thorpe e Usain Bolt. Que, por mais que se divulgue, se não houver uma comoção gigante, ainda é pouco. O conhecimento deveria ser implantado na educação de todos.
Sua última mensagem é o agradecimento aos que chamou de anjos: o Dr. Ricardo Ferreira, à ABRACannabis e à Reforma. “Sem eles, eu nem estaria aqui”.